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quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Torre Bela -- Torre da Vergonha


Sinto profundo desprezo por quem denota satisfação por matar um animal, vangloriando-se do feito vergonhoso. Quem alegremente se faz fotografar ao lado de cadáveres de animais por si trucidados para satisfazer insanos prazeres de caçador desportivo só pode ser um ser humano mal formado e de baixo nível moral. O massacre de Torre Bela, provocando a morte de centenas de animais indefesos e encurralados, é um acto abjecto, indigno e criminoso. É inadmissível que possa permanecer impune, como aconteceu em casos anteriores. Exige-se uma exemplar condenação dos criminosos – que neste caso são um grupo organizado de caçadores que pagou para matar.

João Maria de Freitas Branco
23 de Dezembro de 2020

 

domingo, 20 de dezembro de 2020

Discórdia em torno de Eduardo Lourenço

 

Como já referi em outro texto aqui publicado, Eugénio Lisboa abandonou o JL por achar que o director do jornal lhe endereçou algumas “farpas” no editorial, ou artigo introdutório da edição especial do JL inteiramente dedicada a Eduardo Lourenço, publicada no passado dia 16, no seguimento do seu falecimento no início de corrente mês.

Só li os artigos que estão na base da desavença depois de ter tomado conhecimento da carta de Eugénio Lisboa. Mesmo estando alertado pela epístola, devo dizer que não consegui encontrar no editorial nenhuma evidência desse ataque “enviesado”; as ditas farpas, a existirem, estão, ao que me parece, bem disfarçadas e, provavelmente, só serão notadas e sentidas por quem esteja mais por dentro da edição em causa.

Porém, não tenho a mínima dúvida de que José Carlos Vasconcelos discorda, e muito, do conteúdo crítico do artigo de Eugénio Lisboa. Tal não é o meu caso. Bem pelo contrário. Concordo desde logo com a atitude do articulista. Homenagem não é sermão laudatório. O melhor e mais nobre gesto de homenagem não deve apresentar-se na praça pública despido de espírito crítico. Tal desprovimento conduz lestamente ao discurso panegírico, encomiástico, que quase sempre mais concorre para diminuir o visado do que para o engrandecer, provocando efeito contrário ao pretendido. Aristóteles engrandece Platão através da crítica; Galileu engrandece Aristóteles pela mesma via.

Mas para além da concordância com a atitude, revejo-me no conteúdo crítico. Sintoniza ele, no essencial, com o que desde há muito penso sobre o estilo do ensaísmo literário de Eduardo Lourenço. Para que melhor se perceba, tomo a liberdade de trazer para este espaço público parte de um meu escrito privado: uma missiva ontem endereçada a um Amigo depois de ter lido os textos de Eugénio Lisboa e José Carlos Vasconcelos, mas que, no que toca aos parágrafos que passo a citar, bem podia ser dirigida a qualquer outra pessoa interessada por estes assuntos da Cultura. Por isso, aqui vai:

«[…] Devias ler o artigo do Eugénio Lisboa sobre o Eduardo Loureço, causador do desentendimento com o José Carlos Vasconcelos. É a primeira vez que vejo publicada a minha própria opinião crítica. Como sabes, conheci pessoalmente o Eduardo Lourenço e os contactos que mantive com ele foram de grande cordialidade. Uma pessoa em cuja companhia sempre me senti bem e que era verdadeiramente estimável. Outra coisa é o seu estilo ensaístico. Simpatizo com o homem mas não com a sua prosa ensaística. Esta não é nem nunca foi do meu agrado. Não é uma prosa escorreita, límpida, imediatamente servidora da clareza da ideação. Demasiados artificialismos barrocos que acabam por obscurecer a ideia, por dificultar a compreensão do pensamento. Além disso, também, a meu ver, lhe falta nervo no verbo – essa essencial qualidade que encontramos em abundância nos escritos do Oliveira Martins, nos textos em prosa do Antero de Quental, no ensaísmo filosófico do António Sérgio – e já nem falo do Eça cronista. O Eugénio Lisboa dá como exemplo contrastante o Régio, o Sérgio e o Sílvio Lima. Concordo totalmente com o artigo dele e não tenho dúvida de que o José Carlos Vasconcelos discorda fortemente do que é dito. Não preciso de lhe perguntar, conheço a sua opinião.

Também a mim me inquieta o modo "unanimista e incontinente da homenagem que se tem andado a fazer e que deixa muito a desejar, quando se vise um escrutínio sereno, objectivo e inteligente, que a obra de Eduardo Lourenço requer e merece" (E.Lisboa: “Somos o passado de amanhã”, JL, Edição Especial de 16/12/2020, p.34).»

Espero, como amigo de ambos, do José Carlos e do Eugénio, que se supere o desentendimento e que todos possamos continuar a conviver com as enriquecedoras colaborações do Eugénio Lisboa nas páginas do JL.

João Maria de Freitas Branco
Caxias, 20 de Dezembro de 2020

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Eugénio Lisboa abandona o JL

 

O último número do JL, ontem chegado às bancas, é inteiramente dedicado a Eduardo Lourenço. Trata-se de uma edição especial no seguimento da morte do ensaísta no passado dia 1. Um dos artigos sobre o homenageado é de Eugénio Lisboa, colaborador permanente do jornal desde há muitos anos; mas parece ter desagradado ao director, José Carlos Vasconcelos, que resolveu dar a conhecer publicamente esse seu sentir através do editorial. Em resposta, Eugénio Lisboa escreveu uma carta ontem transcrita por Eduardo Pitta na sua página do Facebook e que agora transponho para aqui.

«José Carlos de Vasconcelos, quero comunicar-lhe que não volto a colaborar no JL. Enquanto o fiz, procurei sempre dizer, com “franc parler” que devo a bons e íntegros mestres, aquilo que penso: com admiração, quando ela é devida, mas sem idolatrias próprias de ditaduras de terceiro mundo.

Para este número, dedicado a Eduardo Lourenço, enviei-lhe um texto a seu pedido. Isso convocava, da sua parte, no mínimo, neutralidade e cortesia, não as farpas envenenadas da sua editorial.

A minha colaboração de tantos anos, que não é de qualidade “imaginária” — ou, se é, porque continuou a mantê-la? — não justifica um ataque tão enviesado. A minha visão do Eduardo Lourenço é a minha, a que sinceramente tenho e posso garantir-lhe que não estou só.

Seja como for, não voltarei a incomodá-lo com os meus textos e desejo bom futuro ao JL. Eugénio Lisboa»

 

Má notícia. Eugénio Lisboa, que bem conheço e muito estimo, faz parte da nossa melhor paisagem intelectual. Ainda não li o artigo que escreveu sobre o Eduardo Lourenço, nem o editorial do José Carlos Vasconcelos; e não sabia da discórdia plasmada na carta. Fico, para já, com uma certeza: quem perde é o JL (jornal de que fui colaborador permanente e correspondente no estrangeiro) e os seus leitores. Lamentável.

João Maria de Freitas Branco
17 de Dezembro de 2020

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Tripla mágoa: Eduardo Lourenço, a Jovem e a TV

 


A morte de Eduardo Lourenço teve lugar precisamente há uma semana, no dia 1 de Dezembro, dia da restauração da independência. Empobrecimento da paisagem humana no planalto da Cultura nacional com o desaparecimento de um verdadeiro intelectual, autêntico como poucos neste tempo de pensamento ligeiro votado ao entretenimento e à correria tumultuosa – tão abusadora do espírito, como diria o nosso bom Eça.

Poucos dias após a morte do insigne pensador da Portugalidade, que nos educou o olhar para nós próprios, que nos instruiu na contemplação da nossa condição de portugueses e no exercício do reflectir sobre a Nação lusa, constatamos que de acordo com os critérios editoriais dominantes nos espaços televisivos dos nossos canais de notícias é atribuída maior relevância noticiosa à morte trágica de uma jovem por ser filha de um cantador popular do que ao óbito do pensador. Um dos canais, a cmtv, chegou ao cúmulo do despropósito de alterar toda a sua programação, exibindo a morte trágica como entretenimento!

O insuportável despautério representa o assassinato do Jornalismo ao mesmo tempo que corrói a mentalidade individual e colectiva, baixando-lhe o nível. Coisas que, não se duvide, seriamente auxiliam a germinação de fenómenos como aquele a que tenho vindo a chamar indecência americana – o espectáculo de decomposição da sociedade estadunidense assolada por vagas trumpistas e outras semelhantes formas de obscenidade.

Eis a razão pela qual não se pode encolher ombros e deixar que o despautério se instale como hábito. Remetermo-nos a um silêncio cúmplice e cobarde, como muitos fazem, aceitando o inaceitável, é abrir via rápida para a catástrofe existencial: a revitalização e triunfo da barbárie.

Por ser evidente para qualquer pessoa de bem, dispenso-me de explicar que não está aqui em causa nenhuma hierarquização de sentimentos, de comoções, e muito menos de seres humanos e de mortes de seres humanos. Em causa está sim a semeadura de confusão de valores na esfera da hierarquização mediática de um legado público de dimensão nacional.

Não se pode tolerar que a televisão seja o que Eduardo Loureço disse ser. Descreveu-a assim:

«A televisão é um instrumento permanente do divertissement. […] É uma cultura do esquecimento e uma criação do esquecimento sobre o esquecimento».

João Maria de Freitas Branco
Caxias, 8 de Dezembro de 2020

 

 

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

MARADONA

 

EVOCAÇÃO DE UMA MEMÓRIA
COMO FORMA DE HOMENAGEM

Ao longo da vida conheci pessoalmente muitas figuras de fama mundial (artistas, intelectuais, políticos), mas nunca observei efeito emocional colectivo tão intenso centrado numa única pessoa como quando tive a felicidade de ter entrado no relvado de um grande estádio ao lado de Diego Armando Maradona, “El Pibe”. Acompanhei no relvado, junto dele, o aquecimento que fez, a anteceder um jogo internacional da UEFA. Em nosso redor estavam cerca de cem mil espectadores para quem o único foco de atenção era aquele argentino com divino talento futebolístico e que então envergava a camisola do Nápoles. Nada mais interessava. Uma experiência emocionante e inolvidável.

Revelo este episódio da minha vida neste dia 25 em que Maradona saiu da vida – curiosamente o mesmíssimo dia do mês em que também morreu o seu admirado amigo Fidel.

