Pesquisar neste blogue

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Eutanásia - em dia de votação


Nos cartazes erguidos na manifestação de hoje à tarde em frente da Assembleia da República, onde agora decorre o debate sobre os projectos de despenalização da eutanásia, podiam-se ler frases como: «não matem os velhinhos», «quem somos nós para matar?», «não à cultura de morte», «fé na vida», «quero cuidados paliativos», «eu sou pela vida». Estas frases são magnífico exemplo daquilo a que costumo chamar discurso da confusão (ou seja, um discurso que contribui para aumentar o estado de confusão, para ampliar o ruído) e, por isso mesmo, são também afirmações bem demonstrativas dos motivos que desaconselham a realização de um referendo sobre a eutanásia. Em grande parte, as recentes intervenções públicas contra a despenalização da eutanásia concorreram, voluntaria ou involuntariamente, para semear a confusão. Nenhum dos opositores à despenalização da eutanásia conseguiu responder ao problema existencial da “cabeça sem corpo” trazido ao debate internacional sobre a eutanásia e o suicídio assistido pelo tetraplégico espanhol Ramón Sampedro. Espero que em Portugal, muito em breve, os Ramóns passem a ter plena liberdade para poderem decidir pôr termo ao seu sofrimento.
João Maria de Freitas Branco
Caxias, 20 de Fevereiro de 2020

 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Sobre a despenalização da eutanásia



 

Como se pode adivinhar, muito há para filosofar sobre a eutanásia. Mas agora quero apenas dizer três coisas sobre a despenalização da eutanásia:

A eutanásia é praticada há muito tempo nos hospitais, bem como em outras instituições que acolhem pessoas em situação de sofrimento agudo associado a estados de doença terminal. Tem sido uma eutanásia escondida, realizada na penumbra, sem regras, sem controlo. O passo que se pretende dar com a nova iniciativa legislativa confere transparência e rigor a todo o processo. Nesse sentido, concorrerá para reduzir a possibilidade de prevaricação ou crime.

A eutanásia confere uma liberdade essencial: a de eu poder decidir sobre a minha morte, momento crucial da vida. Quem por razões filosóficas, religiosas ou outras não se considera senhor do seu corpo e entende não dever ser submetido a eutanásia, não vê a sua liberdade violentada pela legislação despenalizadora, porque ela não obriga ninguém a praticar a eutanásia; ela apenas despenaliza quem livremente escolhe para si essa forma de morrer. E assim sendo, nenhum ser humano que seja contra a eutanásia será lesado. A lei da despenalização confere liberdade, não retira liberdade.  

É ética, moral e intelectualmente inaceitável que alguém – pessoa singular ou colectiva -- em nome de uma qualquer crença, ideologia, convicção ou concepção do mundo tenha a pretensão de querer decidir sobre a morte de um outro ser humano, seja qual for a relação mantida com esse outro. Nisso se fundamenta o rejeitamento da pena de morte.

Em certo sentido, a morte pode ser considerada o momento mais importante da vida; é um momento que mesmo quando não vivido conscientemente condiciona toda a nossa vida. Dignificar a morte é dignificar a vida, e a despenalização da eutanásia serve essa dignificação em nome da Liberdade.
João Maria de Freitas Branco
14 de Fevereiro de 2020

 

A eutanásia e a estranha declaração


 

Olhei para o ecrã da televisão na altura em que era dada uma notícia sobre a legalização da Eutanásia e pareceu-me haver incongruência entre som e imagem. “Não matem”, ouvia-se, e logo supus ser afirmação de algum bolorento bispo católico exercitando o seu conservadorismo; mas na imagem via-se a figura do líder do PCP, Jerónimo de Sousa. Como podia tão grande despautério reaccionário vir da boca do líder de um partido que continuamente se diz progressista? Outra voz, a do pivot, logo esclareceu: no próximo dia 20, na Assembleia da República, o PCP vai votar contra os cinco projectos de lei apresentados tendo em vista a despenalização da eutanásia – inclusivamente contra o projecto do seu parceiro de coligação, o PEV. É verdade que o PCP já tinha votado conservadoramente contra a despenalização da eutanásia em 2018, mas esperava-se que, dizendo-se progressista, tivesse progredido. Sendo assim, ou fica isolado ou vota ao lado do CDS e do Chega. Quanto à proposta de realização de um referendo para referendar o “inreferendável “ – porque «a vida não se referenda» como disseram vários dos partidos com representação parlamentar (BE, PEV, PS, PAN, IL) --, o PCP conserva um ensurdecedor silêncio.

