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segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Ameaça


 
Sei que estamos na semana do Natal, período em que os cidadãos procuram alhear-se dos problemas do mundo. É humanamente compreensível. Mesmo assim, não consigo deixar de vir a este espaço público lançar novo alerta para a tragédia política que se vai desenvolvendo nos EUA. Tenho crescentes dúvidas relativamente às próximas eleições presidenciais em que o Sr.Donald pretende ser reeleito. Haverá nessa altura, no final do próximo ano, uma real possibilidade de realização de eleições democráticas nos EUA? Suspeito já estar em curso um sinistro plano táctico de desmocratização do processo eleitoral. Estou já a adivinhar ir surgir um grave acontecimento, provavelmente um conflito bélico artificialmente criado e bem encenado, para que sejam dados poderes excepcionais ao presidente, acrescidos de motivos para o adiamento das eleições. O caso Coreia do Norte é o que está mais à mão para que se alcancem os objectivos antidemocráticos pretendidos. Veja-se a manchete de hoje da Fox News online, assim como o artigo que lhe está associado em que se noticia o que se passou ontem. É dito o seguinte:

«U.S. officials on Sunday were on high alert due to a possible North Korean missile launch that has been menacingly referred to by Pyongyang as a "Christmas gift." [John] Bolton said in the interview [published on Axios] that if Kim makes good on the threat and launches a missile the White House should do something "that would be very unusual"».

Mesmo que se consigam realizar eleições democráticas em 2021, duvido seriamente que o Sr.Donald J. Trump aceite os resultados eleitorais caso estes não lhe sejam favoráveis.

O que se está a passar nos EUA é uma verdadeira tragédia política para o próprio país e para o mundo.

João Maria de Freitas Branco
Caxias, 23 de Dezembro de 2019

 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Como combater?


No seguimento do texto “Do Erro à Lição” (17/dez./2019)

A melhor forma de combater a extrema-direita é concretizar políticas que concorram para a Liberdade, para a Igualdade, para a Justiça social e, consequentemente, para uma objectiva melhoria das condições reais de vida dos cidadãos. O totalitarismo só germina em momentos de crise aguda (veja-se o exemplo do Peru, por mim referido num dos últimos textos publicados no blog Razão – razaojmfb.blogspot.com). Outra forma essencial de combater a extrema-direita é a contra-argumentação racional (estribada na Moral, na Verdade, na Lógica, no Rigor, na Fundamentação, na Clareza). Pretender travar esse combate utilizando a agressão com rótulos, o rancor, o ódio é servir os interesses dos partidários do totalitarismo. O rancor, o ódio causam polarização crescente e a polarização extrema serve objectivamente os interesses da extrema-direita, conduzindo à estruturação de formas de totalitarismo.

Considero importantíssimo impedir a queda na polarização extrema. A tragédia política que está a ocorrer nos EUA deve servir de exemplo. Há que conter o efeito cascata: o rancor causa polarização crescente; a polarização conduz à “recessão democrática” (Larry Diamond), serve a desdemocratização acelerada; a desmocratização acelerada asfixia a Liberdade, a Igualdade, a Justiça; sem Liberdade, Igualdade e Justiça o recurso à violência acentua-se; o Mal germina; o Mal organiza-se e institucionaliza-se em regimes totalitários. É a cascata do Terror, porque é aí que a sua água irá desaguar. Depois, repentinamente, o Mal extremo aparecerá solidificado.

O sucesso eleitoral do nacional-populismo não me parece ser imediata expressão de um renascimento do fascismo ou do nazismo. É fruto de um sentimento generalizado de desilusão, de decepção, desencantamento popular face à democracia real. Os causadores desse desencantamento político não foram os fascistas, nem qualquer movimento de extrema-direita; foram sim os “democratas” corruptos, oportunistas, imorais, despidos de carácter os verdadeiros obreiros do desencantamento. A atracção pelo nacional-populismo parece-me ser maioritariamente a expressão do desejo popular de ter uma democracia melhor, mais autêntica. Mas é claro que a extrema-direita pretende manipular esse desejo popular sincero para assim conseguir impor o seu poder totalitário. E não faltarão deficientes morais carismáticos para instituir a grande criminalidade política.

Parece-me ser muitíssimo fácil determinar quem está a lucrar com a atitude de Ferro Rodrigues, pelo que não perco tempo com esse esclarecimento. Tentar demonstrar uma evidência é esforço inglório; por isso é que os matemáticos criaram os axiomas.

 

 

 

 

 

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Do Erro à Lição


 

Como defensor da Liberdade e da Igualdade causa-me incómoda estranheza não ter visto manifestar-se no hemiciclo da Assembleia da República uma imediata e clara condenação geral da muito infeliz atitude do Presidente da Assembleia ao tentar limitar a liberdade de escolha vocabular (não violadora das normas do uso educado de palavras) a um deputado da ala direita do Parlamento. O comportamento de Eduardo Ferro Rodrigues foi um completo infantilismo político, difícil de entender numa pessoa com tão grande experiência política. As declarações complementares, contidas na entrevista publicada na última edição do semanário Expresso, são ainda mais inaceitáveis à luz de elementares regras democráticas de funcionamento de um parlamento, como é o caso, desde logo, do preceito de isenção no exercício das funções de presidente. São erros graves que, por isso mesmo, convocam a urgência de uma reparação. É isso que se espera que venha a ser feito pelo digno presidente da Assembleia da República, segunda figura do Estado, e pela pessoa Eduardo Ferro Rodrigues, homem digno que ao longo de muitos anos de vida política deu constantes provas de rectidão.

Para além do erro e da esperada reparação do erro, há que retirar deste lamentável acontecimento uma lição fundamental: sempre que se transforma um adversário político-partidário num inimigo deteriora-se a qualidade da relação política, no plano pessoal e institucional, polariza-se a conflitualidade e escancara-se a porta ao autoritarismo ou ao totalitarismo que não deixarão de avançar pelo caminho aberto.

Espero que o erro que hoje aqui me trouxe à escrita desagúe celeremente na aprendizagem da lição.

João Maria de Freitas Branco

Caxias, 17 de Dezembro de 2019

 

 

 

 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Ensinamentos da história para combater o totalitarismo

 

O ininterrupto combate político-cultural contra o totalitarismo, entendido como designativo genérico de todo o tipo de organização do viver humano colectivo que promova a extinção da Liberdade e Igualdade, esse combate, antitotalitário, atravessa neste momento uma fase de acelerado aumento de intensidade. Para que a acção dos tutores da Liberdade seja consequente, tanto no plano teórico como prático, entendo ser necessário assimilar dois ensinamentos essenciais legados pela história recente: 1) desde a queda do muro de Berlim, em 1989, os agentes do totalitarismo alteraram o método de intervenção; 2) o militantismo de agitação e propaganda (característico do antifascismo novecentista) não só perdeu eficácia como se tornou contraproducente, acabando por favorecer os interesses dos organizadores do totalitarismo.

