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domingo, 29 de dezembro de 2013

O ANTI-MANDELA


 
Escoavam as últimas horas do passado 5 de Dezembro quando nos chegou a notícia da morte de uma figura grande que era o paradigma do político, ou do que deve ser um político: um servidor da grei, trabalhando para se tornar dispensável. Foi o que Nelson Mandela fez. Com total desapego ao poder, e cumprindo o prometido, afastou-se da governação logo após ter cumprido o mandato (um só) como Presidente. Cargo para que tinha sido eleito com votação esmagadora e histórica, uma maioria absolutíssima. 

Nos últimos dias tem-se abatido sobre nós uma insuportável verborreia que trai o homem ao mesmo tempo que parece celebrá-lo. Ao longo destes dias tenho ouvido e lido, vezes sem conta, a afirmação de ter sido “o perdão” o grande legado do falecido. É a costumeira pieguice católica, a lamechice beata. Será que os hediondos crimes do Apartheid podem ter perdão? Claro que não! Eles são imperdoáveis! E Mandela era o primeiro a saber isso. Mas tal não significa que não se possa, e não se deva, negar o caminho da vingança sangrenta, da punição exaltada, irracionalmente prescrita pelo primitivismo sectário. Essa escolha estriba-se não no perdão, senão que no saber, na compreensão racional e na aposta no valor da educação como factor transformante. A superior bondade racional e lúcida em vez da bárbara vingança que permaneceria ao mesmo nível de baixeza exibido pelo horrendo regime racista do apartheid. A atitude contra a imoralidade não pode ser imoral. A obscenidade política não se combate com outra obscenidade política; combate-se, sim, com ética, com atitudes elevadas, com comportamentos nobres. Combate-se exibindo aristocracia de sentimentos.

Outra idiotice em livre circulação nos últimos dias é a colagem do rótulo de pacifista ao ilustre defunto: «Mandela sempre foi contra a violência», «foi um grande pacifista», etc. Através da santificação néscia, do irracional encómio acrítico e da veneração emocionada não só se mente, impudentemente, como também se desenha a imagem de um pateta bonzinho. O imaculado Mandela. Típica deturpação incutida pelo serôdio moralismo beato. Na paisagem humana real não existem seres puros e perfeitos, mas sim seres concretos envoltos em imperfeições, dúvidas, angústias, contradições. Tal como o mundo da absoluta conciliação, da paz eterna entre os homens, essa visão do homem-santo mais não é do que conto de fadas sub-repticiamente engendrado para actuar como subtil arma de guerra ideológica. Talvez importe recordar que a “Bíblia” da prisão de Robben Island era o volume com as obras completas de Shakespeare. Foi essa a escritura que inspirou o pensamento e a acção do líder anti-apartheid.

Assim se semeia a confusão, repleta de consequências políticas, armada de afiadas setas bem orientadas para a batalha ideológica que se trava neste nosso aqui e agora, quando outra vaga de infausta violência se abate sobre um povo. O nosso. E o que se apresenta como elogio incondicional a uma pessoa singular é na verdade um insulto deturpador. O valor de Mandela como homem e político brota das contradições pessoais, bem como das contradições do próprio devir histórico que protagonizou. Isso acontece com todas as grandes figuras (incluindo a dos maiores Santos); sendo que essa própria complexidade do contraditório fecunda a sua grandeza.

Despir Madiba dessas contradições é esmorecer a chama desse Eu possante, é esvaecer a força viril da personalidade histórica, é trair. Mas é também pura cretinização.

João Maria de Freitas-Branco
(Artigo de opinião do jornal PÚBLICO, edição de 19-Dezembro-2013)
 

 

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Álvaro Cunhal em debate


Ando pouco por estas ruelas virtuais da modernice facebookeira, sem que esse relativo distanciamento represente desestimação por este meio informático disponibilizado pelo progresso tecnológico, antes pelo contrário. Apenas temo a dispersão que possa gerar -- factor inimigo do autêntico filosofar, por mim obrigatoriamente estimado. Só que desta vez, na minha breve passagem por aqui, topei a discordância entre dois distintos Amigos: o Eduardo e o Mário. O Eduardo Cintra Torres e o Mário Carvalho. Essa real, e já não virtual, proximidade afectiva que, confesso, se estende ao objecto da vossa desinteligência, acende em mim a vontade de meter a colher, opinando também. Será que posso? Supondo dada a permissão, salto para dentro da vossa controvérsia por me apetecer dizer-vos duas coisas que são, no fundo, duas confissões que talvez venham a propósito no centenário de Cunhal agora em comemoração. Primeira: lembram-se do livro “O Partido com paredes de vidro”? Quando foi publicado, no Verão de 1985, o mundo ainda estava dividido, física e simbolicamente, por um muro situado (cravado) no coração da Alemanha. Não sei se o leram. Mas se o fizeram, adivinho que o acto de leitura tenha ocorrido do lado ocidental do citado muro. Tal não foi o meu caso. Li-o do lado de lá. Do outro lado, o lado leste, dessa histórica divisória do mundo. E li-o com genuíno entusiasmo, como ainda hoje se pode perceber olhando para o tipo de anotação que fui inscrevendo nas páginas do meu exemplar. Sabem o porquê desse entusiasmo? É que essa obra era completamente subversiva naquele contexto nacional, no seio daquele país germânico entretanto desaparecido sob os escombros do dito muro de má memória, também dito “da vergonha”. Não exagero na terminologia, acreditem. Era prosa subversiva, é a exacta adjectivação, por mais que vos possa causar espanto. O livro só não foi objecto de censura devido ao nome que transportava na capa. O nome do autor tinha demasiado peso para que tal fosse possível. Pois é, meus caros Amigos. Não constituirá isto, por si só, prova inequívoca de uma discordância cunhalista em relação ao socialismo real? Como combinar esse sério olhar crítico de um homem singularmente inteligente, sensível e politicamente perspicaz com frases como a do “Sol da Terra”, por vós referida? Se não erro, isso torna a coisa ainda mais interessante e, por isso mesmo, digna de atenção de estudioso, concorrendo do mesmo passo para tornar ainda mais insuportável o sempre medíocre discurso simplista, ou simplificador, monotonamente gerado ora pelas inesgotáveis fontes do anticomunismo primário, ora pelas não menos inesgotáveis do proselitismo comunista, correntes que no fundo se irmanam, desaguando na torrente comum da superficialidade, do barbarismo, da mediocridade, da desonestidade intelectuais. O José Pacheco Pereira tem dado nobre exemplo de atitude de sinal contrário; ou seja, de elevação intelectual. E desse modo tem posto em evidência uma interessantíssima complexidade. Se não formos capazes de assimilar essa complexidade, nada conseguiremos perceber sobre a figura histórica, sobre o seu pensamento e acção. Segunda coisa. Segunda confissão. A vida é feita de cruzamentos interpessoais, natural efeito da natureza social do bicho humano. E nesse constante jogo de cruzamentos s de variegada índole sempre desejei, desejo e desejarei encontrar no meu caminho pessoas (note-se que nem todos os humanos chegam a adquirir o estatuto de pessoa) pessoas como esse Álvaro que está na origem da vossa discórdia actual, de Facebook. Porquê? Por serem pessoa extraordinária. No sentido literal do termo, sem encómio, sem intensão panegírica. Ou seja, o serem extra-ordinários, não vulgares. Álvaro Cunhal era desde logo isso mesmo, a negação da vulgaridade. Por isso, jamais conseguia passar despercebido no meio de uma multidão – exceptuando os casos em que, por imperativo de clandestinidade ou outro qualquer, recorria ao disfarce. Renovada prova da veracidade do meu dizer sobre a singularidade da sua presença social. E quem isto vos confessa guarda privilégio de que nem o principal biógrafo, o historiador, dedicado e competente estudioso, José Pacheco Pereira, se pode vangloriar: o de ter podido conhecer pessoalmente, e razoavelmente bem, a pessoa singular que aos três aqui nos trouxe ao diálogo.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Ser intelectual e combater a confusão


