Vargas Llosa convidado para discursar em Oeiras
Intervenção numa polémica do Facebook
No final do passado mês de Outubro apareceu num órgão de
comunicação social a notícia de que Mario Vargas Llosa tinha sido convidado
pela Câmara Municipal de Oeiras para participar na Bienal Internacional de
Poesia de Oeiras. O tema da comunicação é “Poder e Democracia” e «o evento insere-se na candidatura da cidade [sic] a Capital
Europeia da Cultura 2027», informa o jornal. Esta notícia foi partilhada nas redes sociais, suscitando polémica. Veja-se a página de Maria Isabel Santos Isidoro no
Facebook (publicação do dia 30 de Outubro). Transponho agora para este blog os textos com que intervim nessa
polémica.
A Maria Isabel trouxe para aqui [Facebook] um tema interessante,
activando a minha vontade de também sobre ele opinar.
As obras de arte, principalmente quando são obras maiores,
adquirem vida própria, afastando-se da margem do espaço biográfico dos seus
criadores. O facto de Michelangelo Merisi da Caravaggio ter assassinado uma
pessoa não belisca a sua obra artística, em nada adelgaça a grandeza de “Os
Batoteiros” ou de “Judite e Holofernes”, malgré le thème… Não seria
culturalmente aceitável proibir a exposição pública deste quadro com a
justificação de ser assassinato pintado por assassino, espécie de elogio
pictórico do assassinamento. Receio, todavia, que por aí circulem sujeitos disponíveis
para considerar que o óleo de Caravaggio é um despudorado incentivo à violência
e por isso merecedor de censura. E se o artista-assassino Michelangelo Merisi
da Caravaggio viesse à nossa terra para dizer publicamente o que pensa sobre
este mundo? Devíamos ir ouvi-lo ou devíamos ficar em casa? Que seria mais
enriquecedor para nós? Ir escutá-lo e conhecê-lo, ou não ir? Se decidíssemos
ir, estaríamos coagidos a aplaudir? Não podíamos manifestar discordância ou até
apupá-lo em função do que dissesse ou não dissesse?
Para meu sincero desgosto, o Autor de “La cuidad y los
perros” e de “Conversación en la catedral” tornou-se confesso admirador do
neoliberalismo, do capitalismo neoliberal a que já alguns, como Noam Chomsky,
Marv Waterstone e Henry Giroux, chamaram capitalismo mafioso (denominação que
aprovo). A minha já longa vida pública (como autor, intelectual, activista
político, etc.) talvez me dispense de declarar quão profunda é a discordância
política que tenho com o agora cidadão espanhol Mario Vargas Llosa que
contradiz o primeiro Mario Vargas Llosa, esse que, até perto dos anos 1970, se
confessava socialista e admirador da Revolução cubana. (A Maria Isabel Santos Isidoro
e o Rui Capão já aqui referiram de forma clara a vergonhosa simpatia de Llosa
pela sórdida política económica da ditadura de Pinochet, no Chile; está dito o
essencial, pelo que nada acrescento neste contexto.)
No entanto, lendo com gosto e proveito o seu último romance,
“Tempos duros” (ed. portuguesa da Quetzal), fico com a sensação de não estar
ideologicamente apartado do Escritor, ou, talvez melhor, do conteúdo político
da sua escrita ficcional. Não é pouco; talvez isso já justifique uma ida, mesmo
que ela implique manifestar discordância, mesmo que ela exija vaia. Podemos
conversar, discutir, polemicar com quem discordamos, mesmo que muito. Quanto
menos idiota for esse outro, de quem politicamente discordamos, mais esse
diálogo se justifica, podendo ser desejável, útil ou até mesmo necessário (no
processo do confronto de ideias, bem como no da clarificação das ideias).
A vida ensinou-me quanto é valiosa a proximidade de seres
humanos invulgares. Quem foi capaz de escrever romances como “La cuidad y los
perros”, “Conversación en la catedral” e o recente “Tiempos recios” não é um
sujeito vulgar; não me parece dever ser desmerecedor da nossa atenção. É apenas
um dos maiores escritores vivos.
Como talvez alguns saibam, sou membro do Conselho Geral de
Oeiras 27. No entanto, nessa minha qualidade, não me foi dado conhecimento da
intenção de convidar Mario Vargas Llosa, nem sequer recebi comunicação formal
relativa ao convite endereçado ao Escritor. Não tenho, por isso, qualquer
responsabilidade no convite que foi feito no âmbito da candidatura oeirense a
Capital Europeia da Cultura (Oeiras27). Não foi pedido conselho ao Conselho
Geral. Strange, isn’t it?
João Maria de Freitas Branco
Facebook, 31 de Outubro de 2021
NOTA: Um outro texto relacionado com o tema, sobre o uso da palavra "talvez", será inserido isoladamente, em nova publicação.