A morte é um dos mais importantes momentos da vida. Por isso, dignificar a morte é dignificar a vida!
João Maria de Freitas Branco
14 de Fevereiro de 2020
 

 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

A filosofia de uma vida escondida


 
Se existe no cinema um género filosófico, o último filme do realizador americano Terrence Malick, A hidden life (Uma vida escondida), terá lugar assegurado como película bem representativa desse tipo de cinematografia. No entanto, esse perfil filosófico do filme é herdado. A dimensão filosófica antecede a filmagem. Ela já lá está, prêt-à-porter e com toda a sua pujança, na história real em que a obra de Malick se inspira de fio a pavio: a da vida concreta de um homem vulgar (no sentido literal, de ser do vulgo), anónimo camponês austríaco nascido em 1907. O seu nome é Franz Jägerstätter. Até bem perto da sua morte prematura, aos 36 anos, a vida desse homem era mais um exemplo, entre biliões de outros, daquilo a que George Eliot chamou “vida escondida” numa passagem do seu romance Middlemarch: a study of provincial life (1871), trecho citado por Terrence Malick nos fotogramas que encerram o filme. Uma coda que, no fundo, nos remete para o início, uma vez que as primeiras imagens que nos são dadas a ver já albergam, em forma não-verbal, o essencial do conteúdo da asserção de Eliot, depositando no regaço da nossa inteligência elementos propiciadores de um reflectir sobre a importância das vidas escondidas, e fielmente cumpridas, desses «que repousam em túmulos que já ninguém visita». É a primeira questão filosófica introduzida pelo filme. Todos os seres humanos que levam uma vida razoável, liberta de males maiores, devem estar profundamente agradecidos aos sujeitos que protagonizaram e protagonizam as vidas escondidas.

Esta primeira mensagem, dada sob a forma imagética, envia-nos de imediato para o que se afigura ser o objectivo central do cineasta: fazer o elogio da autenticidade. A autenticidade da relação com a paisagem – generosamente oferecida ao espectador pela câmara através de demorados planos, de enquadramentos rigorosamente desenhados e de imagens magníficas; a autenticidade da ligação à terra que é trabalhada, cultivada, tratada, acariciada, entranhando-se no próprio corpo do cuidador; a energia que emana da paisagem, a força da montanha; o intenso convívio com as entidades biológicas presentes nesse espaço – ervas, arbustos, árvores, animais, seres humanos; a veracidade das relações familiares; a autenticidade da relação com o outro no espaço sociocultural, no quadro dos hábitos cimentados, dos costumes, das tradições, das crenças, dos preconceitos, das ilusões e das desilusões, das convicções, dos sonhos, das utopias.

Em conformidade com o objectivo traçado, o cineasta filma com robusta competência os elementos (água, ar, terra, fogo), a acção prática do homem, bem como as sonoridades e os não menos preciosos silêncios que estão associados a ambos (aos elementos e à acção humana), dando consistência aos significados de uma ambiência global (natural e cultural). A fidelidade à realidade que inspira o gesto artístico é notável em quase todas as opções do realizador. Há uma, porém, que traí. Traí a autenticidade nuclear. Incompreensivelmente. Erro grave que subjaz ao que talvez seja o principal defeito da obra: a escolha da língua; o trazer o inglês americano, elemento alienígena, para dentro dessa ambiência rural austríaca. A autenticidade é violentada por essa opção.

Mas não pretendo deter-me no objecto cinematográfico, ou seja, na análise crítica de um filme. Não é essa a finalidade deste escrito. Interessa-me, neste momento, o conteúdo filosófico que a obra de cinema oferece ao receptor. Um conteúdo que é trazido de dentro de um personagem real para se projectar na tela. Sim, porque esse Franz que habitou o Planeta num breve período histórico marcado por duas guerras mundiais, dois momentos maiores de niilismo, entre 1907 e 1943, era ele próprio portador de um essencial conteúdo filosófico, elemento imaterial: o problema da consciência moral e de como ela condiciona o agir. As circunstâncias motivaram que um ser humano vulgar se tivesse tornado sujeito invulgar. Na Áustria nazificada, resultante do Anschluss (12 de Março de 1938), um simples agricultor sem ligações políticas recusa-se a colaborar com os alemães e a respeitar a ordem de recrutamento que impunha que se alistasse na Wehrmacht para participar na guerra contra os Aliados. Essa atitude põe em causa a sua própria vida. Ninguém compreende a sua escolha desrespeitadora da lei, da ordem estabelecida e aceite pela generalidade do povo austríaco. Franz é ostracizado pelos seus. Vizinhos, conterrâneos, amigos, todos condenam a sua atitude de desobediência. Sendo homem de profunda fé cristã que exerce a função de sacristão na igreja local, Franz procura conforto junto das autoridades religiosas que também o abandonam por estarem cumplicemente flectidas perante o novo poder. Julgado e condenado à morte pelos nazis, no Reichskriegsgericht (tribunal de guerra do Reich) de Berlim-Charlottenburg, no dia 6 de Julho de 1943, Franz Jägerstätter é executado na guilhotina no dia 9 de Agosto de 1943, na prisão de Brandenburg-Görden, por ter decidido, em função de uma profunda tomada de consciência, não aceitar a barbárie institucionalizada e não servir o Mal.