Diego Armando Maradona foi o maior futebolista que vi jogar directamente; a ele fico a dever alguns dos maiores momentos de fruição estético-desportiva.

João Maria de Freitas Branco
25 de Novembro de 2020

 

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Com Congresso ou sem Congresso

 

Não se iludam: caso o PCP tivesse decidido (ou venha a decidir) não realizar o seu Congresso, isso nunca podia traduzir-se num desejo de enfraquecimento da acção política que o partido concebe como sendo contra a desigualdade, a injustiça, a falta de liberdade e, no contexto actual, contra a cada vez mais exuberante ameaça totalitária que grassa pelo mundo e a que só falta adicionar um momento de grande crise, como o que se pode desenhar a partir de uma situação de calamidade pandémica que vai sulcando de modo propiciador ao germinar de graves dificuldades económicas, sociais e políticas.

Sabemos não faltarem vozes críticas ou acusatórias relativamente à genuinidade das intenções, bem como da acção concreta desenvolvida pelo partido em causa, agora estranhamente classificado como “partido de extrema-esquerda” ou como “partido populista e extremista”. Mas esse debate é irrelevante neste contexto temático. Não é isso o que aqui se equaciona. Importa antes ter presente que em Portugal, por efeito da Revolução de Abril de 1974 que pôs termo a uma ditadura, os Governos deixaram de poder autorizar ou proibir as actividades político-partidárias. Valiosa conquista à luz da qual não se pode pôr em causa a legitimidade da organização de reuniões partidárias (para além de outras), como é o caso da iniciativa agendada pelo PCP para o próximo fim-de-semana. No entanto, o reconhecimento da total legitimidade do acto não inibe, nem pode inibir o direito à opinião sobre eventuais vantagens ou inconveniências políticas da realização de uma determinada actividade partidária. É este um outro patamar de discussão, independente da legalidade ou legitimidade da actividade promovida.

Como tenho feito saber, considero que a realização do Congresso nos moldes previstos fornece armas de fácil manuseamento ideológico aos inimigos da Liberdade e do Estado de direito democrático, sendo por isso, e se não houver engano meu, um erro político. Mas a alternativa não pode ser uma atenuação da força combativa, nem uma suspensão da actividade política. Bem pelo contrário. O adiamento do Congresso teria que ser realizado através de outra acção política, criativamente pensada e porventura até mais efectiva, e que poupasse o PCP a uma muito espectável reprovação popular com inevitáveis efeitos na sua futura capacidade de intervenção. Não é o ruidoso opinar de hordas anticomunistas de variegado género que deve preocupar ou prender a atenção; é antes a boa percepção da sensibilidade popular que deve interessar os decisores políticos. E quem pensa à esquerda, deverá ter o acrescido cuidado de avaliar se o seu proceder intensifica a polarização fecundante do totalitarismo.

Não sei se me vão perdoar o uso do que muitos, em todos os quadrantes políticos, à direita, à esquerda, ao centro, consideram ser um vetusto chavão, mas a verdade é que o combate político contra a exploração do homem pelo homem jamais pode esmorecer. É pelejar permanente. A expressão desconsiderada (quando não vilipendiada) é, a meu ver, rigorosíssima, porque traduz exactamente uma fundamental realidade passada e presente da história humana: a exploração de enormes maiorias de seres humanos por magras minorias de seres humanos, causando sofrimentos horrendos de infinita dimensão colectiva. A chama dessa lide deve e tem que se manter bem viva, porque se trata, antes de tudo o mais, de um imperativo ético e moral!

Na memória mais nobre da história deste nosso invulgar presente figurarão aqueles que souberam erguer-se contra as renovadas formas de exploração e descriminação de incontável número de seres humanos por esses alguns seres humanos que agora se agitam, manipulando as massas, como outros no passado, com o prioritário objectivo de tirar máximo proveito de uma crise alargada que desimpeça a estruturação de novos regimes autocráticos/totalitários favorecedores de acumulação de riqueza e poder nas mãos de uma minoria dominante. Nesta época de estranhas classificações é um Papa, curiosamente rotulado de marxista pelas hostes mais conservadoras e reaccionárias da própria Igreja Católica que lidera, que vem a terreiro, com Carta Encíclica, apelando para o «pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns» (Papa Francisco: Fratelli Tutti, Paulinas, Lisboa, 2020, p.70).

Com Congresso ou sem Congresso, o combate contra a exploração do homem pelo homem tem que ser intensamente contínuo. É uma acção sem intervalos.

João Maria de Freitas Branco
24 de Novembro de 2020

sábado, 21 de novembro de 2020

Depois da comunicação de António Costa

 

Após ter escutado a comunicação do primeiro-ministro, tive curiosidade de passar pelos vários canais televisivos de notícias para ouvir os comentários. Fiquei assustado com o grau de desonestidade de alguns dos intervenientes. Atacam António Costa por não se opor à realização do Congresso do PCP e por se “refugiar numa legislação de 1986”. Mas será que uma lei se cumpre em função da data de promulgação? Ou será que estes comentadores políticos consideram que o primeiro-ministro não deve cumprir a lei? Resolvi fugir. Mais grave ainda é o que se ouviu ontem em São Bento da boca de deputados que parece ignorarem qual é o órgão de soberania para que foram eleitos. Aparentemente, julgam estar na Assembleia Nacional do Estado Novo, num tempo em que de facto a lei permitia a proibição da actividade de partidos políticos desafectos ao Governo. É muito grave que isto se esteja a passar; e não é por acaso que se está a passar agora, num tempo em que o ataque directo à democracia se reorganiza em várias latitudes. É claro que, insistindo na realização do Congresso neste momento de aguda crise pandémica, o PCP comete um erro político de uma ingenuidade difícil de compreender num partido quase centenário. Óptimo contributo para a acção de agitação e propaganda da extrema-direita nascente.

João Maria de Freitas Branco
21 de Novembro de 2020

 

 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Nota sobre as eleições nos EUA: vitória política e vitória moral

 

Neste momento (15h do dia 6 de Novembro, em Portugal, 10h em New York) Joe Biden tem os votos suficientes para ser o 46º presidente dos EUA. É um facto político muito importante. Mas não me entusiasma. Não é só pelo facto de estar ideologicamente distante. É também porque o resultado eleitoral é uma vitória política mas é uma derrota moral. Não se assistiu ao desejável repúdio generalizado do projecto autocrático e da obscenidade trumpista. Isso deixa-me triste e preocupado. Note-se que Trump obteve até agora mais de 68 milhões de votos. É um grande resultado. Um resultado ameaçador. Depois de toda a imoralidade exibida, creio ter havido mais seis milhões de cidadãos americanos que decidiram ir votar neste sujeito execrável. Trata-se de uma enorme base social de apoio. Isto deve fazer-nos reflectir demoradamente. E atenção: está em curso um golpe autocrático com o objectivo de anular as eleições (ver o meu texto “Início do golpe”, no blog RAZÃO – razaojmfb.blogspot.pt – ou aqui na minha página do Facebook). Os votos contados dão a vitória a Biden no “voto popular” e no Colégio Eleitoral. Mas isso ainda não garante a derrota de Trump, porque desde as 19h de ontem (hora americana) ele passou para outro registo: o do golpe. Não sabemos ainda qual a capacidade real que tem de mobilizar a sua base social de apoio (que inclui numerosos grupos armados espalhados por todo o país). E, até agora, o Partido Republicano não se demarcou da acção golpista. Foi ganha uma batalha, mas a guerra está longe de ter terminado.

João Maria de Freitas Branco
6 de Novembro de 2020 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

EUA: início do golpe

 

A última comunicação de Donald Trump, feita por volta das 19h (hora local, meia-noite em Portugal) corresponde ao que eu esperava que acontecesse e, à primeira vista, parece não conter nenhuma novidade. Mas não é verdade. Trata-se de uma comunicação importantíssima e gravíssima que representa um novo passo: o que inaugura um golpe perpetrado a partir da Casa Branca (leia-se o que escrevi no jornal PÚBLICO, edição de 29 de Outubro).

Assistimos há poucas horas a um acontecimento que ficará inscrito na História: às 19h do dia 5 de Novembro de 2020 Donald Trump declarou publica e inequivocamente ser inimigo da democracia e pretender anular as eleições, gesto que abre caminho à completa destruição da democracia na América. Ficou claro que só aceita resultados eleitorais que lhe sejam favoráveis. O passo seguinte vai ser a convocação de manifestações e um apelo explícito à intervenção das milícias armadas que o apoiam. Vai assim tentar criar o caos nas ruas das principais cidades do país para depois poder declarar uma situação de excepção que inviabilize a transição de poder, anulando assim a eleição, a expressão da vontade popular, elemento basilar do Estado de direito democrático.

No momento em que redijo estas linhas tudo indica que Joe Biden vai vencer as eleições. O anúncio dessa vitória talvez ocorra já nas próximas horas, caso o resultado final na Pennsylvania lhe seja favorável. Há muita gente a pensar que isso colocará um ponto final neste processo. Que a partir desse anúncio da obtenção dos 270 votos no Colégio Eleitoral Trump está definitivamente derrotado. Enganam-se. Isso não passa de optimismo ilusório. A tentativa de golpe já em curso vai continuar.

Sei que alguns vão considerar o que aqui afirmo um exemplo de pessimismo alarmista, numa altura em que a derrota eleitoral de Donald Trump parece ser já uma certeza. Mas infelizmente não creio que seja o caso. Não pretendo de forma alguma ser alarmista. Apenas lanço um alerta: não se deixem iludir com a vitória eleitoral de Biden. Isso não vai fazer com que Trump desista. Ele (com o apoio dos seus aliados) já deu início ao golpe e não vai recuar por iniciativa própria. A vitória eleitoral de Biden vai ter que ser reforçada pela vitalidade das instituições democráticas, a começar pelos tribunais (estaduais e federais), e vai necessitar também de amplo apoio popular na rua, como forma de resistência ao golpe antidemocrático em curso.

Chegou o momento da verdade para a direcção do Partido Republicano: vai ela assumir a defesa da democracia ou vai ser cúmplice de um golpe instaurador de um regime autocrático nos EUA?

Já passaram mais de quatro horas e ainda só ouvi silêncio institucional (nenhum comunicado oficial do Partido, nenhuma intervenção formal em nome da direcção partidária), embora alguns republicanos já tenham repudiado pessoalmente a inacreditável comunicação presidencial.  