Há assuntos sobre os quais nem sequer me passa pela cabeça escrever e sobre os quais tenho o hábito de nada ler. Mantendo-me fiel a esta atitude de vida, não posso, porém, permanecer indiferente à actual enxurrada de manchetes espalhadas por todos os órgãos de comunicação, com excepção do jornal Público. O acontecimento motivador de tal celeuma pertencente àquela esfera de conteúdos que a imprensa cor-de-rosa designa por “vida dos famosos”, “lado negro da vida dos famosos”, “a vida íntima dos famosos”. Expressões que só por si me impelem a higiénica fuga. Mas não quero com isto dizer estar contra a opção editorial de órgãos de comunicação de referência como o Expresso, o DN ou a Visão. Muito pelo contrário. Para mais quando no caso vertente existe alegado comportamento criminoso protagonizado por figura pública que não se inibiu de trazer para a ribalta a sua própria vida privada, tornando-a, portanto, necessariamente pública. A este propósito a revista Visão enunciou uma pertinente interrogativa: «até onde é legítimo alguém usar a sua privacidade para se promover social e politicamente?»

Neste caso, o que para já me impede de ficar em silêncio é tão só a confusão que mais uma vez vejo triunfar na nossa hodierna sociedade e o meu militante desejo de lhe oferecer resistência intelectual. Como sabem os que têm a generosidade de ler o que escrevo, tenho desenvolvido o conceito de confusão alertando para a sua função ideológica e histórica (v. o meu ensaio, consultável neste blog, intitulado “Racionalidade: confusão e anticonfusão”). Vivemos mergulhados na confusão. Habitamos um mundo confuso. E a confusão é inimiga da Liberdade; ela semeia dependências. Daí a necessidade inalienável de investir em esforço de dilucidação. É isso o que aqui faço.

Nos referidos trabalhos jornalísticos tenho visto sistematicamente associadas duas coisas que jamais podem coabitar no mesmo ser humano, uma vez que se excluem mutuamente. Refiro-me ao carácter e à condição de intelectual. Dizer de uma pessoa que é um “intelectual reputado” e ao mesmo tempo pôr em evidência a sua falta de carácter é espalhar confusão.

Superemos então o estado de confusão e clarifiquemos.

Qual a primeira condição para se ser um intelectual? A principal condição para que alguém possa ser considerado um intelectual é o carácter. Quem não tiver carácter não é nem pode ser um autêntico intelectual. Pouco ou nada importa que exiba títulos universitários ou bibliografia pessoal. Sem carácter não se é intelectual verdadeiro. Tenho dito.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Entrevista

Dei uma entrevista ao jornal PÚBLICO que foi dada à estampa na edição do passado Domingo, dia 3 de Novembro. A entrevista foi conduzida pelos jornalistas São José Almeida e Nuno Ribeiro. Aqui fica o texto introdutório, da responsabilidade dos citados jornalistas.


Entrevista
João Maria de Freitas-Branco

"Toda a representatividade tem que ser repensada e alterada" e o actual sistema eleitoral tem de mudar, pois induz os revoltados à abstenção, defende o filósofo, que propõe a criação de "partidos temporários". De esquerda, embora ache indispensável haver expressão à direita, considera que se vive em "semidemocracia", já que as eleições estão transformadas em "farsa", pois o Governo não cumpre o programa eleitoral e não respeita a Constituição.
Filósofo, autor, professor e investigador universitário, João Maria de Freitas-Branco é um dos fundadores do Movimento para a Democratização do Regime. Considera que se vivem tempos em que a velocidade das mudanças ultrapassa a capacidade cognitiva do ser humano, mas defende que "continua a ser uma obrigação da esquerda cumprir o programa iluminista. Perante uma sociedade em que alastra "uma espantosa banalização da imoralidade", sublinha que "o fundamento da necessidade de defender o Estado social radica no conceito darwinista de simpatia".

Texto completo da entrevista no site do PÚBLICO.
Também pode ser solicitado através de mensagem na página de João Maria de Freitas-Branco no Facebook. Será enviado aos interessados ficheiro pdf.

«Estamos a viver uma revolução tão profunda como a do neolítico»
JMFB

Jornal PÚBLICO, edição de 3 de Novembro de 2013, 1ª página e pp.14, 15 e 16.  

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Os ensinamentos das Autárquicas


Se excluirmos, desde logo pelo seu especial significado simbólico, as primeiras eleições autárquicas, julgo dever-se concluir que as autárquicas do passado fim-de-semana foram as mais importantes que se realizaram em Portugal desde a fundação do actual regime democrático.

Elas representam um ponto de viragem. Porquê? Porque o seu resultado global traduz de modo inequívoco a vontade popular de acabar com a partidocracia. Uma partidocracia que se tem revelado essencial factor de empobrecimento da democraticidade do regime. Os cidadãos eleitores decidiram que o processo de representação não pode estar confinado à candidatura partidária, aos partidos políticos.

Mas a voz do eleitorado transporta declaração política ainda mais relevante e profunda: a não-aceitação do actual sistema de representação. Mais de 50% do eleitorado não se considera bem representado pelas candidaturas apresentadas. Os cidadãos reivindicam, através do voto, nova forma de representação que lhes dê garantias, permitindo-lhes controlar a acção efectiva do eleito durante todo o exercício do mandato e não apenas de 4 em 4 anos, no acto isolado do voto. Dito de outro modo, os cidadãos exigem uma democracia mais participativa e menos representativa. Ou seja, em que se afirma o primado da participação, com a subordinação da representação à participação.

Este último acto eleitoral efectuou-se em momento histórico muito singular, com o país mergulhado na maior crise económico-financeira do pós-25 de Abril e com um Governo que se ilegitimou através do completo desrespeito do programa eleitoral e governativo, bem como pelo recurso a uma governação sistematicamente anticonstitucional. Factos que, em minha opinião, marcam o fim da nossa 2ª República. É à luz desta forte singularidade que os resultados têm que ser lidos.

Analisemos então os resultados eleitorais.

Há dois aspectos essenciais a reter: em primeiro lugar, a denúncia do próprio acto eleitoral e a recusa de participar numa fraude política semelhante à que se verificou nas últimas legislativas, o não querer ser protagonista de uma farsa eleitoral; em segundo lugar, a condenação da partidocracia e do tipo de representação que lhe está associado.

