Pesquisar neste blogue

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

A saúde da Igreja Católica


Neste actual período natalício, escolhido pelo Papa Francisco para endereçar uma duríssima censura à hierarquia da sua Igreja, não resisto à vontade de deixar aqui um brevíssimo comentário que é também desabafo: verifico, não sem algum orgulho, que o Papa me vem agora dar razão em muito do que publicamente afirmei sobre o estado de saúde da Igreja Católica. Seja-me permitido recordar em particular o artigo de opinião que publiquei em Março deste ano (2014), sob o título “Eleição papal: um convite à meditação “, e que suscitou a discordância de alguns leitores católicos que nele viram a mera expressão da oposição ateísta. Afinal, se quisermos acreditar na autorizada voz papal, a minha crítica pecava por defeito. As “doenças” (termo papal) não só existem como são ainda mais numerosas. São 15! Não é o ateu João que o diz, mas sim o católico Francisco, chefe da Igreja, líder do Estado religioso do Vaticano. Interrogo-me sobre qual será agora a opinião desses católicos sobre o meu texto. Que leituras dele fazem, neste momento, depois do último discurso do Papa contra os pecados da hierarquia católica? Mantêm as anteriores reticências? Esse meu artigo de opinião terminava com as seguintes palavras:

Desejoso de ver a Igreja Católica expurgada de pecados, deposito aqui os meus mais sinceros votos de que o novo Papa e a Cúria renovada consigam edificar uma religiosidade genuína, despida de bullshits, para usar o termo que o filósofo americano Harry Frankfurt trouxe para o léxico filosófico. Uma religiosidade favorecedora da elevação, da honestidade intelectual e da matura acção civilizatória. É este o franco e são desejo deste confesso ateu religioso. (Jornal “Público”, edição de 13 de Março de 2013, p.47; também ode ser integralmente lido online, em razaojmfb.blogspot.pt ).

Talvez o ano de 2015 traga boas novidades no sentido da satisfação deste desejo. Se o Papa Francisco tiver suficiente força, engenho e arte, talvez o novo ano abra caminho para o Novo Concílio e promova, como diz o teólogo católico Javier Monserrat, «a saída do mundo antigo e a entrada no mundo moderno», «uma mudança hermenêutica necessária para o cristianismo». O futuro do cristianismo e da sua forma institucionalizada dependerá da capacidade de abandonar a cultura dogmática.

Natal de 2014

Blog RAZÃO – razaojmfb.blogspot.pt

domingo, 30 de novembro de 2014

EM ESTADO DE DESASSOSSEGO


Não creio que um Estado de Direito democrático possa ter grande longevidade quando a quantidade de suspeição relativamente à compleição ético-moral dos seus principais quadros responsáveis é aquela que temos observado, com crescente espanto e indignação, ao longo dos últimos tempos. Este risco de sobrevivência de uma conquista civilizacional é, só por si, extremamente preocupante. Mas não ficamos por aqui. Há preocupações acrescidas.

É igualmente inquietante e causador de perplexidade ver um vasto conjunto de personalidades do nosso meio político reagir à detenção à detenção do ex-primeiro-ministro José Sócrates centrando a atenção apenas em aspectos processuais ou nos formalismos jurídicos. Não se ergue aqui uma prioritária e essencial questão de natureza política, ética e cultural? A questão da face do regime e do Estado. Ou seja, a questão do asseio do rosto, da decência, da dignidade do regime e do Estado.

Como pode então um actual candidato a primeiro-ministro, o socialista António Costa, afirmar ser este o tempo da justiça, devendo os políticos permanecer em silêncio em relação ao caso? Então, em face dos últimos acontecimentos, não sentem os responsáveis políticos, todos eles, ainda maior urgência de vir a terreiro com medidas imediatas de combate à corrupção, de modo a estancar a tremenda hemorragia de imoralidade de que padece o regime e o Estado? Estávamos já perrante um vasto leque de indecências banalizadas, prolongadas no tempo, que vai da imoralidade legal da acção dos facilitadores até à corrupção na cúpula do Estado. Nas últimas semanas assistimos a um crescendo que culminou na detenção de um ex-primeiro-ministro sob a indiciação de prática de ilícitos da máxima gravidade.

No meio deste abalo, Mário Soares veio declarar que a detenção de José Sócrates “deixou os democratas imensamente preocupados”. Mas então não estavam já imensamente preocupados? Não havia já motivos de sobra para tal, nomeadamente o facto desse mesmo Sócrates, agora detido, ter governado a nossa Pátria durante mais de sete anos sob contínua suspeição de prática de ilícitos? Não era isso, só por si, motivo para imensa preocupação dos democratas?