Franz Jägerstätter é geralmente apresentado como um objector de consciência, o que embora não sendo completa inverdade é, no entanto, uma declaração enganadora. Porque no seu caso não se trata de incompatibilidade com o serviço militar ou com as Forças Armadas. Ele não se declara defensor de um pacifismo absoluto. Os dados biográficos que possuímos permitem-nos concluir que se fosse francês, inglês, russo ou americano, Franz teria participado no esforço de guerra contra o nazi-fascismo, alistando-se nas forças armadas do seu país natal embora desempenhando preferencialmente funções que não o obrigassem a disparar armas contra o inimigo. A sua recusa radical não é a do cumprimento do serviço militar obrigatório mas sim a da colaboração com os nazis; ou melhor, com o nazismo, por este ser uma expressão do Mal. Sem nada saber sobre o pensamento de Sócrates (que, no fundo, é a situação de todos nós, incluindo a dos profissionais da filosofia e dos historiadores do pensamento ocidental) Franz Jägerstätter põe em prática, materializa sob a forma de agir social concreto a fórmula moral atribuída ao filósofo ateniense: é preferível submetermo-nos à injustiça do que cometer a injustiça. A regra moral platónica aparece inscrita no próprio discurso do protagonista como uma espécie de citação de Sócrates (não declarada, também por ser impossível devido à ausência de fontes absolutamente fidedignas ou incontroversas).

Nos diálogos ficcionados, bem temperados de significado filosófico, o personagem principal afirma a dado passo: «é-me impossível não escutar a minha consciência». Talvez a frase seja uma citação literal de alguma carta do Franz real. Desconheço se é ou não, embora possamos estar certos de que ele verbalizou esta sua interioridade. Frases iguais ou semelhantes foram ditas e repetidas ao longo dos tempos, em momentos históricos e em situações muito diferentes da que foi vivida por Franz e, como é natural, são ditas também nos dias de hoje. Mas será que o seu significado se mantém inalterado? Será o mesmo? Não me parece. Por isso, o que agora desejo pôr em evidência, por ser questão muito relevante para o nosso viver actual, aqui e agora, é a diferença de significado. Questão não problematizada no filme, desde logo porque a acção se situa integralmente na época em que o protagonista viveu, mas que acaba por ser proposta ao espectador de modo involuntário e forma indirecta, sem que por detrás disso haja, como é óbvio, a clara intenção geral do realizador de dar a ver um caso exemplar e por isso mesmo desejavelmente inspirador de condutas reais no tempo presente.

No quadro do hodierno comportamento humano, escutar a própria consciência significa algo de muito diferente daquilo que o perseguido Franz quis transmitir às autoridades nazis, aos representantes da Igreja, aos seus conterrâneos, assim como aos seus entes mais queridos. Neste nosso tempo, alguém afirmar que só escuta a consciência significa que está determinado a fazer aquilo que lhe apetece, aquilo que subjectiva e individualmente entende fazer, exercendo a sua liberdade pessoal e tendo em vista a mais plena satisfação possível dos seus interesses individuais imediatos, dos seus caprichos pessoais, dos seus ganhos e conveniências particulares numa imediatez instante. Quer isto então dizer que essa escuta tem hoje uma significação dominante oposta à que nos é presente no comportamento edificativo de Franz Jägerstätter nos anos quarenta do século passado. Porque, como se sabe, o modesto agricultor não hesitou em escolher o caminho contrário ao das suas conveniências pessoais, imediatas e mediatas, indo ao extremo de secundarizar a própria preservação da sua existência para poder dar resposta a um desafio moral, a uma interpolação ética ditada pela sua circunstância. Um caminho que colocou a morte diante de si.

Esta forte desconformidade entre dois modos de conceber a voz da consciência, esta oposição de significados, confronta-nos. Obriga-nos, ou deverá obrigar-nos a reflectir sobre a atitude hoje abertamente recomendada pelo individualismo reinante, pelo pensamento dominante que subjaz a coisas como o empreendedorismo, o marketing, a indústria e o comércio da felicidade, a psicologia positiva, o coaching, as doutrinas do desenvolvimento ou aperfeiçoamento pessoal, o desmedido caudal de publicações centradas no prazer do eu, no bem-estar individual, no cuidar de si, na apologia do sorriso permanente. Numa sociedade cada vez mais povoada por diversas variedades de sujeitos obcecados pela sua felicidade (os “felicicondríacos”) e que olha com crescente desconfiança para o sofredor, para a vítima, para o doente, para o fracassado, um homem como Franz Jägerstätter tenderá a ser considerado um completo parvo, um apoucado de inteligência que, por padecer desse defeito, não consegue gerir os seus interesses, não consegue governar-se. No fundo, à luz da ideologia que se tem vindo a estruturar como dominante, ideologia de cunho neoliberal e individualista (existem apenas indivíduos, como diria o economista austríaco Friedrich Hayek ou a sua fiel seguidora Margaret Thatcher) o agricultor austríaco arrasta consigo a culpa da irresponsabilidade de ter feito uma escolha errada e parva. Não soube moldar-se à circunstância. Por isso, acaba por ser ele próprio o principal culpado do seu infortúnio, com a agravante de ter lesado também os interesses de outros, desde logo os das suas filhas menores, assim como os da sua jovem mulher. Na secção de vencedores/perdedores, típica da imprensa actual, Franz logo seria etiquetado de “perdedor”, a loser, e teria direito a uma bela seta a apontar para baixo. Poderia o nosso Aristides de Sousa Mendes escapar a esta classificação? Não fez ele a mesma escolha? E esse outro Franz, o padre Franz Reinisch que tanto influiu no comportamento de Jägerstätter? E o compositor Viktor Ullmann e o jovem poeta Peter Kien? E Bernhard Lichtenberg? E Maximiliano Maria Kolbe? São todos losers?