O que se está a passar nos EUA é o acontecimento político mais importante da actualidade no plano mundial. O que acontecer nos EUA nas próximas horas, dias ou meses irá ter repercussão planetária. A comunidade internacional não pode permanecer em silêncio. A União Europeia e países como nosso têm que reagir de alguma maneira ao discurso golpista de Donald Trump.

Foi iniciado, a partir da Casa Branca, um golpe contra a democracia. Ele foi publicamente anunciado pelo próprio presidente dos EUA às 19h do dia 5 de Novembro.

A Liberdade está debaixo de ataque. É preciso resistir!

João Maria de Freitas Branco

Às 4h:30 do dia 6 de Novembro de 2020

O inaceitável

Nas últimas horas, o presidente dos EUA e candidato eleitoral Donald Trump escreveu mais do que uma vez no Twitter o seguinte:

STOP THE COUNT!

Com maiúsculas e ponto de exclamação. Como se fosse um papá zangado a dar uma ordem aos seus filhotes. É isto admissível? Pode tolerar-se que um candidato queira interromper um escrutínio, anulando o voto expresso por centenas de milhares ou milhões de cidadãos eleitores? Fica provado que Trump é mais um daqueles que só aceita eleições desde que o vencedor seja obrigatoriamente ele.

Não se pode aceitar o inaceitável!

João Maria de Freitas Branco

5 de Novembro de 2020

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Uma eleição americana

Dia de eleições nos EUA. Eleições diferentes do habitual, porque desta vez é a própria democracia que está em jogo. Todos, à esquerda, à direita, ao centro, estão de acordo relativamente à singular relevância deste acto eleitoral. O seu resultado terá impacto mundial.

Leio o seguinte num site da direita cristã, dirigido à comunidade ibero-americana:

«Donald Trump se ha convertido en el último bastión en defensa de la Civilización Judeo-Cristiana. […] Nunca en la historia de EEUU había existido tal diferencia entre los programas de los dos candidatos, ya que el programa de cada uno no se reduce únicamente a la divergencia en propuestas concretas, sino a la propia concepción, bien distinta, de la civilización occidental.

El Partido Republicano de Donald Trump se ha convertido en el último resorte de la defensa del pensamiento occidental cristiano, con un programa centrado en la protección de la vida, la familia, la libertad y la propiedad privada.»

Brien Burch, um líder cristão estadunidense, presidente da organização CV-Catholicvote, também tem apelado ao voto em Trump.

Pensava que a mentira, a difamação, o racismo, o ódio, o apelo à violência, o assédio sexual, o acto de desunir os seres humanos, a defesa do uso de armas de fogo, etc., eram coisas contrárias aos princípios do cristianismo e que por isso um autêntico cristão teria dificuldade em simpatizar com um sujeito como Donald Trump. Mas vejo não ser essa a opinião destes militantes cristãos. No entanto, há quem os contrarie inequivocamente a partir do centro da Igreja Católica. Leiam-se estas linhas retiradas de um escrito recentemente publicado e que me soam bastante mais cristãs:

«Usa-se hoje, em muitos países, o mecanismo político de exasperar, exacerbar e polarizar. Com várias modalidades, nega-se a outros o direito de existir e pensar e, para isso, recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los. Não se acolhe a sua parte da verdade, os seus valores, e assim a sociedade empobrece-se e acaba reduzida à prepotência do mais forte. […] Nesta luta de interesses que nos coloca a todos contra todos, onde vencer se torna sinónimo de destruir, como se pode levantar a cabeça para reconhecer o vizinho ou ficar ao lado de quem está caído na estrada? Precisamos de nos construir como um “nós” que habita a casa comum.» Papa Francisco, Carta Encíclica “Fratelli Tutti”, p.15.

Fica uma certeza: este cristão católico, que até é Papa, jamais votaria numa criatura como Donald. Já me sinto mais “católico”… Quantos outros Franciscos estarão agora a votar nos EUA contra a obscenidade política?

João Maria de Freitas Branco

3 de Novembro de 2020

 

sábado, 31 de outubro de 2020

Trump - neutralidade?

Não resisto a confessar aqui, publicamente, ter ficado arrepiado com o debate sobre as eleições americanas na SIC-Notícias, ontem (29/10/2020), no programa “Expresso da Meia-Noite”. Como se pode falar de Donald Trump normalizando-o? Em nome da neutralidade? Mas como pode um jornalista que se preze ou um comentador democrata ser neutral perante um sujeito que diz que «os media são inimigos do povo», que anunciou nas Nações Unidas estar pronto para apagar do mapa a Coreia do Norte, destruindo-a com recurso a armas nucleares, que é racista e elogia nazis, que nega a ciência, que simpatiza com o movimento QAnon, que mente de forma sistemática, que difama, que apela à intervenção de milícias armadas, que grita «Libertem o Michigan!» e não condena a tentativa de sequestro e assassinato da governadora desse estado? Etc., etc. Como se pode alimentar uma atitude de neutralidade face a um candidato tão execrável? Como se pode considerá-lo “normal”? Fico assustado.

João Maria de Freitas Branco

31 de Outubro de 2020

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Luís de Freitas Branco: Ensaios sobre Beethoven

 

Neste ano em que se comemora com indesejáveis limitações pandémicas o 250º aniversário do nascimento do grande Ludwig van Beethoven, é com satisfação que venho aqui anunciar que já se encontra disponível nos escaparates (reais e virtuais) das livrarias a nova edição dos dois ensaios beethovenianos escritos pelo meu Avô, o compositor e musicólogo Luís de Freitas Branco, nos anos 40 do século passado e originalmente publicados na Biblioteca Cosmos, dirigida por Bento de Jesus Caraça. A presente edição, com a chancela da Editorial Caminho, reúne num único volume os dois ensaios e interrompe um longo período de quase inacessibilidade a estes escritos que fazem parte do nosso património musicológico. Quero aqui agradecer publicamente ao amigo editor Zeferino Coelho o entusiasmo com que acarinhou este projecto editorial. Sem o seu empenho os textos teriam continuado a estar afastados das novas gerações de leitores. Quero ainda saudar a enriquecedora colaboração de outro amigo, o musicólogo Paulo Ferreira de Castro, que competentemente prefaciou o volume agora disponibilizado.

Referência bibliográfica:

FREITAS BRANCO, Luís de: “Beethoven – vida e personalidade”, Editorial Caminho, Lisboa, 2020, 184 pp.

 

João Maria de Freitas Branco

27 de Outubro de 2020

 

 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

NOTA DE UM CIDADÃO PREOCUPADO

NOTA DE UM CIDADÃO PREOCUPADO

 

A direita antidemocrática portuguesa tem manifestado crescente admiração por Donald Trump. O desejo de que seja ele o vencedor das eleições no próximo dia 3 de Novembro tem sido explicitado de várias formas. É uma atitude legítima e coerente. Porque a liberdade de opinião deve ser total e porque, como um terramoto, Trump tem estado de facto a abalar os pilares da democracia na América, para utilizar a expressão de Alexis de Tocqueville. E prepara-se para demolir o pilar Eleições, fazendo com que muitos votos por correio não sejam contabilizados, por presumir serem-lhe desfavoráveis. Estou convicto de que nunca aceitará a derrota e transferência de poder. Fará tudo o que estiver ao seu alcance, seja ou não legítimo, para distorcer a seu favor o resultado eleitoral. A partir da madrugada do próximo dia 4 de Novembro a situação nos EUA será muito incerta e extremamente perigosa, para a América e para o mundo. Não vejo por cá, nem por lá muita gente consciente desses perigos reais. Já foram ultrapassadas demasiadas linhas vermelhas sem que o clássico system of checks and balances tivesse funcionado como travão eficaz. Temo o pior – incluindo o confronto armado.

Algumas pessoas dessa direita simpatizante do candidato republicano, sabendo-me defensor do valor da tolerância (no sentido moderno do termo), vêem na atitude crítica que tenho publicamente assumido um gesto de incoerência. Não compreendo o reparo. Primeiro porque a minha crítica não amordaça o opositor, nem em caso algum pretende fazê-lo; apenas esgrime argumentos (ou contra-argumentos) com o objectivo de fundamentar uma discordância profunda, esgrimindo contra o que considero ser uma verdadeira ameaça civilizacional, por concorrer para a estruturação do totalitarismo e para o apagar de conquistas históricas fundamentais. Repito: a liberdade de opinião deve ser total, pois só assim se garante a Liberdade. Em segundo lugar, penso que a idiotice não merece consideração, se bem que cada um de nós possa exibir livremente opiniões e comportamentos idiotas – como os de Donald Trump ou outros quaisquer.

João Maria de Freitas Branco

Caxias, 23 de Outubro de 2020

 

 

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

PENSAR -- UMA FORMA DE HOMENAGEAR PATY

 

A horrorosa morte do professor Samuel Paty tem um enorme valor simbólico. Depois de ler e escutar algumas opiniões, nomeadamente as expressas no Facebook, em trocas argumentativas mais ou menos inflamadas, desejo trazer à colação alguns factos e propor um exercício de reflexão, esperando assim poder concorrer para o enriquecimento do debate, bem como para a dilucidação de algumas graves questões relacionadas com o acto terrorista e que tanto agitam o ambiente, em Portugal e no mundo.

Como primeiro contributo para a discussão, deixo aqui a memória de um acontecimento histórico esquecido e até intencionalmente ocultado. No dia 17 de Outubro de 1961, em pleno centro de Paris, a polícia francesa matou um elevado número de pessoas que participavam numa manifestação de argelinos, manifestação pacífica organizada pela federação de França do FNL (Front de Libération Nationale). Muitos dos manifestantes foram lançados pelos polícias para as águas do rio Sena a partir da ponte Saint Michel e de outras pontes do centro da cidade. A operação policial repressiva foi ordenada e comandada pelo então chefe da polícia de Paris, Maurice Papon, um criminoso de guerra (do período da ocupação nazi). Ainda hoje se desconhece o número exacto de vítimas mortais. Algumas estimativas apontam para 150/200 mortos. Não pensei que me enganei na data e no local. Não. Não foi no ano de 1261, nem outro qualquer 61 anterior ao século XX. Nem foi em nenhuma capital de uma república das bananas. Foi em Paris, capital de França e do Iluminismo, no ano de 1961, há apenas cinquenta e nove anos. E em 2011, por ocasião do 50º aniversário, o então presidente da República Francesa, Nikolas Sarkosy, impediu que se realizasse uma cerimónia oficial evocativa do massacre.