O que se passou no Peru logo após o acontecimento que encerra o “breve século XX” (o fim do muro de Berlim), com a rápida ascensão ao poder de Alberto Fujimori no quadro de uma profunda crise económica, parece-me constituir um marco histórico que assinala a referida mudança metodológica. Já não foram os tanques nem os homens fardados empunhando armas que mataram a democracia. Já não era essa a forma mais conveniente e eficaz. Emergiu então uma forma de acção muito mais complexa, mais subtil, politicamente mais sofisticada. Tem ela a enorme vantagem de parecer ser inofensiva para a Liberdade e legítima, principalmente num momento de colapso económico com profundas consequências sociais, como se verificou no final da década de 1980, durante a presidência de Alan García. Esse novo método permitiu subverter a democracia peruana sob a bela capa de uma legalidade democrática. É a demolição aparentemente democrática da democracia. Uma forma “limpa”, por oposição à forma “suja” característica do que era o tradicional golpismo militarista. Tem a acrescida vantagem de ser um processo gradual, e por isso menos visível, mas que não deixa de ser célere. No caso peruano, bastou pouco mais de um ano para que um cidadão pouco conhecido, um académico de ascendência japonesa, se tornasse ditador, tendo derrotado um adversário que era celebridade mundial: o aclamado escritor Mario Vargas Llosa. No dia 5 de Abril de 1992 Alberto Fujimori pôde anunciar publicamente a dissolução do Congresso e a anulação da Constituição. A democracia peruana estava destruída por efeito de uma acção urdida na penumbra sob a máscara de uma normal legalidade democrática. A essa invisibilidade não foram nada estranhos alguns personagens também eles inicialmente bastante pouco visíveis, com destaque para Vladimiro Montesinos, um consultor presidencial que era (e ainda é) um perigoso deficiente moral – personagem típico indispensável à construção e conservação do totalitarismo.

O que se está a passar neste preciso momento nos EUA e em outros países deste nosso mundo deve ser seriamente pensado à luz dos ensinamentos históricos legados pela transformação do modelo táctico que o citado caso peruano exemplifica de forma modelar. Isso contribuirá para o assumir da consciência plena da ameaça real que paira sobre nós.

Quanto ao segundo ensinamento, limito-me a chamar a atenção para o seguinte: a atitude costumada de agredir com rótulos, de arremessar acusações insultuosas, de exibir indignação irritada, de baldear ódio equivalente ao que os adversários/inimigos políticos utilizam contra nós, não é, ao que me parece, a forma mais inteligente de combater quem contribui, consciente ou inconscientemente, para a extinção da Liberdade. A polarização odiosa favorece o inimigo da Liberdade. Não é por acaso que Donald J. Trump a alimenta diariamente, deslegitimando e demonizando os seus críticos ou opositores. Em vez disso, e se não me equivoco, o que o amante da Liberdade tem que fazer, já e sempre, é intervir pedagogicamente, utilizando os ensinamentos da história para dar a ver os perigos latentes resultantes da mudança metodológica, da transformação estratégico-táctica associada à nova acção dos amantes do totalitarismo.

João Maria de Freitas Branco

Caxias, 6 de Dezembro de 2019

 

 

 

domingo, 24 de novembro de 2019

A deputada Joacine


Declaração da deputada Joacine Katar Moreira ao jornal Observador(24/Novembro/2019):

«Fui eu que ganhei as eleições, sozinha, e a direcção [do partido] quer ensinar-me a ser política.»

Vejo que vão ser necessárias muitas e competentes lições para conseguir que a senhora deputada aprenda o novo ofício. Para que o esforço lectivo seja bem-sucedido, receio que seja também necessária a adição de alguma dose de inteligência.
João Maria de Freitas Branco
Caxias, 24 de Novembro de 2019

 

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Os mil dias de Trump


Os mil dias de Trump

 

Em medos do passado mês de Outubro, creio que no dia 17, Donald Trump perfez mil dias de presidência do Estado mais poderoso do Planeta. Não sei se terá existido alguma dessas mil jornadas em que eu não tivesse sido surpreendido por qualquer coisa que supunha ser impossível acontecer sem que de aí adviessem imediatas consequências politicamente fatais para o inquilino da Casa Branca, abrindo rápido caminho para o seu ocaso político, ditado, desde logo, pela perda da base eleitoral de apoio e por inevitável processo de impeachment protector e dignificante da democracia. No entanto, sou forçado a admitir que estava iludido. A realidade encarregou-se de demonstrar a falsidade da minha optimista suposição. Nenhum desses passos presidenciais, fosse um discurso, uma decisão política, um twitter, uma opinião ou qualquer outro acto comportamental do Sr.Donald, provocou a sua morte política. Agora já prepara a sua reeleição, não se vislumbrando enfraquecimento no amparo concedido pelo Partido Republicano..

No centro da vida política de um Estado de direito democrático fundado por homens iluminados, como foram John Adams, Thomas Jefferson, James Madison, Benjamin Franklin, Thomas Paine, acreditava-se ser muito difícil acontecer o que na realidade aconteceu nestes últimos anos, desde o anúncio da candidatura de Donald J. Trump em 2015. Mesmo conhecendo bem as intrínsecas fragilidades da democracia, na América como em qualquer outro ponto do globo em que tenha sido instaurada; mesmo sabendo que nenhuma conquista é definitiva e que a liberdade, a justiça, a igualdade, a fraternidade estão em permanente fase de construção; e não desconhecendo os graves defeitos e as grandes limitações do sistema democrático norte-americano, estava convencido, mesmo assim, que os EUA, por efeito da qualidade intelectual dos seus Founding Fathers (pais fundadores) e do system of checks and balances por eles tão lucidamente pensado e esculpido, era um dos países mais escudados contra as cíclicas vagas de totalitarismo que a história vai sempre proporcionando. Vejo-me de novo forçado a reconhecer que nem a minha velha atitude crítica me fez escapar à queda num certo excesso de optimismo, talvez ditado por alguma dose de ingenuidade política. Não terei sido o único.

A principal causa do fenómeno trumpistico, a que temos assistido com crescente pasmo, reside na acumulação de actos políticos que explicam por que razão existe tanta pobreza no país mais rico do mundo. E tanta desigualdade, e tanta injustiça social, e tanta insegurança. A riqueza e o poder concentraram-se numa magríssima fatia do corpo societal (correspondente a 1% da população) e essa concentração não parou de aumentar de acordo com uma lógica capitalista que se foi desbragando também por directo efeito da queda do muro de Berlim, tomado como símbolo do desaparecimento do “socialismo real” e marcando o fim de um século breve, o da “era dos extremos” como lhe chamou Eric Hobsbaum.

Se Donald Trump fosse um autêntico político, se tivesse um programa consistente, um plano estratégico sólido, articulado com uma táctica perspicaz, e se fosse um tribuno carismático, teriam bastado estes mil e tantos dias para vermos a democracia norte-americana em estado de perfeita ruína. A sua ininteligência, a sua inépcia, o seu comportamento errático, a sua imprevisibilidade, o seu infantilismo, a sua grosseria generalizada têm ameaçado a democracia, a liberdade, a paz, mas, paradoxalmente, e se não erro, são ao mesmo tempo, involuntariamente, elementos protectores da democracia, por serem defeitos tão vincados, fragilidades tão cavadas que acabam por estorvar a pretendida solidificação de um trumpismo (corpo ideológico), emergindo como renovada forma de totalitarismo. Sendo um deficiente moral, Trump é o exuberante protagonista do moderno populismo demagógico, o da época digital, da política twiter ou twitada, da informatização sistemática da mentira manipuladora, assim tornada global. Trata-se de um tipo de nacional-populismo. Ele, Donald, é o clawn de serviço que se vai exibindo em impudicos espectáculos de variegado formato. O mais grave é que o Partido Republicano se converteu a essa figura obscena e, em vez de procurar conter os seus indignos excessos presidenciais, dá-lhe oxigénio, oferece-lhe amparo, fecha os olhos perante o que bem sabe serem desprezíveis dislates, que chegam a denegar em absoluto a própria letra da histórica Constituição dos EUA.