Neste singular momento histórico em que seria natural haver um acréscimo de mobilização política traduzido na afluência às urnas, o que se passou foi exactamente o inverso. A abstenção aumentou de forma muito significativa, o mesmo acontecendo com os votos em branco e nulos (sendo que estes já não podem ser interpretados como mero engano). A abstenção aumentou em mais de 6 pontos percentuais. Os brancos e nulos correspondem a quase 7%. Em ambos os casos estamos a falar de um número superior ao da soma dos votos obtidos por dois partidos com assento parlamentar, os do CDS/PP e do BE. Em alguns concelhos, nomeadamente naqueles em que o resultado era mais incerto e se travava uma renhida batalha eleitoral, como em Oeiras ou Loures, a abstenção esteve acima dos 50% (ultrapassou os 53% em Oeiras); e num concelho tão importante como Cascais a abstenção foi de 62% e os votos brancos e nulos atingiram os 9%! Repare-se que os exemplos dados têm a “agravante” de serem do distrito da capital, região onde se situa o eleitorado com níveis de escolaridade mais elevados, sendo igualmente, pelo menos em teoria, um eleitorado, em média, politicamente mais informado.

Há ainda um outro aspecto muitíssimo relevante. A comparação entre a oscilação da votação nos partidos e a dos votos em branco e nulos. Apenas um partido obteve mais votos do que em 2009. Foi o PCP/CDU. É por isso a excepção que confirma a regra da perda de votos. Até o PS, partido dito vencedor, registou significativa perda de votos. Mas se olharmos para o número de nulos e brancos a regra é exactamente a oposta. Isto é, o eleitorado nulo/branco foi o que cresceu mais. Teve (como agora está em voga dizer-se) um colossal aumento. Passou de 2,9% para 6,8%! Mais que duplicou o seu peso eleitoral. Que partido pode gabar-se de ter tido tão grande aumento? Tão grande vitória? Sim, há uma peculiar vitória de quem quis afirmar a sua desconsideração pelo sistema. 344.566 Cidadãos deram-se ao incómodo de sair de casa para afirmarem nas urnas, expressamente, esse seu sentimento; mas muitos mais fizeram-no abstendo-se. A abstenção não pode continuar a ser olhada displicentemente como mero efeito de um desinteresse inculto e estúpido. Há nela outro peso político, pelo que não pode ser ignorada pelos analistas. E os nulos/brancos foram, na comparação com 2009, os grandes vencedores. Enquanto os partidos perderam milhares de apoiantes os nulos/brancos ganharam milhares e foram, nessa precisa medida, os vencedores destas eleições.

Como é possível que os comentadores de serviço não comentem isto? Como se pode aceitar que no debate parlamentar desta semana sobre as eleições nada disto tenha merecido a atenção dos deputados?

Estes números são, por si só, e de igual modo, demonstrativos da condenação eleitoral da partidocracia. Mas há mais: estas Autárquicas 2013 assumem-se como marco histórico no nosso percurso democrático também porque representam a entrada na ribalta política das candidaturas independentes, entendendo-se por tal a não vinculação a direcções partidárias. Importantíssima novidade. Símbolo maior desta mudança é a vitória de Rui Moreira no Porto. Acontecimento eleitoral não por acaso destacado em manchetes de vários jornais estrangeiros, como por exemplo o conceituado El País. Pela primeira vez, o poder local numa das mais importantes cidades do país deixa de estar na mão de um partido. Os números falam por si: o independente Rui Moreira ganhou com 39,2% e 6 eleitos para a câmara, enquanto o partido mais votado (o PS) ficou pelos 22,6% e com apenas 3 eleitos. A nível nacional os independentes obtiveram mais votos do que o CDS/PP e do que o BE: 344.566 votos, correspondendo a cerca de 7%. Só PS, PSD e CDU ficaram à frente dos independentes, sendo que estes, ao contrário daqueles, não marcaram presença em todos os concelhos. Mostrando não estar a perceber a mudança que se está a operar, um destacado deputado da esquerda parlamentar afirmou triunfalmente que a esmagadora maioria dos eleitores tinha votado nos partidos e não nas candidaturas independentes, depreciando assim os resultados obtidos pelas candidaturas independentes. Puro engano. A maioria do eleitorado, 61,12%, não votou em partidos.

Perante estes resultados e as claras mensagens que transportam deixa de ser legítimo realizar eleições legislativas na base do monopólio dos partidos. As candidaturas à Assembleia da República não podem ser exclusivamente partidárias. Significa isto que a lei eleitoral tem que ser alterada de imediato de forma a permitir candidaturas não submetidas ao controlo das cúpulas partidárias. Se a vontade popular for democraticamente respeitada, e tem que ser, a mudança da lei eleitoral tornou-se, a partir do escrutínio de Domingo passado, uma urgência ainda maior. A luta que tem vindo a ser desenvolvida pelo Movimento para a Democratização do Regime, bem como por outros agentes políticos e sociais, ganha agora ainda maior pertinência, uma vez que passou a estar legitimada pela vontade livremente expressa pelos cidadãos eleitores.

A nova lei tem que introduzir elementos de controlo da ética eleitoral impedindo a continuação da fraude eleitoral que atingiu o auge nas últimas Legislativas, com a completa dessintonia entre o programa eleitoral votado e o programa executado, anulando assim a utilidade do voto e destituindo-o de sentido. A “ arma do povo”, o voto, deixou de ter munições e deveio ineficaz. Embora formalmente legitimado por eleições livres, o actual Governo da República ilegitimou-se por efeito do total incumprimento dos pontos essenciais dos programas com que se apresentou ao eleitorado e depois ao Parlamento. Face a esta realidade assassina da democracia, perversora dos mais elementares princípios em que esta se estriba, realizar novas eleições legislativas só faz sentido depois de conferir ao cidadão garantias de que a farsa não se pode repetir. Como já em outras ocasiões de intervenção pública tenho vindo a afirmar, a nova legislação que, agora mais do que nunca, urge realizar tem que instituir um órgão de soberania (suprapartidário, um conselho de homens bons), eleito e articulado com o Presidente da República, com poder para avaliar o efectivo cumprimento dos programas eleitorais por parte dos eleitos, podendo despoletar um processo conducente à demissão daquele ou daqueles que notoriamente não honrem os compromissos assumidos perante os cidadãos no acto eleitoral. A abstenção não pode ser ignorada ou tratada como mera manifestação de desinteresse estúpido. A crescente abstenção, bem como o enorme aumento dos votos brancos e nulos é um relevante fenómeno político, expressão de indignação cívica perante o decaimento da democracia real.

Há que continuar a reflectir seriamente sobre os resultados das Autárquicas 2013 de modo a conseguirmos assimilar os importantes ensinamentos que elas nos legam. A melhoria da qualidade da nossa vida política passa por aí.

 

João Maria de Freitas-Branco

Caxias, 3 de Outubro de 2013

quarta-feira, 3 de julho de 2013

A crise: festejar e lutar


Foi alcançado nas últimas horas um primeiro objectivo político: a queda do Governo. Finalmente! É uma vitória de todos aqueles que se têm manifestado nas ruas e que têm utilizado a greve como forma de combater uma política desastrosa. O primeiro-ministro diz que fica. Mas fica onde? Será que este político imberbe, mergulhado como está na irracionalidade e na inconsciência política, nem sequer se apercebe de que o seu lindo Governo já não existe?

Temos a sorte de ver desaparecer o governo que conduzia o País para o abismo, mas temos pela frente o tremendo azar de em momento de profunda crise termos o mais medíocre conjunto de responsáveis políticos das últimas quatro décadas da história de Portugal. O pior governo, o pior líder do PSD, o pior líder do maior partido da oposição e o pior Presidente da República.