Para além desta memória quase apagada, recomendo que pensem numa violência bem mais recente: o assassinato de dois manifestantes em Agosto último, no Wisconsin, e perpetrado por um jovem de 17 anos, militante de extrema-direita, que percorreu muitos quilómetros para ir estabelecer a “lei e ordem” propugnada por Donald Trump. Vêem alguma semelhança entre o imã extremista que através das redes sociais instigou à violência (fazendo com que um jovem de 18 anos saísse de casa para decapitar um professor que não conhecia e que vivia a cerca de cem quilómetros de distância) e o presidente Trump? Se virem, é capaz de não ser pura coincidência. Sugiro um exercício: elaborem a listagem dos ideais e dos principais princípios programáticos do islamismo radical e do trumpismo; concluída a compilação, comparem os respectivos conteúdos listados.

Pensem bem!  

João Maria de Freitas Branco

Caxias, 21 de Outubro de 2020

domingo, 18 de outubro de 2020

Como se mata a democracia

 

Uma das notícias do dia que mereceu chamada à primeira página de um jornal:

Deputada transforma falsificação em “imprecisões no registo comercial”.

Trata-se de uma deputada do PS que falsificou um documento para evitar ser acusada e constituída arguida num processo em que o marido (ex-presidente de uma câmara municipal) será julgado. A deputada em causa, que chegou a ser vice-presidente do Grupo Parlamentar do PS em três mandatos, não apresentou a sua demissão e nada indica que tenha intenção de o fazer. No entanto, é claramente inadmissível que uma pessoa que comprovadamente falsificou documentos permaneça no Parlamento.

Muitos terão reagido à notícia com indignado lamento por mais um caso de falta de ética no comportamento de um responsável político, outros terão optado por um resignado encolher de ombros. O caso foi revelado na imprensa no dia 25 de Setembro deste ano. Passaram 23 dias. Será que o Partido Socialista vai tomar posição em defesa da dignidade do seu Grupo Parlamentar? Ou será que vai admitir o inadmissível?

A conclusão a que quero chegar: um caso como este é mais letal para a democracia do que muitos discursos de políticos de extrema-direita. Alguns dos maiores inimigos da democracia vestem a pele de democratas.

 

João Maria de Freitas Branco

Caxias, 18 de Outubro de 2020

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Debate eleitoral?

Ao longo do dia de hoje, todos os grandes órgãos de comunicação espalhados pelo mundo estão a noticiar a realização de um debate político eleitoral. O primeiro debate entre os dois principais candidatos à presidência dos EUA, Donald John Trump e Joseph Robinette Biden (mais conhecido por Joe Biden).

 Essa atenção generalizada tem plena justificação, uma vez que o resultado da eleição presidencial estadunidense se repercute directa ou indirectamente na vida de cada um de nós, na realidade de cada região, de cada país, de cada continente. Uma única decisão do presidente dos EUA e da sua Administração pode abalar a paz mundial, acabar com a civilização humana e até pôr fim à vida na Terra. Mesmo pondo de parte a hipótese de catástrofe nuclear, a salvação do Planeta enquanto espaço acolhedor de vida, humana e não humana, passa em grandíssima medida pelo empenhamento dos EUA em políticas ambientais que se traduzam em acções de efectivo combate ao aquecimento global e à poluição.

  No entanto, essa principal notícia do dia é essencialmente falsa. Mais um caso de fake news, mesmo tendo a atenuante da não intencionalidade, como adiante se perceberá.

Que me leva a classificar assim uma notícia tão clara e objectiva? Onde está a falsidade dessa notícia que por todo o lado circula? Explico: o que está a ser noticiado é uma impossibilidade. Está a ser anunciada a realização de uma coisa impossível de se realizar. Eis a razão da falsidade apontada.

O acontecimento que está a ser anunciado, um debate político entre dois sujeitos, Joe e Donald, nunca poderá ter lugar. Esta previsão é fácil de fazer. Um dos sujeitos envolvidos não satisfaz os supostos mínimos para que se possa realizar um debate político autêntico. Por isso, o que vai ter lugar dentro de poucas horas (por volta da meia-noite portuguesa) é um encontro entre dois candidatos a uma eleição num palco mediático, mas nunca será um debate.

Duas pessoas não podem manter discussão séria sobre um tema se pelo menos uma delas for totalmente ignorante na matéria em causa, se for destituída da capacidade de racionalização, se não souber distinguir entre o verdadeiro e o falso, os factos e as mentiras/ilusões, a legalidade e a ilegalidade, e se, para além disso tudo, for um indivíduo desprovido de ética e de moral, um completo agente da desonestidade (em todos os registos). Uma simples conversa a dois em que um dos sujeitos envolvidos mantenha, por inépcia ou intencionalidade, um discurso essencialmente irracional tenderá a ser um acto estéril. Se for um debate, uma discussão de ideias, a consequência do investimento será ainda mais decepcionante, dado o indeclinável curto-circuito causado pelo contacto do puro discurso irracional com o discurso racional. É por isso que quando acidentalmente nos cruzamos com uma víbora num caminho estreito convém não optarmos por tentar encetar uma discussão sobre direitos de utilização daquele exíguo espaço.

Receio que Joe Biden caia no erro colossal de querer realizar o impossível: um debate com a víbora.

João Maria de Freitas Branco

Caxias, 29 de Setembro de 2020

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Convocar a memória

Depois de ontem terem sido tornadas públicas umas certas propostas políticas. Convém trazer à memória as Nürenberger Gesetze, de 1935. Também é recomendável rever o filme “Judjement at Nuremberg”, realizado por Stanley Kramer no início dos anos 60. Lembram-se da cena protagonizada por Montgomery Clift , interpretando admiravelmente o papel de uma das testemunhas? É preciso saber-se recolher os ensinamentos da História.

sábado, 19 de setembro de 2020

Fátima e a pandemia

Nem todos os crentes católicos acreditam nas aparições de Fátima (nem a tal estão obrigados); mas ao que tudo indica há uma grande maioria que acredita, e muitos destes, movidos pela sua fé, foram ao santuário em busca de uma milagrosa cura para as suas maleitas mais gravosas. O fotógrafo Alfredo Cunha captou artisticamente as figuras, os rostos, o sofrimento, o profundo sentimento religioso desses fiéis e peregrinos (álbum publicado em 2017). Para todos esses crentes, Fátima é local de cura, é espaço sagrado negador da doença, por efeito de intervenção sobrenatural. Como se pode obrigar esses fiéis de Fátima a acreditar que o santuário possa ser agora perigoso local de contágio, espaço onde se corre sério risco de adoecer? Como pode a Covid-19 propagar-se nesse local sagrado de cura? Como se justifica que os fiéis sejam proibidos de aí se juntarem por causa da ameaça de um vírus? Como aceitar essa contradição sem insultar a inteligência? Recorde-se que Jacinta Marto e Francisco Marto, dois dos três pastorinhos de Fátima, morreram em consequência de uma pandemia (a da pneumónica ou gripe espanhola) pouco tempo depois de terem observado a alegada aparição de Nossa Senhora na Cova da Iria. (Dispenso-me de tecer considerações sobre o modo como a comunicação social tratou o acontecimento religioso do passado dia 13 de Setembro, em Fátima, em comparação com o tratamento dado à Festa do Avante. Os factos são suficientemente claros para que cada um possa tirar as suas conclusões sobre a actual independência da imprensa.) João Maria de Freitas Branco 19 de setembro de 2020

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Festa do Avante!

Saúdo a Festa do Avante que hoje abre as portas ao público. Faço-o por duas razões principais: 1) esta realização sublinha o facto de a democracia portuguesa e o Estado de direito democrático estarem e deverem estar em pleno funcionamento, actuando como ferramentas políticas essenciais no combate à pandemia, bem como a outras ameaças que pairam sobre o nosso viver societal; 2) esta realização contribui, ou pode contribuir para a criação de um estado de ânimo e de uma atitude colectiva facilitadora da restruturação do funcionamento da nossa sociedade sob as condições anómalas de uma pandemia, fazendo-nos acreditar na possibilidade de superação do problema de saúde pública sem que para isso se tenha que regressar a medidas radicais de confinamento generalizado. Estas duas razões para uma saudação não inibem os receios nem tão pouco a consciência crítica de terem existido da parte do PCP e das autoridades governamentais erros, incorrecções, subestimações, imprudências, teimosias que podem ter consequências nefastas, desde logo no plano da saúde pública. O compreensível sentimento colectivo de ter havido “tratamento desigual” é para já o efeito mais oneroso. Na esfera da saúde, ninguém duvida ser mais arriscado realizar a Festa do que tê-la cancelado; mas na vertente política, suspeito que haveria maior risco se tivesse sido cancelada. Esta 44ª edição da Festa do Avante é a primeira que se realiza sem a participação de Ruben de Carvalho, meu saudoso amigo, a quem se devem os melhores momentos de arte musical dos 43 anos de história do evento (de 1976 a 2019). Embora tenha falecido em Junho de 2019, ainda se dedicou à preparação da edição anterior. Uma outra ausência de vulto é a de outro saudoso amigo: o Manuel Jorge Veloso, que morreu em Novembro de 2019 e que sempre esteve ao lado do Ruben no trabalho de concepção e concretização da programação artística. Tenho a satisfação de ter trabalhado directamente com ambos ao longo de vários anos. Aqui lhes presto a minha sentida e amiga homenagem. João Maria de Freitas Branco Caxias, 4 de Setembro de 2020

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Nikias

Na passada quarta-feira, dia 26 de Agosto, faleceu o pintor melómano e resistente antifascista Nikias Skapinakis. Tinha 89 anos e muitas décadas de vida intensamente criativa dedicada às artes plásticas. Comovido com a chegada da triste notícia, e viajando mentalmente pelas saudosas memórias dos tempos, já recuados, em que o Nikias frequentava a minha casa, venho aqui recomendar que vejam o filme documentário transmitido pela RTP-2, no Sábado, dia 28 de Agosto; uma bonita homenagem cinematográfica ao pintor e à sua obra, em que as telas que nos são dadas a ver pela rigorosa e generosa objectiva da câmara de filmar surgem na companhia de música muito amada pelo artista, assíduo frequentador das salas de concertos de Lisboa, sua cidade natal. O bom documentário é da autoria de Jorge Silva Melo e foi realizado no ano de 2007, quando o artista tinha 76 anos e já concluíra mais de oitocentas criações pictóricas. João Maria de Freitas Branco Caxias, 1 de Setembro de 2020