Não se trata de conversão súbita. A profunda metamorfose do Partido Republicano iniciou-se muito antes do aparecimento de Trump na ribalta política; passa, por exemplo, pelo gangsterismo político-militar protagonizado por indivíduos como Donald Rumsfeld, Dick Cheney, Paul Wolfowitz no tempo da presidência de George W. Bush.

A assustadora e gravosa aceitação do inaceitável por parte dos republicanos talvez se deva em alguma medida ao facto de acreditarem na indestrutibilidade do sistema democrático. Por conveniência táctica, conjuntural, de imediatismo eleitoralista, permitem as incorrecções, supondo que essa permissividade nunca chega a colocar em risco o regime. Se assim for, enganam-se profundamente. O totalitarismo é uma expressão política do Mal. Por isso, nunca está definitivamente sepultado. Pode, quando muito, estar latente, numa espécie de estado de hibernação mais ou menos prolongado, mas sempre à espreita da oportunidade para o despertar, para o ressurgimento. É o ovo da serpente cinematograficamente trazido até nós por Ingmar Bergman sob inspiração shakespeariana -- «And therefore think him as a serpent's egg» (Julius Ceaser, fala de Brutus).

Neste contexto, sou tentado a estabelecer analogia com realidade a que temos assistido cá por casa, bem dentro do nosso torrão. Estou a pensar nas transformações observáveis na nossa comunicação social nos últimos anos. Quando emergiu um certo modelo sensacionalista, fazendo da notícia uma forma de espectáculo manipulador e implementando o populismo jornalístico ou, se preferirmos, o “jornalismo populista”, em que os critérios editoriais se submetem ao gosto da populaça, ao atraente jogo das emoções, ao irracional, em detrimento da verdade do conteúdo informativo – a regra do tudo vale desde que contribua para aumentar os índices de audiência --, quando por cá surgiu este modelo, houve no início saudáveis e louváveis reacções de demarcação, com o objectivo de defender o Jornalismo; mas a pouco e pouco fomos assistindo não ao recuo do sensacionalismo populista, senão que a uma conversão semelhante à dos republicanos americanos: muitos órgãos de comunicação, incluindo os de referência, foram adoptando o modelo sensacionalista-populista. O jornalismo (o autêntico) passou a estar em risco de total extinção. De forma semelhante, nos EUA, a surpreendente (ou talvez não) conversão do Partido Republicano ao modelo trumpistico faz com que a democracia na América passe a estar em risco de extinção. O óbito do jornalismo português, se vier a ocorrer, é improvável que tenha efeito de contágio imediato no panorama internacional, enquanto o óbito da democracia nos EUA terá inevitáveis consequências a nível planetário, pondo de imediato em risco a democracia em todos os cantos do mundo.

Depois de tudo aquilo a que temos assistido no decorrer dos já mais de mil dias de presidência trumpista, creio dever-se concluir que este sujeito, com as suas notórias deficiências, possui uma rígida base social de apoio. Não sendo claramente maioritária, é, ou tem sido, no entanto, muito estável. Ameaçadoramente firme. Cada comício trumpista é disso exemplo claro. E como sabemos, o exótico sistema eleitoral americano possibilita a vitória de quem perdeu no voto popular (Trump detém o recorde negativo, pois chegou à Casa Branca mesmo tendo recolhido menos 2,8 milhões de votos do que a sua adversária Hillary Clinton, em 2016).

Como justificar essa solidez perante tamanha dose de despautério político, de incoerência, de mentira, de indecência, de indignidade?

As oposições a Trump, dentro e fora dos EUA, não parecem estar a compreender a essência do fenómeno. Se muito não me engano, tal acontece, em boa medida, por implicar o público reconhecimento de gravosas acções praticadas por esses mesmos opositores durante longo período de tempo. Acções que profundamente lesaram milhões de pessoas de diferentes estratos sociais, fazendo com que algumas (muitas) dessas pessoas (cidadãos eleitores) apareçam agora a avolumarem o eleitorado dos actuais líderes do nacional-populismo em vastas zonas do globo.

Em primeiro lugar é preciso compreender que as eleições americanas de 2016 têm um valor simbólico universal. A derrota de Hillary Clinton representa a condenação de políticas promotoras da desigualdade, da injustiça social, da pobreza (material e imaterial). Políticas levadas a cabo durante décadas pela classe política tradicional e pelos partidos dominantes, constitutivos do “centrão”, do establishment. A campanha eleitoral de Trump centrou-se no ataque à classe política (“a classe política já não trabalha para servir o interesse do povo”), no ataque às administrações anteriores, na crítica ao “modelo económico-social dos EUA” e no lema Make America Great Again. O que atrai a base de apoio e lhe confere solidez é, simultaneamente, uma enorme descrença nos políticos e nas instituições preponderantes, a dimensão de espectáculo (show) e a percepção de que a acção trumpista, assim como o próprio indivíduo Donald J. Trump funcionam como farpas cravadas nos políticos tradicionais caídos em descrédito. Há no partidário de Trump o íntimo sentimento compensatório de ter conseguido ferir o establishment. Isso alegra o povo vitimado pela injustiça. Nos comícios, o estrito conteúdo político pouco ou nada interessa. Importante é assistir ao show do clawn em voga esgrimido contra as elites tradicionais. A reunião política passa a ser acima de tudo um evento mundano, uma forma de entretenimento com o picante de ser algo que incomoda, que irrita o poder político tradicional. Nada disto funcionaria sem a fundamental presença de um outro factor: a ignorância. O baixíssimo nível cultural determina que muitos milhões de cidadãos fiquem votados à incapacidade de compreenderem que, no essencial, estes Donalds em quem depositam esperança estão ao serviço dos mesmos inconfessáveis interesses de uma magra minoria possidente. (No caso vertente, trata-se mesmo de um empresário milionário que enriqueceu no espaço sede do capitalismo e por efeito do funcionamento do sistema capitalista, americano e internacional, sendo alguém que por alguma razão necessita de esconder a sua contabilidade.)

A incultura latente na base social de apoio de Trump é indissociável de uma outra coisa: essa que Albert Einstein considerava ser a única que ele tinha a certeza de ser infinita. É ela a estupidez humana – característica universal, se bem que cada sujeito tenda a considera-la pertença exclusiva do outro, do tu, e nunca um traço típico do eu (do seu eu). A combinação dessas duas coisas (ignorância e estupidez) é potencialmente explosiva. Sabemo-lo. A infinitude parece conferir insuperabilidade a uma delas; mas a outra, a agnosia, mesmo que agigantada, pode ser combatida com alguma eficácia, sendo para tal necessário, antes de mais, convocar com urgência uma séria reflexão sobre o funcionamento real da Escola e sua acção formativa, de modo a facultar um agir consequente.