Confrontam-se aqui diferentes tipos de moral ou de filosofias da moral. Há desde logo a clivagem entre a moral religiosa e a moral laica. No entanto, no que se refere ao problema central que o caso Jägerstätter chama à colação, que é o de saber o que devo eu fazer, como devo eu agir quando confrontado com o grande mal organizado – corporalizado em instituições e até mesmo no Estado, no seu todo, no conjunto do aparelho estatal –, a separação religioso/laico não se traduz em respostas comportamentais necessariamente diferenciadas, como fica bem demonstrado nos muitíssimos exemplos históricos em que crentes e agnósticos/ateus convergiram numa mesma atitude oposicionista, de completa rejeição da estruturação do mal. Perante o Reich hitleriano, houve comunistas ateus, como Ernst Thälmann, e padres católicos, como o já aqui citado Bernhard Lichtenberg, que, no fundamental, fizeram a mesmíssima escolha, obedecendo ao imperativo moral da rejeição de um regime imoral, como logo se adivinha quando olhamos para as datas e locais de falecimento desses dois homens (respectivamente, Agosto de 1944, em Buchenwald, e Novembro de 1943, no caminho para Dachau). No caso vertente, estamos perante alguém mergulhado no universo da moral católica associada à teologia do sofrimento. O cristianismo, de uma forma geral, mas em particular o cristianismo católico, divergiu da maioria das correntes de pensamento da Antiguidade no que se refere ao entendimento do sofrimento, do prazer e da felicidade. Trata-se de uma mudança que em diferentes épocas irá determinar, de modo directo ou indirecto, várias morais, ou formas de conceber a moral e a ética. De modo particularmente vincado, no plano da existência terrena o catolicismo secundariza o prazer e a felicidade ao mesmo tempo que confere primazia ao sofrimento. Distanciando-se do epicurismo, do hedonismo, do estoicismo, mas também de religiões como o budismo e outras, o cristianismo institui aquilo a que já alguns autores chamaram a “filosofia da infelicidade”. O casal Jägerstätter segue essa filosofia, assimilando a moral que lhe está associada. No próximo grande debate nacional, que será sobre a eutanásia, e que agora se vai adensar em Portugal a partir de uma sessão plenária na Assembleia da República já agendada, essa moral católica vai ter enorme peso, porque à luz dessa “filosofia do sofrimento” a eutanásia, por ser, por definição, uma intervenção contra o sofrimento, uma abrupta interrupção dos tormentos do doente em estado terminal (o étimo grego euthanasía significa morte feliz ou morte fácil), é uma prática inadmissível. Desde logo porque a morte de Cristo, enquanto morte paradigmática, com a sua forte dimensão simbólica (morte na cruz, não fácil nem feliz e modelo exemplar da acção desinteressada), transportou para o interior da cultura humana uma outra visão do sofrimento. Uma visão positiva. Porque ele é muitas vezes um factor decisivo na aproximação a Deus. Conduz-nos à união com Deus – configuração do eu com o Eu divino. Nesse sentido, o Bem está no experienciar da infelicidade, ou está mais aí do que na felicidade. E se assim é, abreviar o sofrimento através de uma morte infligida (abreviação voluntária da própria vida) é obstaculizar o caminho para Deus, comprometendo a salvação. 

As morais laicas e humanistas que se desenvolveram na Europa setecentista afastaram-se deste concebimento da felicidade/infelicidade. Também elas não irão deixar de marcar presença no debate coevo sobre a eutanásia. No mundo contemporâneo ocidental tem prevalecido a moral laica do welfare associada ao capitalismo e que, por isso mesmo, se expandiu a partir da cultura anglo-saxónica do século XVIII. Essa moral laica, que se distingue de outras concepções não menos laicas (como a kantiana), está umbilicalmente associada ao utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. No quadro desta corrente de pensamento o homem é definido como ser provido de um interesse fundamental: conquistar o bem-estar (welfare) e a felicidade. Em coerência com essa definição, a acção humana interessada passará a ser valorizada em detrimento do agir desinteressado do crucificado. O bem, concebido como aquilo que concorre para a satisfação do interesse fundamental (a felicidade), é deslocado para longe do sofrimento, passando a estar no pólo oposto. Se é certo que o utilitarismo é uma forma de eudemonismo, muito errado seria conota-lo com o egoísmo, como não raras vezes acontece nas críticas comuns que lhe são endereçadas fora da esfera da cultura especializada. Embora coabitando com a moral kantiana no espaço da laicidade, o utilitarismo está afastado do conhecido imperativo categórico kantiano: «Age unicamente de acordo com a máxima que faça que tu possas querer ao mesmo tempo que ela devenha uma lei universal». Independentemente dos juízos crítico-valorativos (que estão fora dos meus propósitos ao redigir este escrito), interessa perceber que esta corrente se desdobra em múltiplas direcções, aparecendo espelhada em domínios muitíssimo variados, como sejam a publicidade, a cosmética (“produtos de beleza”), a indústria do sexo, os enredos de telenovelas, séries, filmes, as revistas de aconselhamento de variado tipo, a ida ao ginásio, a arte entretenimento, etc. ; surge também em expressões ou frases em voga, como “direito à diferença”, “temos que ser positivos”, “goza à grande”, “be yourself”, “just be cool / gonna be cool”, “cuidar de si”, “promover o crescimento económico”, “é preciso aprender coisas que sejam úteis”, “ser lucrativo”, “fazer aquilo que nos apetece”, e tantas outras.