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Eutanásia - em dia de votação


Nos cartazes erguidos na manifestação de hoje à tarde em frente da Assembleia da República, onde agora decorre o debate sobre os projectos de despenalização da eutanásia, podiam-se ler frases como: «não matem os velhinhos», «quem somos nós para matar?», «não à cultura de morte», «fé na vida», «quero cuidados paliativos», «eu sou pela vida». Estas frases são magnífico exemplo daquilo a que costumo chamar discurso da confusão (ou seja, um discurso que contribui para aumentar o estado de confusão, para ampliar o ruído) e, por isso mesmo, são também afirmações bem demonstrativas dos motivos que desaconselham a realização de um referendo sobre a eutanásia. Em grande parte, as recentes intervenções públicas contra a despenalização da eutanásia concorreram, voluntaria ou involuntariamente, para semear a confusão. Nenhum dos opositores à despenalização da eutanásia conseguiu responder ao problema existencial da “cabeça sem corpo” trazido ao debate internacional sobre a eutanásia e o suicídio assistido pelo tetraplégico espanhol Ramón Sampedro. Espero que em Portugal, muito em breve, os Ramóns passem a ter plena liberdade para poderem decidir pôr termo ao seu sofrimento.
João Maria de Freitas Branco
Caxias, 20 de Fevereiro de 2020

 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Sobre a despenalização da eutanásia



 

Como se pode adivinhar, muito há para filosofar sobre a eutanásia. Mas agora quero apenas dizer três coisas sobre a despenalização da eutanásia:

A eutanásia é praticada há muito tempo nos hospitais, bem como em outras instituições que acolhem pessoas em situação de sofrimento agudo associado a estados de doença terminal. Tem sido uma eutanásia escondida, realizada na penumbra, sem regras, sem controlo. O passo que se pretende dar com a nova iniciativa legislativa confere transparência e rigor a todo o processo. Nesse sentido, concorrerá para reduzir a possibilidade de prevaricação ou crime.

A eutanásia confere uma liberdade essencial: a de eu poder decidir sobre a minha morte, momento crucial da vida. Quem por razões filosóficas, religiosas ou outras não se considera senhor do seu corpo e entende não dever ser submetido a eutanásia, não vê a sua liberdade violentada pela legislação despenalizadora, porque ela não obriga ninguém a praticar a eutanásia; ela apenas despenaliza quem livremente escolhe para si essa forma de morrer. E assim sendo, nenhum ser humano que seja contra a eutanásia será lesado. A lei da despenalização confere liberdade, não retira liberdade.  

É ética, moral e intelectualmente inaceitável que alguém – pessoa singular ou colectiva -- em nome de uma qualquer crença, ideologia, convicção ou concepção do mundo tenha a pretensão de querer decidir sobre a morte de um outro ser humano, seja qual for a relação mantida com esse outro. Nisso se fundamenta o rejeitamento da pena de morte.

Em certo sentido, a morte pode ser considerada o momento mais importante da vida; é um momento que mesmo quando não vivido conscientemente condiciona toda a nossa vida. Dignificar a morte é dignificar a vida, e a despenalização da eutanásia serve essa dignificação em nome da Liberdade.
João Maria de Freitas Branco
14 de Fevereiro de 2020

 

A eutanásia e a estranha declaração


 

Olhei para o ecrã da televisão na altura em que era dada uma notícia sobre a legalização da Eutanásia e pareceu-me haver incongruência entre som e imagem. “Não matem”, ouvia-se, e logo supus ser afirmação de algum bolorento bispo católico exercitando o seu conservadorismo; mas na imagem via-se a figura do líder do PCP, Jerónimo de Sousa. Como podia tão grande despautério reaccionário vir da boca do líder de um partido que continuamente se diz progressista? Outra voz, a do pivot, logo esclareceu: no próximo dia 20, na Assembleia da República, o PCP vai votar contra os cinco projectos de lei apresentados tendo em vista a despenalização da eutanásia – inclusivamente contra o projecto do seu parceiro de coligação, o PEV. É verdade que o PCP já tinha votado conservadoramente contra a despenalização da eutanásia em 2018, mas esperava-se que, dizendo-se progressista, tivesse progredido. Sendo assim, ou fica isolado ou vota ao lado do CDS e do Chega. Quanto à proposta de realização de um referendo para referendar o “inreferendável “ – porque «a vida não se referenda» como disseram vários dos partidos com representação parlamentar (BE, PEV, PS, PAN, IL) --, o PCP conserva um ensurdecedor silêncio.

A morte é um dos mais importantes momentos da vida. Por isso, dignificar a morte é dignificar a vida!
João Maria de Freitas Branco
14 de Fevereiro de 2020
 

 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

A filosofia de uma vida escondida


 
Se existe no cinema um género filosófico, o último filme do realizador americano Terrence Malick, A hidden life (Uma vida escondida), terá lugar assegurado como película bem representativa desse tipo de cinematografia. No entanto, esse perfil filosófico do filme é herdado. A dimensão filosófica antecede a filmagem. Ela já lá está, prêt-à-porter e com toda a sua pujança, na história real em que a obra de Malick se inspira de fio a pavio: a da vida concreta de um homem vulgar (no sentido literal, de ser do vulgo), anónimo camponês austríaco nascido em 1907. O seu nome é Franz Jägerstätter. Até bem perto da sua morte prematura, aos 36 anos, a vida desse homem era mais um exemplo, entre biliões de outros, daquilo a que George Eliot chamou “vida escondida” numa passagem do seu romance Middlemarch: a study of provincial life (1871), trecho citado por Terrence Malick nos fotogramas que encerram o filme. Uma coda que, no fundo, nos remete para o início, uma vez que as primeiras imagens que nos são dadas a ver já albergam, em forma não-verbal, o essencial do conteúdo da asserção de Eliot, depositando no regaço da nossa inteligência elementos propiciadores de um reflectir sobre a importância das vidas escondidas, e fielmente cumpridas, desses «que repousam em túmulos que já ninguém visita». É a primeira questão filosófica introduzida pelo filme. Todos os seres humanos que levam uma vida razoável, liberta de males maiores, devem estar profundamente agradecidos aos sujeitos que protagonizaram e protagonizam as vidas escondidas.

Esta primeira mensagem, dada sob a forma imagética, envia-nos de imediato para o que se afigura ser o objectivo central do cineasta: fazer o elogio da autenticidade. A autenticidade da relação com a paisagem – generosamente oferecida ao espectador pela câmara através de demorados planos, de enquadramentos rigorosamente desenhados e de imagens magníficas; a autenticidade da ligação à terra que é trabalhada, cultivada, tratada, acariciada, entranhando-se no próprio corpo do cuidador; a energia que emana da paisagem, a força da montanha; o intenso convívio com as entidades biológicas presentes nesse espaço – ervas, arbustos, árvores, animais, seres humanos; a veracidade das relações familiares; a autenticidade da relação com o outro no espaço sociocultural, no quadro dos hábitos cimentados, dos costumes, das tradições, das crenças, dos preconceitos, das ilusões e das desilusões, das convicções, dos sonhos, das utopias.

Em conformidade com o objectivo traçado, o cineasta filma com robusta competência os elementos (água, ar, terra, fogo), a acção prática do homem, bem como as sonoridades e os não menos preciosos silêncios que estão associados a ambos (aos elementos e à acção humana), dando consistência aos significados de uma ambiência global (natural e cultural). A fidelidade à realidade que inspira o gesto artístico é notável em quase todas as opções do realizador. Há uma, porém, que traí. Traí a autenticidade nuclear. Incompreensivelmente. Erro grave que subjaz ao que talvez seja o principal defeito da obra: a escolha da língua; o trazer o inglês americano, elemento alienígena, para dentro dessa ambiência rural austríaca. A autenticidade é violentada por essa opção.

Mas não pretendo deter-me no objecto cinematográfico, ou seja, na análise crítica de um filme. Não é essa a finalidade deste escrito. Interessa-me, neste momento, o conteúdo filosófico que a obra de cinema oferece ao receptor. Um conteúdo que é trazido de dentro de um personagem real para se projectar na tela. Sim, porque esse Franz que habitou o Planeta num breve período histórico marcado por duas guerras mundiais, dois momentos maiores de niilismo, entre 1907 e 1943, era ele próprio portador de um essencial conteúdo filosófico, elemento imaterial: o problema da consciência moral e de como ela condiciona o agir. As circunstâncias motivaram que um ser humano vulgar se tivesse tornado sujeito invulgar. Na Áustria nazificada, resultante do Anschluss (12 de Março de 1938), um simples agricultor sem ligações políticas recusa-se a colaborar com os alemães e a respeitar a ordem de recrutamento que impunha que se alistasse na Wehrmacht para participar na guerra contra os Aliados. Essa atitude põe em causa a sua própria vida. Ninguém compreende a sua escolha desrespeitadora da lei, da ordem estabelecida e aceite pela generalidade do povo austríaco. Franz é ostracizado pelos seus. Vizinhos, conterrâneos, amigos, todos condenam a sua atitude de desobediência. Sendo homem de profunda fé cristã que exerce a função de sacristão na igreja local, Franz procura conforto junto das autoridades religiosas que também o abandonam por estarem cumplicemente flectidas perante o novo poder. Julgado e condenado à morte pelos nazis, no Reichskriegsgericht (tribunal de guerra do Reich) de Berlim-Charlottenburg, no dia 6 de Julho de 1943, Franz Jägerstätter é executado na guilhotina no dia 9 de Agosto de 1943, na prisão de Brandenburg-Görden, por ter decidido, em função de uma profunda tomada de consciência, não aceitar a barbárie institucionalizada e não servir o Mal.