Mas atenção: a veracidade do que afirmo sobre o grau de ignorância de muitos apoiantes do actual presidente dos EUA, assim como dos partidários de outros dirigentes do nacional-populismo, contém o grave risco de poder conduzir a uma visão simplificadora ou, pior ainda, simplista. E por isso mesmo errada. A agnosia é um factor real. No entanto, supor que a vitória eleitoral de Trump é apenas fruto da ignorância/estupidez de uma grande fatia do eleitorado, como tem sido afirmado por Hillary Clinton e bastantes outros, é um erro crasso. No processo eleitoral democrático não há partido/candidato que não receba votos ditados pela ignorância, incluindo a mais basilar e grosseira (o voto decidido em função da cor das bandeiras ou das gravatas em uso, da beleza da candidata ou do candidato, da escolha aleatória, do absoluto desconhecimento do conteúdo político, seja o ideário, o programa de acção ou as opiniões do candidato). Mas combater o populismo recorrendo a esse tipo de ataque vexatório, que busca a rotulação simplificadora e simplista é também erro estribado na falsa ideia de que a base social de apoio de Donald Trump é homogénea, uniforme, não-complexa. É exactamente o contrário. Para o compreender talvez baste saber que Trump foi eleito com mais de 62 milhões de votos. Um eleitorado que logo pela sua dimensão quantitativa indicia a heterogeneidade. Há nessa base de apoio cidadãos muito contrastantes, do ponto de vista cultural, social, económico, étnico, religioso, sexual e até político. Trata-se de uma base vincadamente complexa e transversal. Imaginar que foram os eleitores brancos abastados, ou os protestantes, ou os católicos, ou os fascistas, ou os racistas, ou os machistas, ou um qualquer outro grupo social com identidade bem definida (um estrato homogéneo) a determinar a vitória eleitoral do candidato republicano nas eleições de 2016 é perseverar num equívoco inibidor da compreensão profunda do populismo, como fenómeno contemporâneo marcante.

A ignorância não é nem a única nem a principal causa do triunfo eleitoral de Trump e da persistente estabilidade da sua base de apoio. Desde logo, porque nunca há uma causa única para um fenómeno de natureza complexa. Não nos libertaremos do estado de ilusão ou auto-ilusão enquanto não assumirmos consciência do elevado grau de complexidade de um fenómeno como o nacional-populismo. Nem sequer há uma causa principal, entendida como factor singular, único. A “principal causa” é múltipla ou multifactorial; é complexa: reside ela no longo e também complexo desempenho político dos mentores da democracia real, essa elite democrática que ao longo de décadas foi semeando descrença/desconfiança em milhões de cidadãos que por fim se convenceram, com forte razão, de que a sua voz deixou de ser ouvida. Foi-se sedimentando um profundo sentimento de injustiça, ao mesmo tempo que ia sendo cada vez mais notório o divórcio existente entre políticos e cidadãos comuns, entre representantes e representados. Muitos destes optaram por deixar de participar, engrossando a abstenção. Outros resolveram começar a votar em novos candidatos que consideram estarem em condições de fazer frente ao establishment. Há mais de quarenta anos que insisto na crítica da democracia real, nomeadamente chamando a atenção para os limites da mais citada, sempre citada afirmação de Winston Churchill sobre o regime democrático. Os efeitos das deficiências da democracia real estão agora a adensar-se, ganhando particular intensidade.

No nosso país, na legislatura que agora se inicia vamos assistindo a coisas muito semelhantes às que antes referi, passadas no distante continente americano, do outro lado do oceano. Em Portugal, houve comentadores políticos e opinion makers que após as últimas legislativas logo vieram a terreiro para atacarem os votantes no principal partido populista (o Chega), acusando-os de menoridade, amesquinhando-os e utilizando argumentos em tudo semelhantes aos de muitos dos opositores americanos de Trump. Lá como cá, por estranho que possa parecer, esta atitude de passar atestados de menoridade a eleitores de partidos ou decandidatos que não estimamos é uma manifestação de ignorância simplificadora, assim como também uma das melhores formas de levar água ao moinho do nacional-populismo. Além disso, de acordo com os índices de audiência tornados públicos no nosso país, o que mais tem atraído a atenção dos cidadãos eleitores é o espectáculo dado por quem se apresenta como dissidente da política tradicional conduzida pelos partidos dominantes. À semelhança do que se observa nos EUA, também por cá o cidadão desalentado, violentado, injustiçado pela desonestidade de muitos dos seus supostos representantes, anima-se com a irritação causada pelos populistas lusos junto dos agentes político-partidários que têm dominado a vida política (“os do costume”, a elite social, económica e política). Tal como os americanos trupistas, também muitos portugueses se divertem com isso. Esse entretenimento funciona como elemento compensatório de muitas das suas frustrações e desgostos políticos validamente fundamentados. Por essa via, e com o permanente concurso da ignorância, o show torna-se ideologicamente muito lucrativo.

O único antídoto verdadeiramente eficaz é ainda e sempre o mesmo: a acção política edificadora do bem-estar assente na criação de igualdade, de justiça, de um generalizado enriquecimento imaterial e imaterial. Nenhum Trump vence eleições se existir um razoável nível de bem-estar geral associado a um sentimento de justiça. As pessoas desejam poder acreditar na classe política. Anseiam por políticos prestigiados e dignos que verdadeiramente os representem. O combate actual contra as novas vagas de totalitarismo implica o saber retirar carburante ao show populista ou nacional-populista. É um urgente combate político-cultural. No caso americano, a infantilidade demencial do presidente é um paradoxal factor de protecção da liberdade e da democracia.

 

João Maria de Freitas Branco

Caxias, 19 de Novembro de 2019

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Perigo Trump


Mensagem do presidente dos EUA recentemente publicada no Twitter:

«As I have stated strongly before, and just to reiterate, if Turkey does anything that I, in my great and unmatched wisdom, consider to be off limits, I will totally destroy and obliterate the Economy of Turkey (I’ve done before!).»

Donald Trump
[14 de Outubro de 2019
]

Em face da declaração citada, será que ainda se pode duvidar que a presidência dos EUA está entregue a um doente mental? O impeachment é tão necessário como urgente!

 

 

terça-feira, 16 de abril de 2019

Notre-Dame


«Tous les yeux s’étaient levés vers le haut de l’église. Ce qu’ils voyaient était extraordinaire; sur le sommet de la galerie la plus élevée, plus haut que la rosace centrale, il y avait une grande flamme qui montait, qui montait […] Il se fit un silence de terreur.»

Palavras com duzentos anos esculpidas pelo punho de Victor Hugo e que estranhamente dizem a actualidade. Também as imagens de ontem vistas por meus olhos incrédulos me pareceram de um outro tempo, um tempo recuado, como que saídas de uma pintura antiga que talvez se chamasse “o incêndio da civilização”. No entanto, eram bem actuais, reais…

Paris n’est plus qu’un cri: Notre-Dame brûle! Notre-Dame brûle!
João Maria de Freitas-Branco
16 de Abril de 2019

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Para uma reflexão


No seguimento do texto publicado ontem no Facebook e aqui no blog RAZÃO dou agora conhecimento de um episódio ocorrido na comunicação social francesa e que me parece merecedor de alguma reflexão.