Assim termina a 2ªRepública portuguesa. Mobilize-se o escol da Nação para que se inaugure a 3ºRepública com outra qualidade política e moral, com verdadeira elevação.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Nasceu o MDR


Novo movimento político de resistência

 

Tive ontem o grato prazer de, uma vez mais na vida, participar directamente na criação de uma organização política de utilidade cívica para a nossa grei, assumindo assim, na sã companhia de ilustres companheiros e amigos, o estatuto de co-fundador do Movimento para a Democratização do Regime (MDR). Todos esperamos que tenha bom futuro e sirva o objectivo a que se propôs.

Para que se percebam os desígnios dos fundadores, mas também com a preocupação de dissipar eventuais equívocos resultantes do debate que antecedeu e preparou o gesto fundador de ontem, quero aqui afirmar que não me passa, nem nunca me passou pela cabeça a ideia de que o MDR, enquanto tal, se venha a transformar num partido político. Seria néscio colocar sequer tal hipótese. Entendo, porém, que a extrema gravidade do momento político que atravessamos impõe a urgência de agir no plano da disputa do poder, oferecendo assim a necessária resistência àquilo que é, em Portugal, na última meia centúria, a maior ofensiva contra o Estado social, tendo como consequência um retrocesso civilizacional. Forças inimigas, internas e externas, daquilo a que António Sérgio chamava a Democracia autêntica, e inimigas também do progresso civilizacional fundado no programa iluminista já estão hoje no poder, exercendo-o de uma forma imoral ou amoral. Isto impõe urgências. Sabem aqueles que se esforçam por aprender com a História que as forças do totalitarismo populista, sempre à espreita, não incorrem no vício da demora. A democracia está gravemente enferma, necessitando de premente cuidar intensivo. Os actos eleitorais, elemento basilar na determinação da chamada “vontade popular”, tornaram-se uma completa fraude.

Deixo à consideração de todos, no seguimento da opinião que sistematicamente tenho publicado através de artigos e ensaios, os seguintes factos: a) a abstenção é maioritária em comparação com qualquer escolha partidária; b) os votos brancos e nulos correspondem a uma percentagem eleitoral muito superior à dos resultados obtidos pela maioria dos partidos; c) a consideração do somatório da abstenção, dos votos brancos e dos nulos impõe a conclusão de que a clara maioria dos cidadãos eleitores está insatisfeita com a oferta e não se reconhece representada; d) o eleitor vota sem a menor garantia de ver respeitada a vontade que expressa, dada a inexistência de mecanismo eficaz impeditivo da discrepância de conteúdos entre programa eleitoral e programa governamental executado; e) o partido que vence as eleições representa uma magra minoria e, consequentemente, institui o governo de uma minoria, subvertendo por completo um princípio básico da democracia: o do primado da vontade maioritária; f) a descrença no sistema democrático é cada vez mais profunda e ampla, deixando o cidadão menos imune a propostas não democráticas, mais debilitado face a hipotéticas alternativas totalitárias.

Na minha óptica, este conjunto de factos (bem como outros aqui não evocados), com as exuberantes evidências que transporta impõe, a toda e qualquer organização política que se posicione na barricada da resistência aos inimigos acima referidos (sejam eles os que já estão no poder ou os que o espreitam munidos da poderosa arma do populismo totalitário), impõe a urgência do combate pelo poder. O MDR não deve nem pode colocar-se à margem desse combate instante. Deve estabelecer imediatamente alianças com outros movimentos, instituições, organizações que se mostrem disponíveis para travar esse combate, integrando a barricada da resistência. Numa óptica democrática, essa luta passa pela ampliação da oferta eleitoral. Um alargamento que tem que ser esforçadamente construído, sendo tarefa deste aqui e agora, e não de distante tempo.

Sem beliscar o empenho com que me envolvi neste processo fundador, não posso também deixar de expressar a minha convicção de que neste gravíssimo momento histórico toda e qualquer nova organização política deve ter como primeira prioridade injectar moral e ética no corpo político, assim como, em geral, no corpo societal. Lamento por isso que o MDR não tenha definido expressamente como seu outro objectivo a feitura de uma Lei Anticorrupção que altere a ineficaz legislação em vigor. A quantidade de imoralidade à solta na sociedade e a banalização do acto imoral ou eticamente reprovável corrói vorazmente o corpo da nossa debilitada democracia. Os perigos e ameaças multiplicam-se. Agigantam-se. Impõe-se derrotar o inimigo. 

 

                                                                                            João Maria de Freitas Branco

                                                                                            Caxias, 16 de Junho de 2013

 

sábado, 20 de abril de 2013

Austeridade


A última página da revista “Visão” tem vindo a criar em mim o hábito de leitura iniciada de trás para a frente. Nela deparamos com a “Boca do Inferno”, invariável manifestação de um denso humor inteligente, qualidade incomum entre os nossos escreventes. Fenómeno reconfortante. Mas a crónica desta semana é de singular qualidade, porque combina o dito humor inteligente com a ironia, a lucidez política, a sensibilidade humanística e a tragédia. Óptimo cocktail. Razão para não querer deixar de vir aqui recomendá-la a todos os Amigos do Facebook. Só para abrir o apetite de leitura aqui ficam estas linhas da crónica assinada pelo Ricardo Araújo Pereira: «Quando eu for grande quero ser teórico da austeridade. […] A austeridade destaca-se, na história das ideias, por uma característica original: não tem alternativa. […] é um sossego. A austeridade pretende controlar o défice mas não consegue. Paciência: não há alternativa. A austeridade aprofunda a recessão e gera desemprego. Paciência: não há alternativa. A austeridade, enfim, não está a funcionar. Nada a fazer: não há alternativa. […] Imagine que vai ser devorado por um tigre. Fugir do tigre não vale a pena. Não seja lírico. Já lhe disseram que não há alternativa. Lutar com o tigre é inútil (recordo que não há alternativa). O melhor é ficar quieto e deixar-se devorar. E, já agora, deitar uma pitada de sal no lombo, que o tigre gosta da carne apaladada. O trabalho do Governo é tratar deste tempero. Não se preocupe com nada.»

Parabéns Ricardo. Caros Amigos, leiam a crónica completa, on line ou em papel, mas não fiquem quietos a deixarem-se devorar pela poderosa cambada que por aí anda à solta. Bom fim-de-semana.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Agir para mudar


 

O discurso de despedida do Sr.Relvas e a última comunicação ao país do primeiro-ministro são indicadores claros do estado de decaimento moral e ético-político a que se chegou nesta extremidade peninsular. A situação é alarmante e de uma gravidade profunda que vai para além do puramente político. São os princípios civilizacionais que estão a ser destruídos.

O discurso de vitimização do primeiro-ministro, culpabilizando o Tribunal Constitucional, para além de ser politicamente inaceitável (o Governo tem que respeitar o normal funcionamento dos órgão de soberania), é também expressão da mais descabelada desonestidade. O ensurdecedor silêncio do Presidente da República em face do vil ataque governamental desferido contra o Tribunal Constitucional mostra bem como a desonestidade anda completamente à solta. Porventura não menos alarmante e revelador desse à-vontade é observar que pessoas respeitáveis e respeitadas como o comentador político Marcelo Rebelo de Sousa, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa -- note-se bem --, aparecem na praça pública a elogiar o discurso do primeiro-ministro, não fazendo qualquer reparo a um gesto politiqueiro desrespeitador da própria cultura democrática e do sistema constitucional. Por via do silêncio de uns e/ou do não-silêncio de outros a imoralidade é deixada à solta, banalizada, e com isso a civilização vai ficando cada vez mais ameaçada.