Franz Jägerstätter é geralmente apresentado como um objector de consciência, o que embora não sendo completa inverdade é, no entanto, uma declaração enganadora. Porque no seu caso não se trata de incompatibilidade com o serviço militar ou com as Forças Armadas. Ele não se declara defensor de um pacifismo absoluto. Os dados biográficos que possuímos permitem-nos concluir que se fosse francês, inglês, russo ou americano, Franz teria participado no esforço de guerra contra o nazi-fascismo, alistando-se nas forças armadas do seu país natal embora desempenhando preferencialmente funções que não o obrigassem a disparar armas contra o inimigo. A sua recusa radical não é a do cumprimento do serviço militar obrigatório mas sim a da colaboração com os nazis; ou melhor, com o nazismo, por este ser uma expressão do Mal. Sem nada saber sobre o pensamento de Sócrates (que, no fundo, é a situação de todos nós, incluindo a dos profissionais da filosofia e dos historiadores do pensamento ocidental) Franz Jägerstätter põe em prática, materializa sob a forma de agir social concreto a fórmula moral atribuída ao filósofo ateniense: é preferível submetermo-nos à injustiça do que cometer a injustiça. A regra moral platónica aparece inscrita no próprio discurso do protagonista como uma espécie de citação de Sócrates (não declarada, também por ser impossível devido à ausência de fontes absolutamente fidedignas ou incontroversas).

Nos diálogos ficcionados, bem temperados de significado filosófico, o personagem principal afirma a dado passo: «é-me impossível não escutar a minha consciência». Talvez a frase seja uma citação literal de alguma carta do Franz real. Desconheço se é ou não, embora possamos estar certos de que ele verbalizou esta sua interioridade. Frases iguais ou semelhantes foram ditas e repetidas ao longo dos tempos, em momentos históricos e em situações muito diferentes da que foi vivida por Franz e, como é natural, são ditas também nos dias de hoje. Mas será que o seu significado se mantém inalterado? Será o mesmo? Não me parece. Por isso, o que agora desejo pôr em evidência, por ser questão muito relevante para o nosso viver actual, aqui e agora, é a diferença de significado. Questão não problematizada no filme, desde logo porque a acção se situa integralmente na época em que o protagonista viveu, mas que acaba por ser proposta ao espectador de modo involuntário e forma indirecta, sem que por detrás disso haja, como é óbvio, a clara intenção geral do realizador de dar a ver um caso exemplar e por isso mesmo desejavelmente inspirador de condutas reais no tempo presente.

No quadro do hodierno comportamento humano, escutar a própria consciência significa algo de muito diferente daquilo que o perseguido Franz quis transmitir às autoridades nazis, aos representantes da Igreja, aos seus conterrâneos, assim como aos seus entes mais queridos. Neste nosso tempo, alguém afirmar que só escuta a consciência significa que está determinado a fazer aquilo que lhe apetece, aquilo que subjectiva e individualmente entende fazer, exercendo a sua liberdade pessoal e tendo em vista a mais plena satisfação possível dos seus interesses individuais imediatos, dos seus caprichos pessoais, dos seus ganhos e conveniências particulares numa imediatez instante. Quer isto então dizer que essa escuta tem hoje uma significação dominante oposta à que nos é presente no comportamento edificativo de Franz Jägerstätter nos anos quarenta do século passado. Porque, como se sabe, o modesto agricultor não hesitou em escolher o caminho contrário ao das suas conveniências pessoais, imediatas e mediatas, indo ao extremo de secundarizar a própria preservação da sua existência para poder dar resposta a um desafio moral, a uma interpolação ética ditada pela sua circunstância. Um caminho que colocou a morte diante de si.

Esta forte desconformidade entre dois modos de conceber a voz da consciência, esta oposição de significados, confronta-nos. Obriga-nos, ou deverá obrigar-nos a reflectir sobre a atitude hoje abertamente recomendada pelo individualismo reinante, pelo pensamento dominante que subjaz a coisas como o empreendedorismo, o marketing, a indústria e o comércio da felicidade, a psicologia positiva, o coaching, as doutrinas do desenvolvimento ou aperfeiçoamento pessoal, o desmedido caudal de publicações centradas no prazer do eu, no bem-estar individual, no cuidar de si, na apologia do sorriso permanente. Numa sociedade cada vez mais povoada por diversas variedades de sujeitos obcecados pela sua felicidade (os “felicicondríacos”) e que olha com crescente desconfiança para o sofredor, para a vítima, para o doente, para o fracassado, um homem como Franz Jägerstätter tenderá a ser considerado um completo parvo, um apoucado de inteligência que, por padecer desse defeito, não consegue gerir os seus interesses, não consegue governar-se. No fundo, à luz da ideologia que se tem vindo a estruturar como dominante, ideologia de cunho neoliberal e individualista (existem apenas indivíduos, como diria o economista austríaco Friedrich Hayek ou a sua fiel seguidora Margaret Thatcher) o agricultor austríaco arrasta consigo a culpa da irresponsabilidade de ter feito uma escolha errada e parva. Não soube moldar-se à circunstância. Por isso, acaba por ser ele próprio o principal culpado do seu infortúnio, com a agravante de ter lesado também os interesses de outros, desde logo os das suas filhas menores, assim como os da sua jovem mulher. Na secção de vencedores/perdedores, típica da imprensa actual, Franz logo seria etiquetado de “perdedor”, a loser, e teria direito a uma bela seta a apontar para baixo. Poderia o nosso Aristides de Sousa Mendes escapar a esta classificação? Não fez ele a mesma escolha? E esse outro Franz, o padre Franz Reinisch que tanto influiu no comportamento de Jägerstätter? E o compositor Viktor Ullmann e o jovem poeta Peter Kien? E Bernhard Lichtenberg? E Maximiliano Maria Kolbe? São todos losers?

Confrontam-se aqui diferentes tipos de moral ou de filosofias da moral. Há desde logo a clivagem entre a moral religiosa e a moral laica. No entanto, no que se refere ao problema central que o caso Jägerstätter chama à colação, que é o de saber o que devo eu fazer, como devo eu agir quando confrontado com o grande mal organizado – corporalizado em instituições e até mesmo no Estado, no seu todo, no conjunto do aparelho estatal –, a separação religioso/laico não se traduz em respostas comportamentais necessariamente diferenciadas, como fica bem demonstrado nos muitíssimos exemplos históricos em que crentes e agnósticos/ateus convergiram numa mesma atitude oposicionista, de completa rejeição da estruturação do mal. Perante o Reich hitleriano, houve comunistas ateus, como Ernst Thälmann, e padres católicos, como o já aqui citado Bernhard Lichtenberg, que, no fundamental, fizeram a mesmíssima escolha, obedecendo ao imperativo moral da rejeição de um regime imoral, como logo se adivinha quando olhamos para as datas e locais de falecimento desses dois homens (respectivamente, Agosto de 1944, em Buchenwald, e Novembro de 1943, no caminho para Dachau). No caso vertente, estamos perante alguém mergulhado no universo da moral católica associada à teologia do sofrimento. O cristianismo, de uma forma geral, mas em particular o cristianismo católico, divergiu da maioria das correntes de pensamento da Antiguidade no que se refere ao entendimento do sofrimento, do prazer e da felicidade. Trata-se de uma mudança que em diferentes épocas irá determinar, de modo directo ou indirecto, várias morais, ou formas de conceber a moral e a ética. De modo particularmente vincado, no plano da existência terrena o catolicismo secundariza o prazer e a felicidade ao mesmo tempo que confere primazia ao sofrimento. Distanciando-se do epicurismo, do hedonismo, do estoicismo, mas também de religiões como o budismo e outras, o cristianismo institui aquilo a que já alguns autores chamaram a “filosofia da infelicidade”. O casal Jägerstätter segue essa filosofia, assimilando a moral que lhe está associada. No próximo grande debate nacional, que será sobre a eutanásia, e que agora se vai adensar em Portugal a partir de uma sessão plenária na Assembleia da República já agendada, essa moral católica vai ter enorme peso, porque à luz dessa “filosofia do sofrimento” a eutanásia, por ser, por definição, uma intervenção contra o sofrimento, uma abrupta interrupção dos tormentos do doente em estado terminal (o étimo grego euthanasía significa morte feliz ou morte fácil), é uma prática inadmissível. Desde logo porque a morte de Cristo, enquanto morte paradigmática, com a sua forte dimensão simbólica (morte na cruz, não fácil nem feliz e modelo exemplar da acção desinteressada), transportou para o interior da cultura humana uma outra visão do sofrimento. Uma visão positiva. Porque ele é muitas vezes um factor decisivo na aproximação a Deus. Conduz-nos à união com Deus – configuração do eu com o Eu divino. Nesse sentido, o Bem está no experienciar da infelicidade, ou está mais aí do que na felicidade. E se assim é, abreviar o sofrimento através de uma morte infligida (abreviação voluntária da própria vida) é obstaculizar o caminho para Deus, comprometendo a salvação. 

As morais laicas e humanistas que se desenvolveram na Europa setecentista afastaram-se deste concebimento da felicidade/infelicidade. Também elas não irão deixar de marcar presença no debate coevo sobre a eutanásia. No mundo contemporâneo ocidental tem prevalecido a moral laica do welfare associada ao capitalismo e que, por isso mesmo, se expandiu a partir da cultura anglo-saxónica do século XVIII. Essa moral laica, que se distingue de outras concepções não menos laicas (como a kantiana), está umbilicalmente associada ao utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. No quadro desta corrente de pensamento o homem é definido como ser provido de um interesse fundamental: conquistar o bem-estar (welfare) e a felicidade. Em coerência com essa definição, a acção humana interessada passará a ser valorizada em detrimento do agir desinteressado do crucificado. O bem, concebido como aquilo que concorre para a satisfação do interesse fundamental (a felicidade), é deslocado para longe do sofrimento, passando a estar no pólo oposto. Se é certo que o utilitarismo é uma forma de eudemonismo, muito errado seria conota-lo com o egoísmo, como não raras vezes acontece nas críticas comuns que lhe são endereçadas fora da esfera da cultura especializada. Embora coabitando com a moral kantiana no espaço da laicidade, o utilitarismo está afastado do conhecido imperativo categórico kantiano: «Age unicamente de acordo com a máxima que faça que tu possas querer ao mesmo tempo que ela devenha uma lei universal». Independentemente dos juízos crítico-valorativos (que estão fora dos meus propósitos ao redigir este escrito), interessa perceber que esta corrente se desdobra em múltiplas direcções, aparecendo espelhada em domínios muitíssimo variados, como sejam a publicidade, a cosmética (“produtos de beleza”), a indústria do sexo, os enredos de telenovelas, séries, filmes, as revistas de aconselhamento de variado tipo, a ida ao ginásio, a arte entretenimento, etc. ; surge também em expressões ou frases em voga, como “direito à diferença”, “temos que ser positivos”, “goza à grande”, “be yourself”, “just be cool / gonna be cool”, “cuidar de si”, “promover o crescimento económico”, “é preciso aprender coisas que sejam úteis”, “ser lucrativo”, “fazer aquilo que nos apetece”, e tantas outras.