Durante um telejornal ontem difundido, um jornalista do canal televisivo France2 entrevistou uma jovem astrofísica expressamente convidada para comentar o extraordinário acontecimento científico que marcou o dia – a captação pelo Event Horizon Telescope (EHT) da primeira imagem real de um buraco negro – e no final da entrevista perguntou à cientista se o buraco negro agora avistado não constituía um risco para os seres humanos, bem como para o nosso planeta Terra. A astrofísica conseguiu conter-se e respondeu mantendo uma expressão de seriedade. Mas ficámos a saber que um jornalista internacional de um grande canal de televisão pode não fazer a menor ideia do que é a distância que nos separa da galáxia Messier 87 (geralmente referida abreviadamente como M87, mas também conhecida por Virgo A ou NGC 4486). Situado no núcleo desta galáxia supergigante, o buraco negro está a uma distância de 53 milhões de anos-luz (55 milhões segundo o comunicado ontem publicado no site do EHT). Trata-se de facto de um buraco negro colossal que ainda há bem pouco tempo se supunha não poder existir no Cosmos. A realidade revela-se continuamente mais rica do que a nossa melhor imaginação… Mas mesmo tendo essa incrível dimensão (um diâmetro de 38 biliões de quilómetros e uma massa correspondente à de 6.5 biliões de estrelas como o Sol), não deixa de ser uma coisa muito pequenina se comparada com o espaço intergaláctico entre a nossa Via Láctea e a M87. Além disso, a imagem captada representa o buraco negro central da M87 tal como ele era há 53 milhões de anos ou mais. É uma realidade do passado e não do presente. Sendo que se pudessem existir efeitos nocivos graves projectados a tão grande distância eles, obviamente, chegariam também, na melhor das hipóteses, com esse mesmo atraso de 53 milhões de anos. A questão é ser também absurdo supor que o facto da captação da imagem ia desencadear subitamente, como que por acto de pura magia, efeitos ameaçadores. A luz proveniente do horizonte de eventos do buraco negro, naquela zona central da distante galáxia elíptica M87, há muito que está a banhar o nosso Planeta, mas só agora foi captada por extraordinário mérito da Ciência e da Técnica.

Se um jornalista internacional de um destacado canal francês de televisão exibe tão grande ignorância sobre o Universo em que vivemos, como é que a notícia científica terá sido recepcionada pela generalidade dos seres humanos? Não duvido que haja neste momento na Internet muitas vozes a dizer que a imagem divulgada é a do gigantesco olho negro de uma entidade sobrenatural mefistofélica que nos está a vigiar com o objectivo de destruir a Terra e os seus humanos habitantes. Ou então que é o olho do Deus redentor. E até talvez haja quem faça uma leitura maçónica da imagem cósmica, atribuindo-lhe uma simbologia secreta inscrita nos confins do Universo e pairando desde o início do tempo.

Algo parece estar a falhar na Escola, principalmente nos países que estão no topo da civilização, como é o caso da França. Como sempre, convém reflectirmos com profundidade, fazendo bom uso da Razão.

João Maria de Freitas-Branco
Caxias, 11 de Abril de 2019

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Buraco negro


 

Mais um acontecimento histórico. Novo grande triunfo da Ciência. Um acontecimento merecedor da nossa melhor atenção: a primeira observação directa de um buraco negro.

Até o dia de hoje, sempre que alguém (mesmo que fosse um astrofísico) falava de buraco negro estava a referir-se a algo que nunca tinha visto. Só hoje, dia 10 de Abril de 2019, é que os seres humanos tiveram acesso a uma primeira imagem real de um buraco negro – imagem paradoxal, considerando que por definição um buraco negro não se pode observar (e até nem é um buraco…).

Acima de tudo, quero aqui saudar este grande acontecimento, expressando o meu completo entusiasmo.

Acontece, porém, que ao longo das últimas horas tenho verificado estarem a ser veiculadas, pela nossa comunicação social, informações erradas sobre este primeiro buraco negro directamente observado pelos humanos. O que me deixou mais alarmado e perplexo foi a intervenção de um especialista, Rui Agostinho, num dos noticiários da RTP3. Receando que essa informação errada volte a ser inserida no espaço informativo, nomeadamente no jornal nacional das 20h, tomo a iniciativa de recomendar que utilizem as melhores fontes, ou seja, as de natureza puramente científica e em que intervêm os cientistas responsáveis pela captação da histórica imagem. Sugiro as seguintes: 1) a edição especial do Astrophysical Journal Letters; 2) uma das seis conferências de imprensa realizadas simultaneamente em vários pontos do globo (registo integral online, CBC News).

Adianto já uma correcção: o buraco negro observado situa-se no “coração”, no núcleo da galáxia M87 e não no centro da nossa galáxia. A comparação feita (na RTP3) com a massa ou com a força gravitacional do Sol também está completamente errada.

A Teoria da Relatividade Geral volta a ser comprovada experimentalmente. O grande Albert volta a estar de parabéns.

Renovada homenagem pessoal a essa enorme figura da história do conhecimento humano.
João Maria de Freitas-Branco
10 de Abril de 2019
Publicado inicialmente no Facebook, às 18h:30

 

 

quinta-feira, 14 de março de 2019

Um exemplo de dedicação à Cultura (2ª edição)

Com o objectivo de melhorar o grafismo, volto a colocar aqui o meu texto sobre o  actor e encenador Armando Caldas, esse bom Amigo que ontem, dia 13 de Março de 2019, nos deixou.




Armando Caldas
Um exemplo de dedicação à Cultura

A mais recuada memória que guardo do Armando data de um tempo salazarento em que na nossa Pátria – achacada de neotomismo ajesuitado, de fascismo provinciano, de tacanhez preconceituosa, de embriaguezes românticas – se promoviam analfabetismos de vária feição, incluindo o artístico-cultural, com o consciente propósito ideológico de injectar dependências no cidadão comum que se desejava submisso, resignado, passivo em face do poderio e seus inconfessáveis interesses. Precisando a datação dessa primeira memoração, situo-a no final da década se sessenta ou no início dos anos setenta do já passado século “dos extremos”, como lhe chamou Hobsbawm, quando, no despontar da chamada Primavera marcelista, me chegou a notícia da criação, em Algés, do “1ºActo - Clube de Teatro”, essa influente iniciativa cultural, mas também ostensiva e valentemente política, que reuniu alguma da nossa melhor gente, parte do nosso escol, contando com a participação de alguns dos mais lúcidos espíritos que povoavam o Reino cadaveroso, incluindo um amigo comum que por esse então nem eu nem o Armando (nem mesmo ele próprio) sonhávamos ir tornar-se, décadas mais tarde, o primeiro Nobel da possante literatura lusíada, o nosso saudoso José Saramago.

A fundação do 1ºActo teve, nessa época, e num plano mais pessoal, directa influência na minha vida, por ter sido factor no moldar da minha acção cívica, incentivando-me a ter o atrevido gesto de, em 1972/73, e imbuído do mesmo espírito de resistência, criar um pequeno grupo de teatro amador, também ele sedeado no conselho de Oeiras: o Grupo de Teatro Intervenção, integrado na estrutura institucional do Grupo Académico – associação cultural de jovens estudantes fundada em 1970 e com forte implantação no meio estudantil dos concelhos de Oeiras, Cascais e Cintra (nessa altura servidos por uma única macro escola, o Liceu Nacional de Oeiras, hoje Escola Secundária Sebastião e Silva). É isto revelador de que só pelo facto de existir, o 1º Acto já era significativo factor de alteração da ambiência cultural, abrindo espaço para iniciativas congéneres. Concorreu assim, de forma indirecta, para que pudessem germinar outros projectos interventivos. Legado geralmente não considerado mas efectivo e, por isso mesmo, também merecedor de reconhecimento.