Nada se ergue contra esse espectáculo de política reles, obstrutora do normal funcionamento do Estado de direito democrático? Nada se faz em prol da elevação ético-política?

Cristalizou no seio do nosso regime democrático uma casta política contaminada de deficientes morais que governa o país sem elevação, sem grandeza, sem sentido de Estado, sem competência, sem convicções que, na prática, tem dificultado grandemente a participação cívica e impedido a concretização de alternativas políticas autênticas. Uma choldra que é preciso combater introduzindo mudança -- desde logo na lei eleitoral, de modo a retirar às direcções partidárias o monopólio da escolha dos deputados e a impedir a fraude eleitoral reinante (descoincidência entre programa executado e programa votado, deficit de representatividade, poder da minoria, interesses particulares instalados, etc.)

É urgente agir contra a imoralidade à solta e em defesa da elevação.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Eleição papal: um convite à meditação


Eleição papal: um convite à meditação

Sumo Pontífice ou sumo decaimento da honestidade intelectual e da elevação civilizatória?

Fará sentido que um ateu se preocupe com o que está a acontecer na Igreja Católica(IC) e com os destinos do Vaticano? Não deverá permanecer indiferente a tais aconteceres, incluindo a escolha papal? Deverá regozijar-se com o espectáculo de definhamento da Igreja? A minha resposta a estas duas últimas interrogativas é Não. Do mesmo modo que a não pertença a uma Nação não legitima a atitude de indiferença face a uma ditadura que a flagele, servida por deficientes morais no governo; isto por mais distante que seja essa Nação, como no caso da Coreia do Norte. Qualquer pessoa de bem deseja que os países, as instituições, as elites do poder sejam mostra de elevação, de crescimento civilizatório, de salubridade ético-política, de banimento daquilo a que Kant chamou menoridade. 

A sucessão de acontecimentos no Vaticano é de inequívoca relevância para qualquer cidadão praticante, ou seja, para todo o sujeito intelectualmente desperto, inteligentemente motivado a permanecer em estado de vigília cívica. Os acontecimentos fornecem generosa colecção de conteúdos de reflexão/problematização, favorecendo a construção fundamentada de respostas esclarecidas e esclarecedoras.

Uma primeira conclusiva que parece entrar por fim na esfera das evidências pode enunciar-se assim: a religião não melhora as pessoas, não aperfeiçoa o ser humano. A Cúria, composta, em teoria, pelos homens de mais densa fé religiosa, é afinal uma montra de horrores – vícios, abusos, traições, assédios morais, ou, para tudo dizer com católica terminologia, é uma montra barroca repleta de pecados – de grandes pecados (pedofilia, fraude, negócio de armas).

Outra coisa que desejo ver entrar no domínio da evidência, apagando persistente engano, é a conclusão de que nem todas as opiniões merecem consideração. Muito pelo contrário: opiniões há, e não poucas, que não merecem o menor respeito, nem no plano intelectual nem no plano moral.

O caso em apreço é exuberantemente exemplificativo. Eis o ponto essencial a que pretendo chegar.

Em cada momento histórico, os seres esclarecidos estão munidos de um conjunto de ferramentas imateriais; têm, digamos assim, um kit básico da mente esclarecida. Ora acontece que hoje o pensamento e a acção da IC colidem frontalmente com esse equipamento. A contradição ganhou foros de aberração. E mesmo para quem, como eu, está ciente da infinitude da estupidez humana não deixa de ser incomodativo observar o gigantismo de certas falácias, incongruências, cegueiras. Vejamos: os cardeais são vistos na azáfama do manobrismo político, do jogo de influências, da luta dos lóbis (mais ou menos gays). Mas do mesmo passo todos eles, sem excepção, declaram que “é o Espírito Santo que vai decidir quem é o novo Papa”. Pode isto merecer consideração? Então os Srs. Cardeais insultam o Senhor de forma tão descarada? Se é verdadeira a divina intervenção do Espírito Santo na escolha papal, porquê então a azáfama? Porquê tanta preocupação terrena, tanto jogo político de bastidores, tanto afã no arquitectar de influências, tanto manobrismo de fazer inveja a qualquer partido político? Como podem os cardeais ser tão descrentes da influência divina? Como podem estar tão despidos de fé? Não ficam os católicos horrorizados com essa nudez herética? Ao cabo de contas, verifica-se que os máximos responsáveis da IC, entre os quais está o próximo sumo Pontífice, acreditam tanto no influir do divino Espírito Santo quanto eu, céptico ateu crítico-racionalista. Mas há mais. Imagine-se que a partir de hoje se estabelecia que Portugal passava a ser um Estado religioso, como os há com fartura no mundo islâmico. Imagine-se que as mulheres lusas ficavam proibidas de votar e de exercer o cargo de Presidente da República, primeiro-ministro, ministro, etc. Que diriam as nossas católicas? Como reagiriam? Será que se resignavam, advogando a docilidade de rebanho? Ficariam passivamente indiferentes a essa escabrosa injustiça, quando a nobre ideia de Igualdade, pilar civilizacional, triunfou há mais de duzentos anos? Não posso nem quero acreditar que assim fosse. Porém, assim é quando em vez de Portugal se fala do Vaticano.

É admissível que uma religião possua um Estado? Como aceitar com tranquilidade, sem sobressalto ético-político-cultural, a existência no coração da Europa de um Estado religioso, decorridos que estão mais de duas centúrias desde o triunfo da Revolução Americana e da Francesa que nos legaram a noção de Estado de direito democrático, precioso fruto do esforço de alguns dos melhores espíritos do Iluminismo? Vêm então evocar “a figura de Deus”, o deus cristão – que, convirá recordar, é um dos cerca de 2 mil deuses demiúrgicos recenseados, tendo todos em comum o facto reconhecido de nunca ter sido provada a presença de nenhum deles – colocando a sua existência como Verdade absoluta, coisa que, se transposta para fora do espaço puramente religioso e ai aceitada, uma só vez que seja, escancara de imediato a porta ao irracionalismo caótico. Tudo passa a ser intelectualmente permitido. Se não é exigida verificação racional, se o que nem sequer é asserção objectiva (por ausência de provas) for aceite como verdade absoluta universal, então eu quando for dar uma aula, fazer uma conferência ou botar palavra em letra de forma posso dispensar o esforço do estudo sério e abraçar o atraente e vantajoso facilitismo da pura imaginação à solta. Poderei então apregoar descobertas fantásticas, evocando conversas com uma fada empoleirada no pinheiro do meu jardim ou com o extraterrestre que veio tomar o pequeno-almoço a minha casa, estacionando o disco voador à minha porta, ou até uma cavalgada com as renas do Pai Natal.

Como é que esta avalanche múltipla de desonestidade intelectual desavergonhada não gera vagas de indignação do tamanho das do tão em voga canhão da nossa costa oceânica, vagas apropriadamente nazarenas? Como pode esta imensa colecção de despautérios não gerar movimentos de católicos indignados? Como se pode tolerar tanto arcaísmo intelectual, tanto anacronismo político-social, tantos maus tratos infligidos aos valores civilizacionais, tanta presença de deficientes morais e intelectuais no poder?

Desejoso de ver a IC expurgada de pecados, deposito aqui os meus mais sinceros votos de que o novo Papa e a Cúria renovada consigam edificar uma religiosidade genuína, despida de bullshits, para usar o termo que o filósofo americano Harry Frankfurt trouxe para o léxico filosófico. Uma religiosidade favorecedora da elevação, da honestidade intelectual e da matura acção civilizatória. É este o franco e são desejo deste confesso ateu religioso.