Isto parece mostrar que o nosso quotidiano está cheio de apelos à procura da satisfação dos interesses do indivíduo, do sujeito individual que por sua vez é concebido como ente desligado de qualquer estrutura societal, existindo como singularidade subjectiva (relativa ao sujeito) que se soma a outras singularidades numa lógica de simples justaposição. Olhando em nosso redor, tudo ou quase tudo parece instar a que essa procura domine toda a nossa vida, nas suas várias vertentes, do espiritual ao material. Como devemos então avaliar os actos praticados por Franz Jägerstätter? E quanto à já antes enunciada grande questão que esses actos transportam? A de saber que devo eu fazer perante o avanço da organização do Mal?

A realidade em acelerada mutação que é hoje a nossa realidade confere crescente relevância a essa interrogativa fundamental. Basta constatar a clara afirmação de extremismos nacional-populistas e o risco evidente de morte da democracia na América, para usar o título do texto clássico de Alexis de Tocqueville sobre o ideal da Liberdade e a sua adequação a uma realidade sociopolítica concreta, obra de leitura e releitura ainda mais obrigatória nos tempos que correm.                      

Na cena mais dostoievskiana do filme o juiz presidente, qual Grande Inquisidor, introduz a central questão do livre arbítrio, interrogando o réu em busca do sentido moral. A dimensão moral de um comportamento é uma consequência directa da liberdade de escolha do sujeito. Se a escolha fosse impossível por imposição de um determinismo absoluto, o comportamento humano não seria passível de julgamento moral. A moral germina na liberdade, no eu livre (que até pode ser um eu encarcerado, como Sócrates na prisão ateniense e Franz na prisão nazi de Berlim, ambos mais livres do que os seus juízes). Mas, por isso mesmo, Franz (como Aristides) podia ter optado por se comportar de uma forma que o salvasse da condenação há morte. Podia ter dado prioridade à satisfação dos seus interesses. Porquê, então, agir desse modo, sacrificando a vida? E porquê essa escolha se ela não ia alterar nada? Se não ia influir no devir histórico? A sua decisão nunca poderia alterar o rumo dos acontecimentos. O facto de se tratar de um cidadão anónimo, sem ligação a organizações políticas de resistência, sem qualquer notoriedade pública, vivendo uma vida escondida, fazia com que a sua escolha estivesse condenada a ser um acto não histórico, no sentido em que não influi no curso da História. Todos os factos ocorridos e todos os actos humanos praticados fazem parte da História, na medida em que constituem o próprio tecido do devir histórico; porém, nem todos são actos históricos, actos causadores de uma mudança no rumo dos acontecimentos no plano daquilo a que podemos chamar “grande história” por oposição à petite histoire. Porquê então insistir numa escolha inútil? Porquê um sacrifício extremo, o da própria vida, se “não serve para nada”? Se não altera o rumo dos acontecimentos? Franz sabia, como qualquer outro, que o seu “Não” radical (e até mesmo a sua morte) nada ia provocar, no imediato, que pudesse derrotar a maldade nazi. E tinha Franz o direito de fazer uma escolha que implicava deixar filhos órfão e uma mulher viúva? Não haverá egoísmo sacrificial neste agir infrutífero?

Claro que nunca nos libertamos do ego. Mas o que acontece é que naqueles que se construíram pessoa a identidade repousa sobre um conjunto de convicções e resulta de uma sólida fidelidade a si próprio, no completo respeito pelo seu eu-essencial. A morte não se esgota na morte biológica ou física. Pode-se morrer permanecendo biologicamente vivo. Há mortos vivos. Franz sabia que se escolhesse não refutar o nazismo estaria a refutar o seu eu-pessoa, pondo em causa a sua autenticidade enquanto sujeito concreto. Perdia-se, sem hipótese de retrocedimento. Perderia toda a sua autenticidade humana; destruiria a sua identidade por não ter conseguido manter-se fiel a si próprio. Isso constituiria objectivamente o assassinato do seu eu-pessoa ou, se preferirmos, seria um suicídio da alma. Teria sido outra morte, mais penalizadora por ser indigna. Uma morte resultante da trágica perda da autenticidade e da identidade fundada em convicções. Por isso, Franz sabe que não pode vencer a batalha que trava. Na sua desesperança reside a autenticidade da coragem. A coragem do vencido. Na Ética a Nicómaco Aristóteles faz-nos compreender o essencial através de uma asserção bela, sucinta e profunda: «As pessoas verdadeiramente corajosas não agem senão pela beleza [ética] do acto corajoso» -- esse to kaloun pratousin que também tem sido traduzido por «amor do bem» (Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1116 b 30).   