Trago à colação estes aconteceres por estarem eles intimamente ligados à origem da minha relação pessoal com o Armando Caldas. Ainda agora, sempre que falo deste Amigo, ou nele penso, algo nas profundezas subconscientes da minha psique amarra a pessoa à imagem mental daquela tão louvável obra cultural. Reflectindo sobre a perenidade dessa instintiva associação mental, concluo ser ela bem natural e até lógica. Como diria o poeta, «há sempre alguém que diz Não», e o nosso Armando Caldas tem sido, ao longo da vida, alguém que, inequívoca e incessantemente tem sabido dizer Não à anticultura, à indigência artística, à mentalidade reaccionária, bem como às variegadas formas de injustiça social que invariavelmente lhe estão associadas. Foi nas trincheiras desse combate que nos encontrámos, animados por ideais comuns, tendo-se construído aí uma amizade que perdura.

A circunstância concreta em que conheci pessoalmente o Armando, iniciando um trabalho de mútua colaboração, ocorreu em momento histórico maior: o do derrube da Ditadura e do despoletar do PREC. Deliciosos tempos de criatividade colectiva de uma Nação ávida de mudança. Ambos sabíamos que o combate que tínhamos abraçado, o da transformação da sociedade humana, associado à semeadura de Cultura e Arte, era labor infindável – tal como o semear agrícola, essa infinita acção cíclica do cultivo da terra. Com o “25 de Abril” o corpo societal metamorfoseara-se profundamente, as condições passaram a ser outras, mas como Ingmar Bergman nos disse em estética linguagem cinematográfica o ovo da serpente é perene e o combate tem que ser continuado. Em certa medida, a sociedade democratizada pelos ventos de Abril até convocava renovado afã, impunha a abertura de novas trincheiras, gerando, nessa medida, maior responsabilidade cívica. É nessa singular conjuntura histórica que, na minha qualidade de jovem presidente de uma associação cultural, o já citado Grupo Académico (em que tive a minha primeira experiência dirigente), tomei a iniciativa de organizar, no salão/teatro do Instituto Pr.António de Oliveira (em Caxias), uma sessão de Canto Livre que reuniu numerosíssimo público e que contou com a participação de vários artistas do chamado “canto de intervenção” antes amordaçado pela censura. Esse tipo de realização, tão típico dessa época revolucionária, exigia a presença de competente apresentador, elemento condicionante de toda a dinâmica do espectáculo e, consequentemente, do seu desejável sucesso. Foi para mim fácil decidir endereçar ao Armando Caldas o convite para assumir essa importante função. Quem melhor do que ele para o fazer? E foi assim que verdadeiramente nos conhecemos, em momento de activo combate pela liberdade, pelo livre cultivo do gosto artístico e, em geral, em prole da transformação progressista da realidade social.

Há, na acção cultural de Armando Caldas, algo a que atribuo especial importância e que, por essa razão, não posso nem quero deixar de aqui enfatizar. Refiro-me à coerência de uma atitude pautada pelo espírito de independência e pela fidelidade a uma Weltanschauung; atitude sustentadora de uma acção cívico-cultural em que nunca houve cedências à avassaladora moda da cultura light, ou àquilo a que também tenho chamado a cultura zapping, com o seu horror ao aprofundamento, ao racional, ao rigor, à seriedade intelectual. Tendência corrosiva da autêntica Cultura. Elemento, a meu ver, impeditivo da edificação de uma verdadeira tradição de Alta Cultura, suporte indispensável do progresso civilizacional. Neste tempo presente em que se tem visto triunfar a mentalidade do light, em que no viver societal o apelo ao superficial, ao ligeiro, ao soft, ao comercial, ao popularucho se tornou constante e até mesmo exuberante, o Intervalo Grupo de Teatro, sob a lúcida direcção do Armando Caldas, tem sido vivo exemplo de não-abdicação intelectual, de recusa de cedência ideológica a uma medíocre corrente dominante, mostrando, do mesmo passo, como o sucesso popular é natural efeito da boa vulgarização das grandes criações artísticas. A dignidade de produções, a que tive o prazer de assistir, como as de A Gaivota de Tchekhov, de D. Quixote, de O Tinteiro de Carlos Muñiz, bem como a regular presença em cartaz de peças com a assinatura dos maiores dramaturgos (Shakespeare, Molière, Beaumarchais, Tchekhov) são a demonstração clara da possibilidade de coabitação do sucesso popular com a erudição e de como se deve criar o bom gosto artístico. Um exemplo que adquire ainda maior relevância em momento histórico particularmente grave, como é este nosso agora, em que valores civilizacionais basilares se vêem ameaçados, incluindo o da elevação cultural, e em que ressurge uma agressiva política governativa anticultura. Bastaria o perfil dessa atitude/acção que agora procurei pôr em evidência para atestar da justeza da homenagem consubstanciada neste volume. Parabéns Armando, e obrigado.

João Maria de Freitas-Branco

Caxias, 4 de Novembro de 2012

Um exemplo de dedicação à Cultura


Perdi mais um Amigo: o actor e encenador Armando Caldas. Faleceu hoje, dia 13 de Março. Recebi a triste notícia já ao fim do dia. Em sua memória, tomo a iniciativa de colocar aqui um texto que sobre ele escrevi em 2012 e que foi publicado no livro "Teatro, como quem respira", editado em 2013.

 

TEXTO

 
Armando Caldas

Um exemplo de dedicação à Cultura

 

