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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

MIRÓ - a cotação de que não se fala


Que os afectados de iliteracia artística, como os actuais habitantes dos salões e corredores do poder, desconheçam, em absoluto, a importância da proximidade de uma tela de Miró no enriquecer da interioridade do ser humano, bem como no engrandecimento da sua humana existência é coisa que em nada surpreende. É naturalíssimo que tais iletrados patetas reduzam Joan Miró a quantidades de vil metal. Espanto haveria se víssemos nesses sujeitos atitude inversa, mais despida de prioridades financeiras e mais vestida de prioridades culturais. Assim, é uma simples normalidade, consentânea com a indigência cultural de quem protagoniza a atitude, não me despertando incómoda estranheza. Revoltante, inquietante e até insuportável é ver a vara do mando na mão de tal gente.

Mas não é isso que hoje aqui me traz a propósito do recente caso Miró.

Quero sim manifestar o meu desgosto não face ao espectável, senão que face ao por mim não esperado. Ou seja, as inesperadas e nada naturais atitudes/opiniões assumidas por comentadores cultivados, por sérios jornalistas intelectuais. Ver esses enveredar também pelo mero raciocínio mercantilista, deixando ignorada a imensa relevância imaterial dos objectos artísticos em debate é coisa, confesso, que me molesta. Então também vocês só se preocupam com a tradução dos Mirós em milhões, em quantidade de vil metal? Como pode ser? Onde está então a resistência culta, intelectualmente elevada, capaz de fazer frente à bestial iliteracia que comecei por evocar? Onde está, entre os comentadores de serviço, a voz opositora da baixeza intelectual e da indigência cultural que, em adiposas lufadas, brota do discurso dos actuais governantes indecentes e de seus indescritíveis acólitos? Não oiço comentadores a pôr o acento no essencial, a evidenciar o que me parece ser o mais importante: o valor imaterial da badalada colecção Miró caída no regaço do Estado português.

É provável que os comentadores no activo gozem ainda do privilégio de poderem viajar, de poderem ir ver os originais dos grandes criadores de pintura a Paris, Londres, Nova Iorque ou à Barcelona de Miró. Óptimo! Mas, e os outros? Que acontece à maioria esmagadora que não pode dar-se a esse luxo? Será indiferente para a construção da interioridade do sujeito humano ter ou não ter estado na presença de quadros com assinaturas autorais do calibre da de Miró? É que os quadros têm uma sumptuosa cotação imaterial no impreciso mercado dos bens interiores, das etéreas riquezas da complexa profundidade do eu, onde se decide o ser ou não ser pessoa e a grandeza desta.

Não, não é nada indiferente. Nem é questão menor no plano sócio-cultural e político. Para mais se pensarmos nos jovens que frequentam as nossas escolas, estudando a história da pintura, ou da arte, em geral, sem pôr olho em original, limitando-se a ver as reproduções que o manual escolar oferece. Ter a possibilidade de fruir os originais não é questão educativa merecedora de atitude despiciente.

Se há coisa verdadeiramente importante é termos em funcionamento uma sociedade provida de meios – escolas, desde logo – que concorram para fazer emergir, em boa quantidade, aquilo a que o lúcido Montaigne chamava «une tête bien faite».

Para que a vara do mando possa ser colocada nas mãos de pessoas decentes, superando o actual despautério governativo (questão política decisiva), é prévia condição existirem cabeças “bien faites”, bem esculpidas, na acepção do notabilizado ensaísta-filósofo francês.

A presença activa da grande arte e, no geral, da Alta Cultura, sob a forma de pintura, escultura, música, literatura, arquitectura, etc., é coisa inalienável, porque favorece o esforço ciclópico da semeadura de «une tête bien faite».

 

João Maria de Freitas-Branco
Artigo de opinião - jorna PÚBLICO

 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Acordai, cidadãos!


O profundo desprezo pela Cultura tem sido uma das muitas, mas também uma das mais nítidas características da indigna política anti-civilizacional do actual Governo. Um desdém coerente com a concertada acção protagonizada por uma gentalha indecente que ilegitimamente continua a (des)governar o nossa atormentada pátria.
O caso da colecção Miró é apenas o último exemplo desse escândalo diário, desse contínuo fluir de indecência, de imoralidade, de baixeza, de incompetência em que se transformou a actividade governativa no nosso país. Ouviram as declarações do Secretário de Estado da Cultura depois da acusação de ilegalidade proferida pela Direcção-Geral do Património? Absolutamente confrangedor. Em vez de evidenciar empenhamento na defesa do património cultural e, neste caso concreto, manifestar clara vontade de manter no país uma valiosa colecção de quadros de um dos maiores pintores do século XX, o primeiro responsável governamental pela cultura assume atitude contra a cultura, exteriorizando total insensibilidade relativamente ao interesse e às potencialidades inerentes à posse de tão precioso conjunto de obras de arte. Este sujeito, colocando-se numa posição de indecorosa subserviência politico-partidária, de obediência ao chefe e à patroa das finanças, nem sequer se atreve a mostrar perceber o que percebe, ou seja, a fonte de riqueza que é esta colecção. Desrespeitando-se a si próprio – digo-o porque o conheço --finge desconhecer que a Arte e a Cultura não só geram riqueza imaterial como também material, podendo fazer entrar muito dinheiro nos cofres, bem mais do que o numerário obtido através de apressado leilão ferido de ilegalidades. Isto é insuportável. Como se pode admitir tal despautério? Vamos continuar a admitir este desgoverno que dia após dia ofende a dignidade nacional?

Felicito a deputada Gabriela Canavilhas e os seus colegas de bancada pela forma decidida como vieram a terreiro defender a Cultura. Essa intervenção foi determinante na travagem da venda.  

O meu amigo BB (leia-se Baptista Bastos) reuniu em volume acabado de publicar algumas das suas crónicas jornalísticas. Fértil semeadura de lucidezes sobre o nosso quotidiano, estribada em escorreita prosa. Leitura que, por isso mesmo, pelo brilho da ideia e pela qualidade da forma literária (já rara na nossa imprensa), aqui vivamente recomendo. Aí, nesse volume acabadinho de chegar aos escaparates, se pode ler o que aqui cito e entusiasticamente subscrevo na íntegra, esperançoso de abrir apetites de leitura e de animar vontades de acção transformadora:

«Não podemos, nem devemos admitir que esta gentalha destrua o que ainda deixou restar da decência, da honra e da dignidade da nação e da pátria.

Acordai, cidadãos!»  

 

João Maria de Freitas-Branco

Caxias, 4 de Fevereiro de 2014

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