No conjunto das virtudes humanas a coragem é sem sombra de dúvida a que é objecto de maior admiração universal. Os actos de Franz Jägerstätter são indiscutível exemplo de coragem. Até mesmo alguns acusadores, na sua vincada discordância não terão deixado de nutrir uma certa admiração pela coragem exibida. Como faz notar André Compte-Sponville no seu Petit traité des grandes vertus, «o que é universalmente admirado, é também admirado pelos maus e pelos imbecis». E o sagaz Voltaire, em quem Compte-Sponville se inspira, afirmava que no seio da alma humana «Uma coragem indómita […] / Faz os grandes heróis ou os grandes criminosos» (em Rome sauvée, ou Catilina, V, 3). Daí que Voltaire não classificasse a coragem como sendo uma virtude humana. A coragem de Franz foi «para o bem e no bem», enquanto alguns nazis exibiram em vários cantos do mundo uma coragem «para o mal e no mal». Por isso, a coragem de Franz confere virtuosidade ao sujeito da acção, coisa que não acontece com a coragem do esbirro da Gestapo ou do militar das SS, mesmo quando ela, de alguma maneira, possa despertar certo grau de admiração. Para além dessa virtuosidade, os actos corajosos de Franz motivam acrescido respeito por terem sido praticados no isolamento; porque, excluindo a sua companheira, todos discordavam da sua escolha, todos estavam contra ele, todos condenavam a sua atitude. Uma ostracização cinematograficamente sublinhada por Malick. Esse isolamento serve para mostrar como a moral é um assunto do Eu. Como dizia Alan, «la morale n’est jamais pour le voisin», a moral nunca é para o vizinho mas sim para nós próprios. A questão moral é sempre endereçada ao Eu: o que devo eu fazer? Inquirir sobre o que devem os outros fazer é problema que remete para a esfera do moralismo que, claro está, é coisa diferente da moral. Mas iludem-se os que supuserem que a escolha corajosa desse homem simples foi decidida na absoluta solitude. Não. Franz era um crente cristão, homem de profunda fé, e a sua decisão é tomada em íntimo diálogo com a divindade. É uma “solidão” com Deus ou na companhia de Deus. Será que isso diminui a nossa admiração pela sua coragem? Talvez, mas não necessariamente; e, à falta de medidor objectivo da intensidade ou do grau da coragem, nem talvez se deva colocar a questão. Como Pascal, o austríaco Franz tinha a profunda convicção de que «se há um Deus, há que amá-lo só a Ele e não às criaturas efémeras». A voz destas, seja qual for o seu poder terreno, nunca se pode sobrepor à voz de Deus. É Ele que deve ser escutado, é a vontade desse ente supremo que deve ser respeitada. Improvável leitor de Dostoievski (esse escritor do “compromisso teológico”, como disse o recentemente falecido George Steiner), Franz também poderia ter afirmado: «se Deus não existe, tudo é permitido». Se bem que a asserção dostoievskiana seja notoriamente falsa, uma vez que o sujeito para quem Deus não existe, o eu ateu, não é necessariamente, nem de forma alguma um ser humano que se permita fazer tudo. Muitos ateus tiveram perante o nazismo a mesmíssima atitude, fazendo a escolha do crente Franz: disseram não; refutaram-no dando também a vida em defesa de um ideal, mas, neste caso, desligado de qualquer tipo de crença religiosa. Como nos ensinou o iluminista Kant (bem como vários outros), a religião, a fé religiosa, não é o fundamento da moral; esta é que justifica ou fundamenta aquela.

No mundo terreno, Franz, o puro crente perseguido que até exercia as funções de sacristão na igreja da sua aldeia e que praticou o sacerdócio laico antes do Concílio do Vaticano II, teve que suportar a condenação da própria comunidade religiosa a que pertencia. Hostilidade desencadeada também, e em grande medida, pela desaprovação que o seu comportamento mereceu junto da hierarquia da Igreja na Áustria do pós-Anschluss, uma hierarquia católica curvada diante do poder nazi, agente do Mal – atitude que é exemplo de cobardia para o mal e no mal.

Mais tarde, já no pós-guerra, numa Áustria pouco ou deficientemente desnazificada, foi preciso esperar vários anos até que fosse atribuída uma pensão de viuvez a Franziska Jägerstätter (o nome de solteira era Schwaninger), mulher de Franz e mãe de três das suas quatro filhas. A mesma hierarquia religiosa que em 1943 o tentou demover da recusa do nazismo, chegado o tempo de paz não sentiu a urgência de alterar a sua posição, colocando-se do lado da defesa da memória do homem bom que tinha criticado. Sessenta e quatro anos depois da execução de Jägerstätter, em momento de conveniência institucional, a Igreja Católica enalteceu formalmente o comportamento do “sacerdote laico” vítima da barbárie nazi. Foi em Junho de 2007 que o papa Bento XVI conferiu a Franz Jägerstätter o estatuto de mártir (concluindo um processo que se iniciara em 1997, quando já tinha decorrido mais de meio século desde o dia da execução); pouco tempo depois, no dia 26 de Outubro desse mesmo ano, assistiu-se à sua beatificação na Nova Catedral de Linz. Cerimónia presidida por um português: o cardeal José Saraiva Martins. Franziska, então com 94 anos, ainda pôde estar presente (faleceu com 100 anos, em 2013).

No filme de Malick, o juiz presidente (derradeira representação do actor Bruno Ganz, falecido em 2019) acaba por se sentar no lugar do réu Franz. Uma movimentação simbólica, portadora de um convite à consciência autocrítica.