João Maria de Freitas Branco (filósofo)

Artigo de opinião, jornal “Público”, edição de 13 de Março de 2013, p.47.

segunda-feira, 11 de março de 2013

DUSZYNSKA e a minha perplexidade indignada



Sabem aqueles que acompanham a minha vida pública que no espaço da saudável controvérsia, do debate de ideias, sempre recuso a fulanização. Estará aí, por certo, uma das minhas muitas costelas sergianas. Não vou aqui abrir excepção. No entanto, depois de ao longo dos últimos dias ter escutado e lido com atenção múltiplos comentários sobre o que se está a passar no interior da Igreja Católica não posso deixar de manifestar perplexidade apimentada de indignação face ao silêncio dos ditos comentadores, e principalmente os que são católicos confessos (como é o caso de um dos mais mediáticos comentadores políticos desta nossa terra), face ao que considero ser uma aberração civilizacional, para além de o ser, também, e em particular, no plano da moral e da política ou, se preferirem, da ético-política.

 Refiro-me ao acontecimento ocorrido no passado dia 8 de Março, dia internacional da mulher, nas imediações da Basílica de S.Pedro, em Roma. A religiosa americana, católica, Janice Sevre-Duszynska, manifestou-se na via pública apelando à aceitação da ordenação de mulheres no seio da Igreja Católica e chamando a atenção para a ausência de vozes femininas no Conclave que se vai iniciar hoje, na cidade do Vaticano. Ostentava um cartaz onde se podia ler o seguinte: “As Mulheres Padres estão aqui”. Foi detida pela polícia “por estar a usar vestes litúrgicas”.

Será que isto não é obrigatoriamente tema de debate político, social, cultural? Como se justifica o silêncio dos principais comentadores políticos? Recorde-se que o Vaticano é um Estado e que o Conclave elege o chefe desse mesmo Estado (designado por Papa ou sumo Pontífice), de aí resultando depois a formação do Governo do Estado do Vaticano (a Cúria).

Os motivos da minha perplexidade indignada não ficam por aqui. Há mais.

A católica Janice Sevre-Duszynska, cidadã americana, foi excomungada pela Igreja por se intitular “mulher padre”, depois de ter sido ordenada à revelia das autoridades eclesiásticas de Roma e contra a vontade expressa dessas autoridades. Repito: excomungada. Ao que se entende, o seu grave pecado consistiu em ser tão católica que desejou, e deseja ardentemente, dedicar a sua vida à obra religiosa, como qualquer vulgar padre católico. O problema está no sexo. É que para o fazer tinha que ter nascido homem. Teve o azar de nascer mulher, e um ser do sexo feminino, aos olhos da hierarquia da Igreja, da Igreja Católica, não pode ser católico a esse ponto. Portanto, Janice pecou, incorreu em gravíssimo crime, tão grave que foi, repito, excomungada. Foi amaldiçoada pelos seguidores de Cristo que governam o Vaticano, incluindo aquele que se afirma ser representante do deus católico no Planeta azul – precisamente o mesmo deus adorado pela religiosa americana.

Será que isto não é motivo de debate? Será que não deve convocar necessariamente a atenção de todo e qualquer comentador que se preze? Poderão, em pleno século XXI, os comentadores políticos e os fazedores de opinião da nossa praça ficar em silêncio, indiferentes a este acontecer? Com que fundamentada justificação?

Já que se fala de excomunhão seja-me permitido o atrevimento de aproveitar a circunstância para deixar aqui um singelo pedido público.

Há muitos anos que procuro a lista de nomes dos responsáveis por Auschwitz e pelo Holocausto que tenham sido excomungados pela Igreja Católica. Será que algum dos meus estimados leitores católicos, ou algum dos populares comentadores católicos, faz o favor de me fazer chegar essa informação? Desde já me apresso a agradecer toda a atenção prestada a este meu simples pedido, espero que não demasiado atrevido.

Claro está que a lista solicitada não serve de justificativo para a maldição lançada sobre a católica americana, mas, como espero que compreendam, sempre alivia um pouquinho o agudo sofrimento que me causa a dor da perplexidade indignada que me fere.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Resposta a uma leitora


Resposta à prezada Leitora e Amiga-Facebook Maria Gabriela Bragança:

Compreendo o sofrimento a que alude. Mesmo não conhecendo pessoalmente D.Carlos de Azevedo -- o que para o efeito é irrelevante --, desejo que a sua inocência venha a ser provada tão depressa quanto possível. Que esteja claro para todos os meus leitores não ter havido da minha parte a menor intenção de acusar o Bispo D.Carlos de Azevedo ou o propósito de emitir qualquer juízo sobre a alegada prática de assédio sexual. Insurjo-me, sim, de forma veemente, contra o pensamento e a acção da hierarquia da Igreja Católica que insultam a inteligência, a moral e os princípios civilizacionais. Aludi ao tão badalado “caso D.Carlos de Azevedo” apenas porque ele ilustra bem a desonestidade intelectual que a Igreja exibe, bem como as aberrações que de aí resultam. Essa desonestidade ofende, por exemplo, a dignidade de todos os padres homossexuais como D.Carlos Azevedo. Para que não haja dúvidas, passo a citar o próprio Papa: «A Igreja não pode admitir nas ordens sagradas e nos seminários aqueles que praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais profundamente arreigadas ou que apoiam a chamada cultura gay» -- palavras do sumo Pontífice pronunciadas no dia 28 de Novembro de 2005, em pleno século XXI. Estranho é parecer ficar eu, que sou ateu heterossexual a tempo inteiro, mais indignado com este discurso papal do que muitos católicos homossexuais, incluindo Bispos, que perante o carácter aberrante do citado discurso papal permaneceram e permanecem em silêncio. E, não fosse eu ateu, racionalista crítico materialista ficaria também, no mínimo, bastante preocupado com o silêncio, com o apartamento, com a ineficácia, com a impotência do divino Espírito Santo perante a dimensão do despautério. Mas, “graças a deus”, escapo a esse dubitativo incómodo.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A homossexualidade do Bispo


O caso do Bispo D.Carlos de Azevedo (mais um caso), que nas últimas horas ganhou grande visibilidade mediática, exemplifica o que escrevi nos meus últimos textos aqui publicados sobre a Igreja católica. Na base deste caso está essa mesma ideologia, de um gritante conservadorismo reaccionário, que tem sido cultivada pelo Vaticano e, em geral, por toda a hierarquia da Igreja. Essa ideologia (pensamento católico oficial) bem como a acção que nela se estriba entram em clara contradição com os Direitos do Homem, ferem os mais elementares princípios da Liberdade, então em conflito com a Civilização e com as suas linhas de progresso, pelo que devem ser denunciadas como factor de obscurantismo, como coisa inaceitável, acintosa e vergonhosa. A interferência da Igreja na liberdade sexual dos seres humanos, a que se adiciona o sistemático encobrimento de actos de prevaricação cometidos pelos seus membros, prefigura a prática de crime.

Faço notar que perante a denúncia interna de um alegado crime de assédio sexual feita por um padre contra um Bispo, a instituição Igreja católica, decorridos que estão mais de dois anos, não apresentou o caso às competentes autoridades judiciais do Estado português para que pudesse ser investigado e, confirmando-se ter havido prática criminosa, ser julgado em tribunal. Atitude de silenciamento bem pouco digna e nada cristã, para além de ser ilegal.