Isto parece mostrar que o nosso quotidiano está cheio de apelos à procura da satisfação dos interesses do indivíduo, do sujeito individual que por sua vez é concebido como ente desligado de qualquer estrutura societal, existindo como singularidade subjectiva (relativa ao sujeito) que se soma a outras singularidades numa lógica de simples justaposição. Olhando em nosso redor, tudo ou quase tudo parece instar a que essa procura domine toda a nossa vida, nas suas várias vertentes, do espiritual ao material. Como devemos então avaliar os actos praticados por Franz Jägerstätter? E quanto à já antes enunciada grande questão que esses actos transportam? A de saber que devo eu fazer perante o avanço da organização do Mal?

A realidade em acelerada mutação que é hoje a nossa realidade confere crescente relevância a essa interrogativa fundamental. Basta constatar a clara afirmação de extremismos nacional-populistas e o risco evidente de morte da democracia na América, para usar o título do texto clássico de Alexis de Tocqueville sobre o ideal da Liberdade e a sua adequação a uma realidade sociopolítica concreta, obra de leitura e releitura ainda mais obrigatória nos tempos que correm.                      

Na cena mais dostoievskiana do filme o juiz presidente, qual Grande Inquisidor, introduz a central questão do livre arbítrio, interrogando o réu em busca do sentido moral. A dimensão moral de um comportamento é uma consequência directa da liberdade de escolha do sujeito. Se a escolha fosse impossível por imposição de um determinismo absoluto, o comportamento humano não seria passível de julgamento moral. A moral germina na liberdade, no eu livre (que até pode ser um eu encarcerado, como Sócrates na prisão ateniense e Franz na prisão nazi de Berlim, ambos mais livres do que os seus juízes). Mas, por isso mesmo, Franz (como Aristides) podia ter optado por se comportar de uma forma que o salvasse da condenação há morte. Podia ter dado prioridade à satisfação dos seus interesses. Porquê, então, agir desse modo, sacrificando a vida? E porquê essa escolha se ela não ia alterar nada? Se não ia influir no devir histórico? A sua decisão nunca poderia alterar o rumo dos acontecimentos. O facto de se tratar de um cidadão anónimo, sem ligação a organizações políticas de resistência, sem qualquer notoriedade pública, vivendo uma vida escondida, fazia com que a sua escolha estivesse condenada a ser um acto não histórico, no sentido em que não influi no curso da História. Todos os factos ocorridos e todos os actos humanos praticados fazem parte da História, na medida em que constituem o próprio tecido do devir histórico; porém, nem todos são actos históricos, actos causadores de uma mudança no rumo dos acontecimentos no plano daquilo a que podemos chamar “grande história” por oposição à petite histoire. Porquê então insistir numa escolha inútil? Porquê um sacrifício extremo, o da própria vida, se “não serve para nada”? Se não altera o rumo dos acontecimentos? Franz sabia, como qualquer outro, que o seu “Não” radical (e até mesmo a sua morte) nada ia provocar, no imediato, que pudesse derrotar a maldade nazi. E tinha Franz o direito de fazer uma escolha que implicava deixar filhos órfão e uma mulher viúva? Não haverá egoísmo sacrificial neste agir infrutífero?

Claro que nunca nos libertamos do ego. Mas o que acontece é que naqueles que se construíram pessoa a identidade repousa sobre um conjunto de convicções e resulta de uma sólida fidelidade a si próprio, no completo respeito pelo seu eu-essencial. A morte não se esgota na morte biológica ou física. Pode-se morrer permanecendo biologicamente vivo. Há mortos vivos. Franz sabia que se escolhesse não refutar o nazismo estaria a refutar o seu eu-pessoa, pondo em causa a sua autenticidade enquanto sujeito concreto. Perdia-se, sem hipótese de retrocedimento. Perderia toda a sua autenticidade humana; destruiria a sua identidade por não ter conseguido manter-se fiel a si próprio. Isso constituiria objectivamente o assassinato do seu eu-pessoa ou, se preferirmos, seria um suicídio da alma. Teria sido outra morte, mais penalizadora por ser indigna. Uma morte resultante da trágica perda da autenticidade e da identidade fundada em convicções. Por isso, Franz sabe que não pode vencer a batalha que trava. Na sua desesperança reside a autenticidade da coragem. A coragem do vencido. Na Ética a Nicómaco Aristóteles faz-nos compreender o essencial através de uma asserção bela, sucinta e profunda: «As pessoas verdadeiramente corajosas não agem senão pela beleza [ética] do acto corajoso» -- esse to kaloun pratousin que também tem sido traduzido por «amor do bem» (Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1116 b 30).   

No conjunto das virtudes humanas a coragem é sem sombra de dúvida a que é objecto de maior admiração universal. Os actos de Franz Jägerstätter são indiscutível exemplo de coragem. Até mesmo alguns acusadores, na sua vincada discordância não terão deixado de nutrir uma certa admiração pela coragem exibida. Como faz notar André Compte-Sponville no seu Petit traité des grandes vertus, «o que é universalmente admirado, é também admirado pelos maus e pelos imbecis». E o sagaz Voltaire, em quem Compte-Sponville se inspira, afirmava que no seio da alma humana «Uma coragem indómita […] / Faz os grandes heróis ou os grandes criminosos» (em Rome sauvée, ou Catilina, V, 3). Daí que Voltaire não classificasse a coragem como sendo uma virtude humana. A coragem de Franz foi «para o bem e no bem», enquanto alguns nazis exibiram em vários cantos do mundo uma coragem «para o mal e no mal». Por isso, a coragem de Franz confere virtuosidade ao sujeito da acção, coisa que não acontece com a coragem do esbirro da Gestapo ou do militar das SS, mesmo quando ela, de alguma maneira, possa despertar certo grau de admiração. Para além dessa virtuosidade, os actos corajosos de Franz motivam acrescido respeito por terem sido praticados no isolamento; porque, excluindo a sua companheira, todos discordavam da sua escolha, todos estavam contra ele, todos condenavam a sua atitude. Uma ostracização cinematograficamente sublinhada por Malick. Esse isolamento serve para mostrar como a moral é um assunto do Eu. Como dizia Alan, «la morale n’est jamais pour le voisin», a moral nunca é para o vizinho mas sim para nós próprios. A questão moral é sempre endereçada ao Eu: o que devo eu fazer? Inquirir sobre o que devem os outros fazer é problema que remete para a esfera do moralismo que, claro está, é coisa diferente da moral. Mas iludem-se os que supuserem que a escolha corajosa desse homem simples foi decidida na absoluta solitude. Não. Franz era um crente cristão, homem de profunda fé, e a sua decisão é tomada em íntimo diálogo com a divindade. É uma “solidão” com Deus ou na companhia de Deus. Será que isso diminui a nossa admiração pela sua coragem? Talvez, mas não necessariamente; e, à falta de medidor objectivo da intensidade ou do grau da coragem, nem talvez se deva colocar a questão. Como Pascal, o austríaco Franz tinha a profunda convicção de que «se há um Deus, há que amá-lo só a Ele e não às criaturas efémeras». A voz destas, seja qual for o seu poder terreno, nunca se pode sobrepor à voz de Deus. É Ele que deve ser escutado, é a vontade desse ente supremo que deve ser respeitada. Improvável leitor de Dostoievski (esse escritor do “compromisso teológico”, como disse o recentemente falecido George Steiner), Franz também poderia ter afirmado: «se Deus não existe, tudo é permitido». Se bem que a asserção dostoievskiana seja notoriamente falsa, uma vez que o sujeito para quem Deus não existe, o eu ateu, não é necessariamente, nem de forma alguma um ser humano que se permita fazer tudo. Muitos ateus tiveram perante o nazismo a mesmíssima atitude, fazendo a escolha do crente Franz: disseram não; refutaram-no dando também a vida em defesa de um ideal, mas, neste caso, desligado de qualquer tipo de crença religiosa. Como nos ensinou o iluminista Kant (bem como vários outros), a religião, a fé religiosa, não é o fundamento da moral; esta é que justifica ou fundamenta aquela.

No mundo terreno, Franz, o puro crente perseguido que até exercia as funções de sacristão na igreja da sua aldeia e que praticou o sacerdócio laico antes do Concílio do Vaticano II, teve que suportar a condenação da própria comunidade religiosa a que pertencia. Hostilidade desencadeada também, e em grande medida, pela desaprovação que o seu comportamento mereceu junto da hierarquia da Igreja na Áustria do pós-Anschluss, uma hierarquia católica curvada diante do poder nazi, agente do Mal – atitude que é exemplo de cobardia para o mal e no mal.

Mais tarde, já no pós-guerra, numa Áustria pouco ou deficientemente desnazificada, foi preciso esperar vários anos até que fosse atribuída uma pensão de viuvez a Franziska Jägerstätter (o nome de solteira era Schwaninger), mulher de Franz e mãe de três das suas quatro filhas. A mesma hierarquia religiosa que em 1943 o tentou demover da recusa do nazismo, chegado o tempo de paz não sentiu a urgência de alterar a sua posição, colocando-se do lado da defesa da memória do homem bom que tinha criticado. Sessenta e quatro anos depois da execução de Jägerstätter, em momento de conveniência institucional, a Igreja Católica enalteceu formalmente o comportamento do “sacerdote laico” vítima da barbárie nazi. Foi em Junho de 2007 que o papa Bento XVI conferiu a Franz Jägerstätter o estatuto de mártir (concluindo um processo que se iniciara em 1997, quando já tinha decorrido mais de meio século desde o dia da execução); pouco tempo depois, no dia 26 de Outubro desse mesmo ano, assistiu-se à sua beatificação na Nova Catedral de Linz. Cerimónia presidida por um português: o cardeal José Saraiva Martins. Franziska, então com 94 anos, ainda pôde estar presente (faleceu com 100 anos, em 2013).