O decesso de Franz Jägerstätter sob a guilhotina nazi é uma morte socrática. Sócrates, esse protagonista de uma morte paradigmática no quadro da cultura humana, podia ter escapado facilmente à cicuta se tivesse feito outra escolha perante o tribunal ateniense, abdicando de si, desbaratando a sua autenticidade. É a escolha da reafirmação de uma identidade fundada nas suas convicções (fidelidade a si, autenticidade) que o faz ser condenado à morte e executado. A morte de Jägerstätter inscreve-se nesse paradigma. E à semelhança do celebrado filósofo ateniense também o obscuro agricultor austríaco se vai sentir livre na prisão, porque, na sequência da formulação de um radical Não, é aí que ele se cumpre como pessoa. O seu acto de negação é ao mesmo tempo um acto de afirmação; o “não” é um “sim” à vida digna – como o «preferia não o fazer» incansavelmente repetido por Bartleby na novela homónima de Herman Melville. E nessa medida, a recusa de se esquivar ao sofrimento não aparta Jägerstätter da sabedoria de um Michel de Montaigne, apóstolo intelectual do «grande “sim” sagrado à vida» (Frédéric Lenoir), porque os padecimentos resultantes do “não” são sofrimento inevitável, não se inscrevem na categoria do sofrimento evitável, porque evitá-los implicaria o inaceitável e, por isso, também o insuportável: trair as convicções mais profundas. Daí que as privações e os tormentos do cárcere representem a continuidade da pessoa que se é, e isso concede bem-estar interior. Terrence Malick oferece-nos a retratação cinematográfica dessa alegria no cativeiro. Uma essencial alegria de tonalidade espinosista que permanecerá fatalmente ininteligível para os que no seu existir caminham despidos de autenticidade e nus de convicções.

Os actos antinazis de Franz foram actos não históricos na altura em que foram praticados, mas a memória que os projecta no tempo, trazendo-os a este nosso presente em que novos agentes do mal extremo se perfilam e reagrupam no horizonte, confere-lhes outra dimensão histórica, na precisa medida em que se deseja que concorram no tempo actual para dar forma a uma ética comportamental ofertante de sólida resistência, na dupla vertente do pensamento e da acção prática que o materializa, à reorganização do mal e a novas formas de o institucionalizar. Desse modo, o acto não histórico protagonizado por um homem anónimo adquire súbita e inesperadamente a capacidade de fazer história através do distanciado agir de sujeitos em que venha a influir.

Nós somos membros da Humanidade pós-Auschwitz. E depois de Auschwitz, supremo símbolo do grande Mal, o não, a filosofia da negação/rejeição, tornou-se, em definitivo, a única atitude humanamente admissível e moralmente possível.

João Maria de Freitas Branco

Caxias, Fevereiro de 2020

 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

DEMOCRACIA -- Sobre um artigo de Santana Castilho


 essa prioridade das prioridades imposta pela cada vez mais dominante ideologia neoliberal. Isso tem vindo a colocar a Escola mais ao serviço da criação do homem comercial do que da criação do homem integral, como diria o lúcido Rabindranath Tagore.

Há, no entanto, no certeiro texto de Santana Castilho uma frase que considero muito perigosa e que infelizmente até mereceu destaque jornalístico. É a seguinte: «A democracia não pode ser tolerante com aqueles que a querem destruir».
 