 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Esclarecedora resignação papal


A renúncia papal parece ter tido já o indiscutível mérito de tornar visível para o grande público o que é a realidade interna do Vaticano: um ninho de víboras, um campo de batalha pelo poder em que a mais desavergonhada imoralidade prolifera livremente. A cada dia que passa, vamos percebendo de forma clara quais foram as verdadeiras causas do acto de resignação. O correspondente do El País em Roma, o jornalista Miguel Mora, escreveu o seguinte: «Os lobos ganharam a partida»; Bento XVI resolveu partir «antes de ser devorado pelos abutres». Pudera, ninguém duvidará que o cardeal Joseph Ratzinger, até bem antes de se ter tornado Papa, já conhecia de ginjeira a vasta e truculenta história de mortes misteriosas e assassinatos de Pontífices. O caso de Albino Luciani, Papa por um mês com o título de João Paulo I e cujos discursos pontifícios estranhamente (ou talvez compreensivelmente) não se encontram à venda na livraria do Vaticano (como pude comprovar in loco), está ainda bem presente na memória das pessoas informadas. Como alguém escreveu, «muito longe do céu e muito perto dos pecados terrestres» o Vaticano é «um ninho de hienas enlouquecidas» lutando pelo poder, pela defesa de privilégios. Na cúria não se olha a meios para atingir os inconfessáveis fins. Foi esse oceano de imoralidade, de corrupção, de ódios, de traições, de crimes financeiros, e sei lá que mais, foi isso que Bento XVI acabou por descobrir completamente, através de um comunicado elaborado por um grupo de cardeais, ao regressar a Roma depois da viagem ao México e a Cuba.

A toda esta montanha de imoralidades, ao desavergonhado apego aos bens materiais e ao poder temporal em total detrimento da apregoada espiritualidade cristã, junta-se um asfixiante conservadorismo reaccionário de que Bento XVI foi o último lídimo representante no seio da Igreja católica. A condenação das teologias da libertação paralelamente à revogação da excomunhão dos arcebispos fascistas lefebvrianos, que recusam o Concílio Vaticano II; a classificação da manipulação genética e outros trabalhos de investigação científica como sendo um dos sete pecados capitais; a descriminação da mulher; a perseguição dos homossexuais; a ameaça de excomunhão endereçada aos políticos defensores da legalização do aborto e a excomunhão de jovens violadas que decidiram praticar o aborto, quando não consta que nenhum dos responsáveis por Auschwitz tenha alguma vez sido excomungado. Enfim, é melhor ficarmos por aqui pois a indecorosa lista de obscurantismos vergonhosos é demasiado longa. As intrigas, as negociatas, os comportamentos mafiosos envolvendo o Banco do Vaticano, o apego ao poder temporal, etc. etc. sugerem fortemente que haja prelados da Igreja, no próprio topo da hierarquia, que afinal não são nada cristãos. Talvez não falte quem um dia se lembre de dizer que eles são assim, homens maus, por serem bispos ateus. Como se calculará, não me desagrada a eventualidade de se terem “convertido” ao ateísmo; o que me indispõe é serem desonestos, corruptos, criminosos, mafiosos, sejam crentes ou não crentes disfarçados de cardeais. Uma coisa parece ser exuberantemente evidente quando hoje se observa o que se passa no Vaticano (e já deixando de olhar para o passado): a religião não faz com que as pessoas se comportem melhor; não lhes confere superioridade moral. O mesmo vale para o ateísmo.

Entretanto, cá na nossa terrinha todos os dias aparecem uns patetas sorridentes, beatos empedernidos, que alegremente proclamam que a Igreja não está em crise, que está plena de saúde. Caramba! São tão sectariamente patetas que até nem percebem ser o próprio Papa que dizem adorar quem está a denunciar a vergonha da corrupção nos corredores do Vaticano? No último programa televisivo “Prós e Contras” (que quando se trata de discutir a Igreja mais é um “Prós e Prós” pago por nós), tivemos paradigmáticos momentos de exibição desse patetismo sorridente por vezes agravado de hipocrisia reaccionária, como quando um dos intervenientes, conhecida figura pública ligada ao Opus Dei, se permitiu gozar com o indigno tratamento dado à mulher no interior da Igreja. «A Igreja está cheia de mulheres que participam na vida religiosa e não se calam»,foi mais ou menos isto o que disse o dito Sr. Mas nem Fátima Campos Ferreira nem nenhum outro interveniente no programa soube confronta-lo com a pergunta: quantas mulheres vão participar no próximo conclave para a eleição do sumo Pontífice? Quantas mulheres ocupam lugares de poder na cúpula do governo do Estado do Vaticano? Quantos católicos, mulheres e homens, estariam dispostos a aceitar a implementação no Estado português das regras vigentes no Estado do Vaticano? Que se diria se em Portugal as mulheres passassem a estar impedidas de votar, de serem eleitas para a Assembleia da República, ou de ocuparem o lugar de Primeiro-Ministro e Presidente da República? Qual a noção vaticanista de Democracia? O Espírito Santo é antidemocrata?

Espantoso é ver como em todos estes debates que se têm multiplicado nos últimos dias, cada vez mais acesos, nem mesmo os católicos mais fervorosos aparecem a falar da função da “vontade de Deus”? Afinal que faz deus no meio disto tudo? O Espírito Santo inspirou os eleitores de Bento XVI e agora fica impávido perante a derrota do seu escolhido/protegido na luta contra a corrupção, o crime, a imoralidade na sede da sua própria santa Igreja? Como pode, na óptica de um crente católico, ser tão fraquinha a “vontade de Deus”? Será que afinal o falecido Christopher Hitchens tinha razão e God is not great? Será que a Fé dos crentes no absoluto poder divino, a tal omnipotência divina, é, ao cabo de contas, tão nula como a minha, a de um humilde racionalista laico. Mas que completo despautério!

 

Texto publicado no Blog RAZÃO – razaojmfb.blogspot.pt

 

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Meteorito alfacinha


Curioso que não tenha havido nos últimos dias nenhuma referência pública (que eu tivesse visto) ao facto de ter ocorrido sobre Lisboa, há mais de 30 anos, durante a noite, um fenómeno idêntico ao que foi observado na passada sexta-feira na Rússia. Assim, o nosso meteorito, que não causou onda sónica, continuará travestido de nave espacial alienígena (a “explicação” que prevaleceu na época) e a colorir a memória de muitos incautos alfacinhas.
 