No filme de Malick, o juiz presidente (derradeira representação do actor Bruno Ganz, falecido em 2019) acaba por se sentar no lugar do réu Franz. Uma movimentação simbólica, portadora de um convite à consciência autocrítica.

O decesso de Franz Jägerstätter sob a guilhotina nazi é uma morte socrática. Sócrates, esse protagonista de uma morte paradigmática no quadro da cultura humana, podia ter escapado facilmente à cicuta se tivesse feito outra escolha perante o tribunal ateniense, abdicando de si, desbaratando a sua autenticidade. É a escolha da reafirmação de uma identidade fundada nas suas convicções (fidelidade a si, autenticidade) que o faz ser condenado à morte e executado. A morte de Jägerstätter inscreve-se nesse paradigma. E à semelhança do celebrado filósofo ateniense também o obscuro agricultor austríaco se vai sentir livre na prisão, porque, na sequência da formulação de um radical Não, é aí que ele se cumpre como pessoa. O seu acto de negação é ao mesmo tempo um acto de afirmação; o “não” é um “sim” à vida digna – como o «preferia não o fazer» incansavelmente repetido por Bartleby na novela homónima de Herman Melville. E nessa medida, a recusa de se esquivar ao sofrimento não aparta Jägerstätter da sabedoria de um Michel de Montaigne, apóstolo intelectual do «grande “sim” sagrado à vida» (Frédéric Lenoir), porque os padecimentos resultantes do “não” são sofrimento inevitável, não se inscrevem na categoria do sofrimento evitável, porque evitá-los implicaria o inaceitável e, por isso, também o insuportável: trair as convicções mais profundas. Daí que as privações e os tormentos do cárcere representem a continuidade da pessoa que se é, e isso concede bem-estar interior. Terrence Malick oferece-nos a retratação cinematográfica dessa alegria no cativeiro. Uma essencial alegria de tonalidade espinosista que permanecerá fatalmente ininteligível para os que no seu existir caminham despidos de autenticidade e nus de convicções.

Os actos antinazis de Franz foram actos não históricos na altura em que foram praticados, mas a memória que os projecta no tempo, trazendo-os a este nosso presente em que novos agentes do mal extremo se perfilam e reagrupam no horizonte, confere-lhes outra dimensão histórica, na precisa medida em que se deseja que concorram no tempo actual para dar forma a uma ética comportamental ofertante de sólida resistência, na dupla vertente do pensamento e da acção prática que o materializa, à reorganização do mal e a novas formas de o institucionalizar. Desse modo, o acto não histórico protagonizado por um homem anónimo adquire súbita e inesperadamente a capacidade de fazer história através do distanciado agir de sujeitos em que venha a influir.

Nós somos membros da Humanidade pós-Auschwitz. E depois de Auschwitz, supremo símbolo do grande Mal, o não, a filosofia da negação/rejeição, tornou-se, em definitivo, a única atitude humanamente admissível e moralmente possível.

João Maria de Freitas Branco

Caxias, Fevereiro de 2020

 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

DEMOCRACIA -- Sobre um artigo de Santana Castilho


 essa prioridade das prioridades imposta pela cada vez mais dominante ideologia neoliberal. Isso tem vindo a colocar a Escola mais ao serviço da criação do homem comercial do que da criação do homem integral, como diria o lúcido Rabindranath Tagore.

Há, no entanto, no certeiro texto de Santana Castilho uma frase que considero muito perigosa e que infelizmente até mereceu destaque jornalístico. É a seguinte: «A democracia não pode ser tolerante com aqueles que a querem destruir».
 
 
o", essa prioridade das prioridades imposta pela cada vez mais dominante ideologia neoliberal. Isso tem vindo a colocar a Escola mais ao serviço da criação do homem comercial do que da criação do homem integral, como diria o lúcido Rabindranath TagAcabo de ler no jornal PÚBLICO um excelente artigo de Santana Castilho que expressa uma opinião, entre várias outras, que converge com o que também eu tenho publicamente afirmado: a Escola não está a conseguir cumprir a missão essencial de contribuir para a construção de uma sociedade diferente, expurgada, digo eu, de racismo, de homofobia, de xenofobia, de totalitarismos, de apego ao sobrenatural, de irracionalidade à solta. A Escola curvou-se perante a voga da apologia do "crescimento económico", essa prioridade das prioridades imposta pela cada vez mais dominante ideologia neoliberal. Isso tem vindo a colocar a Escola mais ao serviço da criação do homem comercial do que da criação do homem integral, como diria o lúcido Rabindranath Tagore.
Acabo de ler no jornal PÚBLICO um excelente artigo de Santana Castilho que expressa uma opinião, entre várias outras, que converge com o que também eu tenho publicamente afirmado: a Escola não está a conseguir cumprir a missão essencial de contribuir para a construção de uma sociedade diferente, expurgada, digo eu, de racismo, de homofobia, de xenofobia, de totalitarismos, de apego ao sobrenatural, de irracionalidade à solta. A Escola curvou-se perante a voga da apologia do "crescimento económico", essa prioridade das prioridades imposta pela cada vez mais dominante ideologia neoliberal. Isso tem vindo a colocar a Escola mais ao serviço da criação do homem comercial do que da criação do homem integral, como diria o lúcido Rabindranath Tagore.
Há, no entanto, no certeiro texto de Santana Castilho uma frase que considero muito perigosa e que infelizmente até mereceu destaque jornalístico. É a seguinte: «A democracia não pode ser tolerante com aqueles que a querem destruir».
Compreendo bem o sentimento do articulista (que adivinho ser bastante semelhante ao meu), mas a frase entra em contradição com a própria noção de democracia, com os seus princípios diferenciadores. Tolerância não significa desistência; não é rendição perante os inimigos. Muito pelo contrário: a tolerância democrática implica o exercício da liberdade de contradizer de forma fundamentada, convoca a contra-argumentação racional. A recente atitude (justamente criticada pelo articulista) da "maioria parlamentar pensante" trai a democracia que diz defender, porque a tolerância democrática não é isso, não é remeter-se ao silêncio perante as investidas do inimigo da democracia; é, bem ao invés, assumir posição, combater com toda a energia, sem tréguas, mas sem que esse combate mate a Liberdade. É combater o opositor sem lhe retirar a liberdade de expressão. É assim que esgrime o autêntico arauto da Liberdade, o sujeito que ama a Liberdade. E aqui reside a grande superioridade de um regime instituidor da Liberdade e da Igualdade.
Seja-me permitida, a finalizar este breve comentário, uma autocitação, extraída da última página do meu último livro e que remete para o problema da Escola. Escrevi aí o seguinte: A Educação tem que recuperar uma nobreza que foi perdendo com a submissão à doutrina do supremo valor do imediatamente útil, com as várias cedências aos poderes empresariais e estatais.
É necessário sabermos viver na Verdade e a Escola tem que ser um instrumento da aprendizagem do viver na Verdade.
Convido-os agora a ler com atenção o texto de Santana Castilho hoje publicado no jornal PÚBLICO, sob o título "Joker podemos ser todos!",e por mim partilhado com muito agrado no Facebook (v. a minha página). Boa leitura!
João Maria de Freitas Branco
Caxias, 5 de Fevereiro de 2020
 
 
 
Há, no entanto, no certeiro texto de Santana Castilho uma frase que considero muito perigosa e que infelizmente até mereceu destaque jornalístico. É a seguinte: «A democracia não pode ser tolerante com aqueles que a querem destruir».
Compreendo bem o sentimento do articulista, mas a frase entra em contradição com a própria noção de democracia, com os seus princípios diferenciadores. Tolerância não significa desistência; não é rendição perante os inimigos. Muito pelo contrário: a tolerância democrática implica o exercício da liberdade de contradizer de forma fundamentada, convoca a contra-argumentação racional. A recente atitude (justamente criticada pelo articulista) da "maioria parlamentar pensante" trai a democracia que diz defender, porque a tolerância democrática não é isso, não é remeter-se ao silêncio perante as investidas do inimigo da democracia; é, bem ao invés, assumir posição, combater com toda a energia, sem tréguas, mas sem que esse combate mate a Liberdade. É combater o opositor sem lhe retirar a liberdade de expressão. É assim que esgrime o autêntico arauto da Liberdade, o sujeito que ama a Liberdade. E aqui reside a grande superioridade de um regime instituidor da Liberdade e da Igualdade.
Seja-me permitida, a finalizar este breve comentário, uma autocitação, extraída da última página do meu último livro e que remete para o problema da Escola. Escrevi aí o seguinte: A Educação tem que recuperar uma nobreza que foi perdendo com a submissão à doutrina do supremo valor do imediatamente útil, com as várias cedências aos poderes empresariais e estatais.
É necessário sabermos viver na Verdade e a Escola tem que ser um instrumento da aprendizagem do viver na Verdade.
Convido-os agora a ler com atenção o texto de Santana Castilho hoje publicado no jornal PUBLICO e por
Compreendo bem o sentimento do articulista, mas a frase entra em contradição com a própria noção de democracia, com os seus princípios diferenciadores. Tolerância não significa desistência; não é rendição perante os inimigos. Muito pelo contrário: a tolerância democrática implica o exercício da liberdade de contradizer de forma fundamentada, convoca a contra-argumentação racional. A recente atitude (justamente criticada pelo articulista) da "maioria parlamentar pensante" trai a democracia que diz defender, porque a tolerância democrática não é isso, não é remeter-se ao silêncio perante as investidas do inimigo da democracia; é, bem ao invés, assumir posição, combater com toda a energia, sem tréguas, mas sem que esse combate mate a Liberdade. É combater o opositor sem lhe retirar a liberdade de expressão. É assim que esgrime o autêntico arauto da Liberdade, o sujeito que ama a Liberdade. E aqui reside a grande superioridade de um regime instituidor da Liberdade e da Igualdade.

Seja-me permitida, a finalizar este breve comentário, uma autocitação, extraída da última página do meu último livro e que remete para o problema da Escola. Escrevi aí o seguinte: A Educação tem que recuperar uma nobreza que foi perdendo com a submissão à doutrina do supremo valor do imediatamente útil, com as várias cedências aos poderes empresariais e estatais.

É necessário sabermos viver na Verdade e a Escola tem que ser um instrumento da aprendizagem do viver na Verdade.

Convido-os agora a ler com atenção o texto de Santana Castilho hoje publicado no jornal PUBLICO e por mim partilhado com muito agrado no Facebook