 
o", essa prioridade das prioridades imposta pela cada vez mais dominante ideologia neoliberal. Isso tem vindo a colocar a Escola mais ao serviço da criação do homem comercial do que da criação do homem integral, como diria o lúcido Rabindranath TagAcabo de ler no jornal PÚBLICO um excelente artigo de Santana Castilho que expressa uma opinião, entre várias outras, que converge com o que também eu tenho publicamente afirmado: a Escola não está a conseguir cumprir a missão essencial de contribuir para a construção de uma sociedade diferente, expurgada, digo eu, de racismo, de homofobia, de xenofobia, de totalitarismos, de apego ao sobrenatural, de irracionalidade à solta. A Escola curvou-se perante a voga da apologia do "crescimento económico", essa prioridade das prioridades imposta pela cada vez mais dominante ideologia neoliberal. Isso tem vindo a colocar a Escola mais ao serviço da criação do homem comercial do que da criação do homem integral, como diria o lúcido Rabindranath Tagore.
Acabo de ler no jornal PÚBLICO um excelente artigo de Santana Castilho que expressa uma opinião, entre várias outras, que converge com o que também eu tenho publicamente afirmado: a Escola não está a conseguir cumprir a missão essencial de contribuir para a construção de uma sociedade diferente, expurgada, digo eu, de racismo, de homofobia, de xenofobia, de totalitarismos, de apego ao sobrenatural, de irracionalidade à solta. A Escola curvou-se perante a voga da apologia do "crescimento económico", essa prioridade das prioridades imposta pela cada vez mais dominante ideologia neoliberal. Isso tem vindo a colocar a Escola mais ao serviço da criação do homem comercial do que da criação do homem integral, como diria o lúcido Rabindranath Tagore.
Há, no entanto, no certeiro texto de Santana Castilho uma frase que considero muito perigosa e que infelizmente até mereceu destaque jornalístico. É a seguinte: «A democracia não pode ser tolerante com aqueles que a querem destruir».
Compreendo bem o sentimento do articulista (que adivinho ser bastante semelhante ao meu), mas a frase entra em contradição com a própria noção de democracia, com os seus princípios diferenciadores. Tolerância não significa desistência; não é rendição perante os inimigos. Muito pelo contrário: a tolerância democrática implica o exercício da liberdade de contradizer de forma fundamentada, convoca a contra-argumentação racional. A recente atitude (justamente criticada pelo articulista) da "maioria parlamentar pensante" trai a democracia que diz defender, porque a tolerância democrática não é isso, não é remeter-se ao silêncio perante as investidas do inimigo da democracia; é, bem ao invés, assumir posição, combater com toda a energia, sem tréguas, mas sem que esse combate mate a Liberdade. É combater o opositor sem lhe retirar a liberdade de expressão. É assim que esgrime o autêntico arauto da Liberdade, o sujeito que ama a Liberdade. E aqui reside a grande superioridade de um regime instituidor da Liberdade e da Igualdade.
Seja-me permitida, a finalizar este breve comentário, uma autocitação, extraída da última página do meu último livro e que remete para o problema da Escola. Escrevi aí o seguinte: A Educação tem que recuperar uma nobreza que foi perdendo com a submissão à doutrina do supremo valor do imediatamente útil, com as várias cedências aos poderes empresariais e estatais.
É necessário sabermos viver na Verdade e a Escola tem que ser um instrumento da aprendizagem do viver na Verdade.
Convido-os agora a ler com atenção o texto de Santana Castilho hoje publicado no jornal PÚBLICO, sob o título "Joker podemos ser todos!",e por mim partilhado com muito agrado no Facebook (v. a minha página). Boa leitura!
João Maria de Freitas Branco
Caxias, 5 de Fevereiro de 2020
 
 
 
Há, no entanto, no certeiro texto de Santana Castilho uma frase que considero muito perigosa e que infelizmente até mereceu destaque jornalístico. É a seguinte: «A democracia não pode ser tolerante com aqueles que a querem destruir».
Compreendo bem o sentimento do articulista, mas a frase entra em contradição com a própria noção de democracia, com os seus princípios diferenciadores. Tolerância não significa desistência; não é rendição perante os inimigos. Muito pelo contrário: a tolerância democrática implica o exercício da liberdade de contradizer de forma fundamentada, convoca a contra-argumentação racional. A recente atitude (justamente criticada pelo articulista) da "maioria parlamentar pensante" trai a democracia que diz defender, porque a tolerância democrática não é isso, não é remeter-se ao silêncio perante as investidas do inimigo da democracia; é, bem ao invés, assumir posição, combater com toda a energia, sem tréguas, mas sem que esse combate mate a Liberdade. É combater o opositor sem lhe retirar a liberdade de expressão. É assim que esgrime o autêntico arauto da Liberdade, o sujeito que ama a Liberdade. E aqui reside a grande superioridade de um regime instituidor da Liberdade e da Igualdade.
Seja-me permitida, a finalizar este breve comentário, uma autocitação, extraída da última página do meu último livro e que remete para o problema da Escola. Escrevi aí o seguinte: A Educação tem que recuperar uma nobreza que foi perdendo com a submissão à doutrina do supremo valor do imediatamente útil, com as várias cedências aos poderes empresariais e estatais.
É necessário sabermos viver na Verdade e a Escola tem que ser um instrumento da aprendizagem do viver na Verdade.
Convido-os agora a ler com atenção o texto de Santana Castilho hoje publicado no jornal PUBLICO e por
Compreendo bem o sentimento do articulista, mas a frase entra em contradição com a própria noção de democracia, com os seus princípios diferenciadores. Tolerância não significa desistência; não é rendição perante os inimigos. Muito pelo contrário: a tolerância democrática implica o exercício da liberdade de contradizer de forma fundamentada, convoca a contra-argumentação racional. A recente atitude (justamente criticada pelo articulista) da "maioria parlamentar pensante" trai a democracia que diz defender, porque a tolerância democrática não é isso, não é remeter-se ao silêncio perante as investidas do inimigo da democracia; é, bem ao invés, assumir posição, combater com toda a energia, sem tréguas, mas sem que esse combate mate a Liberdade. É combater o opositor sem lhe retirar a liberdade de expressão. É assim que esgrime o autêntico arauto da Liberdade, o sujeito que ama a Liberdade. E aqui reside a grande superioridade de um regime instituidor da Liberdade e da Igualdade.

Seja-me permitida, a finalizar este breve comentário, uma autocitação, extraída da última página do meu último livro e que remete para o problema da Escola. Escrevi aí o seguinte: A Educação tem que recuperar uma nobreza que foi perdendo com a submissão à doutrina do supremo valor do imediatamente útil, com as várias cedências aos poderes empresariais e estatais.

É necessário sabermos viver na Verdade e a Escola tem que ser um instrumento da aprendizagem do viver na Verdade.

Convido-os agora a ler com atenção o texto de Santana Castilho hoje publicado no jornal PUBLICO e por mim partilhado com muito agrado no Facebook