Lamentavelmente não me recordo da data exacta do acontecimento. Tenho ideia que foi no final dos anos setenta do século passado (1978 ou 79). Só tenho a certeza de que foi há mais de 30 anos. Lembro-me de ter ocorrido por volta da uma hora da madrugada. Foi testemunhado por uma equipa de reportagem da RTP que nesse momento circulava na zona do Marquês de Pombal. O efeito mais espectacular foi descrito pela jornalista que integrava essa equipa que regressava aos velhos estúdio do Lumiar: «Repentinamente ficou dia em Lisboa, durante cerca de 10 segundos; foi como se o Sol tivesse surgido no céu apenas durante uns segundos», disse a repórter numa peça que foi apresentada no Telejornal do dia seguinte. Esse depoimento deve estar ainda nos arquivos da RTP. Mas como comentou ontem, na minha página do Facebook, o também jornalista Milan Balinda, o problema é que, ao contrário do meteorito russo, deste nosso não ficou nenhum registo de imagem. Nesse então não havia câmaras de vigilância espalhadas por todo o lado, nem telemóveis. Foi no século passado…

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Dúvidas em torno da renúncia de um Papa



A população católica – cada vez mais reduzida nos países com elevados índices de escolaridade – foi surpreendida pela resignação do Papa Bento XVI. Pondo de parte as amargas razões de saúde que estiveram na base da decisão papal, parece-me a mim, cidadão laico, tratar-se, em princípio, de uma boa notícia, por representar a saída de alguém que, no exercício de um cargo de poder, se opôs ao progresso civilizacional, bem como à modernização da Igreja. A apreciável erudição do teólogo Ratzinger sempre se traduziu em pensamento e acção de acentuado conservadorismo reaccionário. Algo que adquire particular gravidade quando, aproveitando-se da crença de muitos seres humanos, quarta a mais intima e privada liberdade das pessoas, estabelecendo, por exemplo, quais são os comportamentos sexuais virtuosos e os pecaminosos.

Para uma mente critico-racionalista e céptica, como a minha, causa espanto a desconsideração pela alegada omnisciência divina exibida pelos crentes católicos. Admitindo estes como verdade inquestionável que no conclave os cardeais eleitores escolhem o Papa em função de uma directa inspiração do espírito santo, como não estranhar o lapso de previsão? Como pôde escapar a um omnisciente a antevisão de que iriam faltar ao eleito Ratzinger as energias físicas e psíquicas requeridas para o cabal cumprimento da missão papal de representação terrena do próprio divino espírito inspirador? Como se justifica o divino lapso? E tendo-se tornado Papa «por vontade de Deus»,tal como afirmou o próprio sumo Pontífice logo após a sua eleição em Abril de 2005, como ousa agora o ainda Bispo de Roma contrariar essa suma vontade omnipotente? Como pode o humilde servidor contrariar assim a vontade do seu divino Senhor? Falou com o seu Deus antes de resignar, obtendo permissão para o gesto, responderão alguns. Muito bem. Mas então, se resignou também «por vontade de Deus», ou com o seu sapientíssimo agrément, como se justifica que os católicos que tenho escutado nas últimas horas falem invariavelmente de coragem, afirmando, como D, José Policarpo, tratar-se de «um acto extraordinariamente corajoso»? Que coragem, se a decisão foi tomada em sintonia com a vontade divina? Desculpem, mas tenho por hábito reservar o nobre substantivo para qualificar outro tipo de gestos, em que há clara exibição de grande firmeza de ânimo perante enormes perigos, riscos, sofrimentos, etc. Tendo a aquiescência, a concordância, a fiança de um ser omnisciente e, para mais, omnipotente, não vejo que coragem é requerida para avançar… Ou será que me está curta a inteligência?

Recorde-se que, na Europa, no coração da civilização moderna, um Estado como o Vaticano, Estado eclesiástico, não democrático, só pode “justificar-se” com base no suposto da crença religiosa num Deus pessoal demiúrgico, omnipotente, omnisciente, infinitamente bom e misericordioso.

Continuando a colocar-me na posição do crente católico, também não chego a entender as intervenções públicas de vários prelados da Igreja ao longo das últimas horas, discutindo quem deve ser o sucessor, se deve ser “de esquerda” ou “de direita” -- terminologia utilizada por um padre num telejornal. Mas se a escolha vai ser ditada pela vontade de Deus, porquê então tanta preocupação política? Por que temem uns que o sucessor de Bento XVI seja outro conservador e outros que possa ser um progressista que ponha fim a medievalismos como o da subalternização da mulher, o celibato, a condenação da homossexualidade, a proibição do uso de contraceptivos, a estigmatização do divórcio, o impedir da legalização da interrupção voluntária da gravidez ou da prática da eutanásia? Caramba! Não haverá em tudo isto despudorado excesso de contradição, de incoerência, de confusão e, pasme-se, de falta desbragada de Fé católica?

Não será o espectáculo a que temos assistido nos vários órgãos de comunicação desde a hora do anúncio público da resignação papal algo que, dado o contexto religioso, se pode baptizar de “salada de tretas”?

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Um sinal da realidade presente

Começo por uma declaração de interesses: não conheço a SrªGlória Araújo, deputada da Assembleia da República, e até há bem pouco tempo nunca tinha ouvido falar de tal pessoa ou, pelo menos, não tinha retido o seu nome nem memória de nenhum acto por si praticado; não sou membro de nenhum partido político nem contrário à existência de nenhum dos partidos com representação parlamentar; para o que aqui pretendo sinalizar é absolutamente indiferente saber em que bancada do Parlamento se senta a referida Senhora, pelo que omito essa informação.

Pretendo tão só chamar a atenção para uma atitude protagonizada por uma deputada que, a meu ver, é exemplificativa do estado de saúde moral da sociedade em que vivemos. É o assumir de consciência relativamente a esse estado o que aqui verdadeiramente importa, no pressuposto de que esse assumir de consciência é passo necessário, se bem que não suficiente, para se encetar uma acção transformadora no sentido da superação de defeitos comprometedores da saúde do corpo social, da qualidade de vida colectiva.

A deputada Glória Araújo, que integra a Comissão de Ética da assembleia da República, encontrava-se alcoolizada ao volante de um automóvel no dia do seu aniversário, como foi testemunhado pelas autoridades policiais que a autuaram. O facto foi noticiado em toda a comunicação social. Decorrido que está já algum tempo, não consta que a Senhora tenha sido admoestada pelo Parlamento ou pelo Partido, e muito menos que se tenha demitido ou posto o seu lugar à disposição dos responsáveis do seu Partido. Conhecedor destes factos, e usando da sua legítima liberdade, um cidadão resolveu deixar um comentário na página da deputada no Facebook, dizendo que no seu entendimento «havia um preço a pagar para quem, como a deputada, representa o povo português». Segundo o Diário de Notícias (edição de ontem), a deputada respondeu ao cidadão nos seguintes termos:

«Também devia haver um preço para a estupidez e a cretinice. Parece-me é que não consegues pagá-lo. Vai moralizar a tua avó, cretino.”  

Assim falou a representante do povo para o membro do povo no uso da sua liberdade de criticar.

Faço minhas as palavras do jornalista do DN que passo a citar e que encerram a notícia: «ontem, a deputada não fazia anos. E à hora em causa, não teria estado em nenhum bar anteriormente. A resposta é, por tudo isso, ainda mais reveladora».

Será que vai haver alguma reacção oficial do Partido a que a Srª Glória Araújo pertence? Irá a Presidente da AR assumir alguma posição em face deste comportamento? Já passaram dois dias e, até agora, só consegui colher silêncio.

Opus Dei em debate


O Diário de Notícias iniciou ontem (dia 27 de Janeiro) a publicação de um trabalho de investigação jornalística sobre o Opus Dei, organização que cultiva uma concepção do mundo profundamente reaccionária, passadista, insuportavelmente vetusta, mas que não deixa de exercer influência em esferas decisivas no funcionamento da nossa sociedade. Num país quase despido de investigação jornalística, é sempre de louvar o esforço de contrariar essa escassez. Recomendo a leitura deste esclarecedor trabalho, que se prolonga pelas edições do DN de hoje e de amanhã, e lembro que às 11h., daqui a 15 minutos, se vai iniciar um debate que se prevê interessante sobre o Opus Dei e a influência da Igreja Católica na sociedade portuguesa.