A mais recuada memória que guardo do Armando data de um tempo salazarento em que na nossa Pátria – achacada de neotomismo ajesuitado, de fascismo provinciano, de tacanhez preconceituosa, de embriaguezes românticas – se promoviam analfabetismos de vária feição, incluindo o artístico-cultural, com o consciente propósito ideológico de injectar dependências no cidadão comum que se desejava submisso, resignado, passivo em face do poderio e seus inconfessáveis interesses. Precisando a datação dessa primeira memoração, situo-a no final da década se sessenta ou no início dos anos setenta do já passado século “dos extremos”, como lhe chamou Hobsbawm, quando, no despontar da chamada Primavera marcelista, me chegou a notícia da criação, em Algés, do “1ºActo - Clube de Teatro”, essa influente iniciativa cultural, mas também ostensiva e valentemente política, que reuniu alguma da nossa melhor gente, parte do nosso escol, contando com a participação de alguns dos mais lúcidos espíritos que povoavam o Reino cadaveroso, incluindo um amigo comum que por esse então nem eu nem o Armando (nem mesmo ele próprio) sonhávamos ir tornar-se, décadas mais tarde, o primeiro Nobel da possante literatura lusíada, o nosso saudoso José Saramago.
A fundação do 1ºActo teve, nessa época, e num plano mais pessoal, directa influência na minha vida, por ter sido factor no moldar da minha acção cívica, incentivando-me a ter o atrevido gesto de, em 1972/73, e imbuído do mesmo espírito de resistência, criar um pequeno grupo de teatro amador, também ele sedeado no conselho de Oeiras: o Grupo de Teatro Intervenção, integrado na estrutura institucional do Grupo Académico – associação cultural de jovens estudantes fundada em 1970 e com forte implantação no meio estudantil dos concelhos de Oeiras, Cascais e Cintra (nessa altura servidos por uma única macro escola, o Liceu Nacional de Oeiras, hoje Escola Secundária Sebastião e Silva). É isto revelador de que só pelo facto de existir, o 1º Acto já era significativo factor de alteração da ambiência cultural, abrindo espaço para iniciativas congéneres. Concorreu assim, de forma indirecta, para que pudessem germinar outros projectos interventivos. Legado geralmente não considerado mas efectivo e, por isso mesmo, também merecedor de reconhecimento.
Trago à colação estes aconteceres por estarem eles intimamente ligados à origem da minha relação pessoal com o Armando Caldas. Ainda agora, sempre que falo deste Amigo, ou nele penso, algo nas profundezas subconscientes da minha psique amarra a pessoa à imagem mental daquela tão louvável obra cultural. Reflectindo sobre a perenidade dessa instintiva associação mental, concluo ser ela bem natural e até lógica. Como diria o poeta, «há sempre alguém que diz Não», e o nosso Armando Caldas tem sido, ao longo da vida, alguém que, inequívoca e incessantemente tem sabido dizer Não à anticultura, à indigência artística, à mentalidade reaccionária, bem como às variegadas formas de injustiça social que invariavelmente lhe estão associadas. Foi nas trincheiras desse combate que nos encontrámos, animados por ideais comuns, tendo-se construído aí uma amizade que perdura.
A circunstância concreta em que conheci pessoalmente o Armando, iniciando um trabalho de mútua colaboração, ocorreu em momento histórico maior: o do derrube da Ditadura e do despoletar do PREC. Deliciosos tempos de criatividade colectiva de uma Nação ávida de mudança. Ambos sabíamos que o combate que tínhamos abraçado, o da transformação da sociedade humana, associado à semeadura de Cultura e Arte, era labor infindável – tal como o semear agrícola, essa infinita acção cíclica do cultivo da terra. Com o “25 de Abril” o corpo societal metamorfoseara-se profundamente, as condições passaram a ser outras, mas como Ingmar Bergman nos disse em estética linguagem cinematográfica o ovo da serpente é perene e o combate tem que ser continuado. Em certa medida, a sociedade democratizada pelos ventos de Abril até convocava renovado afã, impunha a abertura de novas trincheiras, gerando, nessa medida, maior responsabilidade cívica. É nessa singular conjuntura histórica que, na minha qualidade de jovem presidente de uma associação cultural, o já citado Grupo Académico (em que tive a minha primeira experiência dirigente), tomei a iniciativa de organizar, no salão/teatro do Instituto Pr.António de Oliveira (em Caxias), uma sessão de Canto Livre que reuniu numerosíssimo público e que contou com a participação de vários artistas do chamado “canto de intervenção” antes amordaçado pela censura. Esse tipo de realização, tão típico dessa época revolucionária, exigia a presença de competente apresentador, elemento condicionante de toda a dinâmica do espectáculo e, consequentemente, do seu desejável sucesso. Foi para mim fácil decidir endereçar ao Armando Caldas o convite para assumir essa importante função. Quem melhor do que ele para o fazer? E foi assim que verdadeiramente nos conhecemos, em momento de activo combate pela liberdade, pelo livre cultivo do gosto artístico e, em geral, em prole da transformação progressista da realidade social.
Há, na acção cultural de Armando Caldas, algo a que atribuo especial importância e que, por essa razão, não posso nem quero deixar de aqui enfatizar. Refiro-me à coerência de uma atitude pautada pelo espírito de independência e pela fidelidade a uma Weltanschauung; atitude sustentadora de uma acção cívico-cultural em que nunca houve cedências à avassaladora moda da cultura light, ou àquilo a que também tenho chamado a cultura zapping, com o seu horror ao aprofundamento, ao racional, ao rigor, à seriedade intelectual. Tendência corrosiva da autêntica Cultura. Elemento, a meu ver, impeditivo da edificação de uma verdadeira tradição de Alta Cultura, suporte indispensável do progresso civilizacional. Neste tempo presente em que se tem visto triunfar a mentalidade do light, em que no viver societal o apelo ao superficial, ao ligeiro, ao soft, ao comercial, ao popularucho se tornou constante e até mesmo exuberante, o Intervalo Grupo de Teatro, sob a lúcida direcção do Armando Caldas, tem sido vivo exemplo de não-abdicação intelectual, de recusa de cedência ideológica a uma medíocre corrente dominante, mostrando, do mesmo passo, como o sucesso popular é natural efeito da boa vulgarização das grandes criações artísticas. A dignidade de produções, a que tive o prazer de assistir, como as de A Gaivota de Tchekhov, de D. Quixote, de O Tinteiro de Carlos Muñiz, bem como a regular presença em cartaz de peças com a assinatura dos maiores dramaturgos (Shakespeare, Molière, Beaumarchais, Tchekhov) são a demonstração clara da possibilidade de coabitação do sucesso popular com a erudição e de como se deve criar o bom gosto artístico. Um exemplo que adquire ainda maior relevância em momento histórico particularmente grave, como é este nosso agora, em que valores civilizacionais basilares se vêm ameaçados, incluindo o da elevação cultural, e em que ressurge uma agressiva política governativa anticultura. Bastaria o perfil dessa atitude/acção que agora procurei pôr em evidência para atestar da justeza da homenagem consubstanciada neste volume. Parabéns Armando, e obrigado.


João Maria de Freitas Branco

Caxias, 4 de Novembro de 2012

 

domingo, 27 de janeiro de 2019

O CASO DO DIVÓRCIO


Partilho aqui no blog um lúcido texto do Frederico Lourenço colocado hoje no Facebook. Trata-se de uma muito esclarecedora reflexão pessoal. Bem demonstrativa da insustentabilidade do discurso oficial da Igreja, ou seja, do dogmatismo católico institucionalizado. É esta, também, uma forma de agradecer ao amigo Frederico o seu esforço de dilucidação.

PALAVRAS «DITAS» POR JESUS: O CASO DO DIVÓRCIO (Evangelho de Marcos)

Muitas pessoas me escreveram a propósito do texto que publiquei sobre a questão de quem comunga na missa «por sua conta e risco», ou seja, sem estar, do ponto de vista da Igreja Católica, em condições legítimas para comungar. Como o caso de que falei envolvia um divorciado muito especial para mim (o meu pai) e a minha própria situação de homossexual casado com um homem, o teor de muitas mensagens andou à volta da ideia de que «Jesus nunca disse que a confissão era obrigatória» ou, até, «Jesus nunca disse que os divorciados não podiam comungar».

Esta vontade que muitas pessoas têm de sustentar a sua própria atitude em relação ao catolicismo (ou outra forma de cristianismo) com base naquilo que Jesus «disse» é algo com que me solidarizo, porque pessoalmente o que me chama e interessa no cristianismo não é o artifício teológico-dogmático da ortodoxia eclesiástica, mas sim algo que se resume muito simplesmente a uma só palavra: Jesus. Também sou alguém que, como afirmou um católico que me escreveu há dias, dá mais valor ao que «Jesus disse» do que àquilo que «a igreja diz».

Agora: como saber o que Jesus disse? Um problema complexo que confronta quem prefere seguir Jesus a seguir a igreja é, de facto, conseguir chegar àquilo que Jesus terá realmente dito. Trata-se de uma problemática fascinante no âmbito do estudo histórico-analítico do Novo Testamento – e digo «histórico-analítico» pela razão simples de que, do ponto de vista da Fé, todas as palavras colocadas pelos evangelistas na boca de Jesus são, sem mais problemas, palavras de Jesus.

No entanto, do ponto de vista histórico-analítico, a situação não é assim tão simples. Para dar uma ideia daquilo em que consiste esta problemática, vou partilhar convosco algumas reflexões (esta é a primeira) sobre as palavras ditas por Jesus acerca do divórcio nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. E refiro estes três evangelhos porque, no Evangelho de João, Jesus não profere uma única palavra acerca do divórcio. É um tema ausente desse mais espiritual dos quatro evangelhos. Se na Bíblia existisse apenas o Evangelho de João, não havia motivo para os cristãos não se divorciarem. (Bom, haveria a considerar o que escreve Paulo em 1 Coríntios 7:12-16 - mas Paulo é necessariamente outra conversa...)

Nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas, Jesus fala, de facto, no divórcio – ou é provocado, por fariseus que o querem apanhar em falso, a falar sobre esse tema. As palavras que Jesus profere a propósito do divórcio são, no entanto, diferentes nos três evangelhos em que ele fala de divórcio. Além de diferentes, levantam o problema de, em parte, serem palavras que o Jesus real, o homem de Nazaré, não pode ter dito. São palavras que lhe foram postas na boca por cristãos que precisavam que ele as tivesse dito. Pois a probabilidade histórica de que ele as tivesse dito é incerta.

Comecemos pelo evangelho tido pelo estudo universitário do Novo Testamento como o mais antigo dos quatro: o Evangelho de Marcos. Estamos no capítulo 10:2-12. O episódio divide-se em dois momentos: primeiro, uns fariseus perguntam a Jesus, «pondo-o à prova», se é lícito ao homem divorciar-se da mulher. Jesus responde com uma pergunta: «o que vos preceituou Moisés?» E eles dão a resposta de que Moisés preceituou que o marido podia redigir um documento de repúdio e divorciar-se da mulher.

Portanto, aquilo em que consiste a armadilha dos fariseus é colocarem Jesus numa situação em que ele vai ser obrigado a ou tomar partido a favor de um preceito legitimado pelo judaísmo ou ir escandalosamente contra aquilo que o judaísmo permite e preceitua – um pouco à semelhança das armadilhas lançadas a Jesus em relação ao sábado (e podemos comparar, no apócrifo Evangelho de Tomé, a pergunta dos discípulos sobre a obrigatoriedade da circuncisão).

Em relação ao divórcio, a resposta de Jesus vai no sentido de contrariar o que o judaísmo permite. A razão da permissibilidade do divórcio na lei de Moisés – diz Jesus – é a «sklêrokardía» (σκληροκαρδία) do homem, isto é, o «coração esclerosado», o «coração duro» do homem. Ele está a referir-se ao marido que, na sua dureza de coração, se divorcia da mulher para casar com outra (o que está certamente aqui implícito é o problema de não haver filhos no casamento, por esterilidade; a questão do divórcio por adultério só é explícita no evangelho de Mateus), deixando a divorciada numa situação de desamparo e de vulnerabilidade. O que Jesus diz tem que ver com a sociedade judaica da sua época. E Jesus fala contra o divórcio aqui por compaixão para com o drama da mulher preterida.

Para sustentar o seu ponto de vista contra os fariseus, Jesus socorre-se da própria Escritura judaica e profere duas citações do livro de Génesis: «macho e fêmea os fez» (1:27) e «serão os dois uma só carne» (2:24).

Para o estudioso moderno da Bíblia, estas duas citações fazem parte de duas secções incompatíveis entre si do livro de Génesis: Génesis 1 e Génesis 2. A primeira citação de Jesus pressupõe que Deus criou homem e mulher de uma só vez: a raça humana começou logo com os dois géneros (é essa a visão de Génesis 1). Em Génesis 2, Deus cria primeiro Adão – e depois cria a mulher como «afterthought» secundário, a partir da costela de Adão. Homem e mulher não parecem ser a mesma entidade ontológica em Génesis 1 como são em Génesis 2.

Seja como for, a chave da declaração pública acerca do divórcio na passagem de Marcos é a frase bombástica de Jesus (tão bombástica como «o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado»): trata-se de «o que Deus uniu não separe o ser humano».

No segundo momento da discussão sobre o divórcio em Marcos, Jesus está em casa com os discípulos, que, decerto ainda zonzos depois da bomba que ouviram, o interrogam de novo sobre o assunto. Aos discípulos, Jesus diz o seguinte: «quem se divorciar da sua mulher e casar com outra, comete adultério em relação a ela; e se ela, tendo-se divorciado do marido, casar com outro, comete adultério» (Marcos 10:11-12).

O enfoque das palavras de Jesus é diferente na declaração pública e na declaração privada. Na primeira, ele condena somente o divórcio, deixando implícito o seu entendimento de que o divórcio constitui uma crueldade do marido em relação à mulher; na segunda, o enfoque da condenação de Jesus está no re-casamento, descrevendo-o como adultério.

Das duas declarações – a pública e a privada – a que tem mais probabilidade histórica de ter sido dita pelo Jesus real é a pública.

A declaração privada, tal como a lemos em Marcos, o evangelho mais antigo, contém palavras que Jesus não pode ter dito. A dúvida levanta-se sobretudo em relação à noção impensável na sociedade em que Jesus vivia de que uma mulher se pudesse divorciar do seu marido. Isso era permitido às mulheres em Roma, mas não à mulheres da sociedade judaica de Jesus. Não podem ser palavras ditas por Jesus: por conseguinte, mesmo no mais antigo dos evangelhos, estamos a ler palavras postas na boca dele que ele não disse. São palavras que eram necessárias a cristãos posteriores em Roma e noutros locais do império, mas não podem ser palavras ditas por Jesus.

Por outro lado, as palavras ditas em privado aos discípulos sobre o divórcio no Evangelho de Marcos têm pequenas e grandes oscilações nos muitos manuscritos que nos transmitem este evangelho. Nos manuscritos do século IV (Codex Sinaiticus, Codex Vaticanus e outros), as palavras de Jesus são as que apresentei acima: «quem se divorciar da sua mulher e casar com outra, comete adultério em relação a ela; e se ela, tendo-se divorciado do marido, casar com outro, comete adultério» (Marcos 10:11-12).

No entanto, existe um manuscrito do século V que nos dá a ler as palavras sob esta forma: «se uma mulher se divorciar do marido dela e casar com outro, comete adultério; e se um homem se divorciar da mulher, comete adultério».

As palavras de Jesus, tal como nos são transmitidas por este manuscrito do século V, destacam em primeiro lugar a mulher que se divorcia do marido e casa com outro (e põem o homem em segundo lugar, ao contrário dos manuscritos do século IV). Além do mais, as palavras registadas nesse manuscrito dizem-nos esta coisa extraordinária: o homem, pelo mero facto de se divorciar da mulher, já é por esse motivo um adúltero. Sinceramente, não me parece que era isso que o Jesus histórico quis dizer.

Resumindo: as palavras ditas por Jesus aos fariseus («o que Deus uniu não separe o ser humano») têm a marca do tipo de declaração bombástica e provocatória, marca essa que é o timbre de asserções de Jesus que poderão eventualmente ser autênticas. A razão da condenação do divórcio prende-se com a preocupação de Jesus em proteger o elo mais fraco no casamento tal como era entendido até ao século XX: a mulher. Quanto às palavras ditas por Jesus aos discípulos em Marcos 10:11-12, estão feridas de diferentes graus de improbabilidade. Além da oscilação textual nos manuscritos, não é plausível que Marcos 10:12 corresponda a algo que Jesus realmente tenha dito; são palavras que lhe foram postas na boca por Marcos.

Na imagem do evangelista Marcos que veem na fotografia (tirada pelo meu marido André na Basílica de São Pedro), vemos o evangelista segurando uma pena que, segundo se diz, mede mais de 2 metros! É uma pena bem alta – talvez necessária a quem, em várias passagens do seu texto, escreveu aquilo a que se pode chamar em inglês «a tall story».

Frederico Loureço, Facebook, 27 de Janeiro de 2019