Há uma óbvia e necessária presunção de inocência. Aceita-se e compreende-se que amigos de José Sócrates declarem estarem convictos da sua total inocência. É admissível que se levantem dúvidas relativamente aos métodos da justiça e até que se discutam as decisões por ela tomadas – particularmente a medida de coação aplicada. O repúdio do circo mediático e de um certo pseudojornalismo que se alimenta de fugas ao segredo de justiça (que é prática criminosa) é um imperativo ético. Mas não havendo sinais indiciadores de agudo estado de demência do juiz instrutor, impõe o mais elementar bom senso que todos acreditemos que a ordenação de detenção de um ex-primeiro-ministro, assim como a subsequente medida que lhe foi aplicada (a mais gravosa de todas as medidas de coacção), resulta do facto de o juiz decisor ter diante dos seus olhos, necessariamente, indícios muito fortes ou pré-provas da prática dos crimes referidos no comunicado oficial do Tribunal Central de Acção Criminal. Essa conclusão ditada pelo simples bom senso obriga a que se tirem imediatas ilações políticas. Como se pode afirmar, como hoje mesmo foi afirmado pelo ex-presidente da República Mário Soares, que este caso não tem “nada a ver com os socialistas” (leia-se PS)? Então José Sócrates não governou em nome do PS? Não foi indicado pelo PS para exercer o cargo de primeiro-ministro? António Vitorino, ontem, na SIC Notícias, com honestidade e frontalidade, afirmou que este caso tinha tudo a ver com o Partido Socialista, lesando a sua imagem institucional. Claro!

Como se pode então reduzir todo este complexo caso a uma “bandalheira”? Quem considera que tudo isto não passa de uma “bandalheira”, e mais não é do que uma “campanha que é uma infâmia”, está absolutamente descrente da honestidade da justiça portuguesa, dos seus magistrados, dos tribunais e das suas restantes instituições. Assustador! É o decretar da total falência do Estado de Direito que obviamente não pode existir sem justiça que tenha alguma decência. Mas mais assustador ainda é o facto de esta confissão de total descrença na nossa justiça ter saído não da boca de um qualquer cidadão anónimo, eventualmente desinformado, senão que da boca de um ex-presidente da República e actual conselheiro de Estado: Mário Soares – por acaso, também jurista. É de enlouquecer! Que fica o pobre cidadão comum a pensar? Como pode dormir, depois de uma tão alta figura do regime e do Estado ter dito publicamente que o Tribunal Central português é agente da bandalhice e está ao serviço de campanhas “orquestradas por malandros”, decidindo de forma desregrada, sem critérios, sem fundamentos? Que vai fazer o juiz instrutor Carlos Alexandre perante tamanha acusação à sua pessoa, pondo em causa o seu bom-nome? Que vai fazer o Tribunal Central de Acção Criminal depois de se ver assim atacada a sua idoneidade? Que vão dizer os partidos políticos? Que vai dizer António Costa, candidato a primeiro-ministro pelo partido vítima da “bandalhice” da justiça? Em crescente estado de desassossego, aguardamos pelas reacções.

Como podem pretender alguns altos dirigentes do PS, incluindo António Costa, que este não é um momento “nada difícil” para o PS? Estarei alucinado? Sou eu que não percebo nada de política ou este esconder o Sol com a peneira é gesto politicamente suicidário?

Se não estou alucinado e se ainda possuo alguma cultura e sensibilidade política, o que francamente me parece é estarem alguns socialistas a dar tiros no seu próprio partido, o que neste momento de acentuada fragilidade do regime e do Estado de Direito democrático, abalado por uma avalanche de acontecimentos gravíssimos, se me afigura assaz inconveniente.

A crítica que aqui endereço a esses responsáveis políticos do PS é feita em defesa do PS, pois mesmo não sendo eu militante deste partido, nem de nenhum outro, desejo ver os partidos da nossa democracia a funcionarem bem, a portarem-se decentemente, a darem exemplos de elevação. Coisas que têm escasseado bastante, para mal da nossa comunidade nacional.

Dizer que o PS está a viver um momento “nada difícil” é tornar o momento actual ainda mais difícil para o PS.
 
João Maria de Freitas-Branco
 

domingo, 9 de novembro de 2014

25 ANOS DEPOIS


O breve texto/depoimento sobre o fim do Muro de Berlim que agora aqui publico foi-me solicitado pelo jornal “I” para ser incluído na sua edição de ontem – uma vez que o jornal não se publica nos Domingos. A dimensão do texto resulta dos habituais constrangimentos editoriais. Aqui fica, no dia de hoje, dia de aniversário, para todos os que se interessem pelo tema. Mais tarde, apresentarei um esclarecimento complementar.

 

25 ANOS DEPOIS

 

Erguer fronteiras que dividam os humanos, gerando isolamentos, é gesto indesejável que serve a dependência em detrimento da autonomia.

A queda do Muro que verdadeiramente começou a ser construído em 1949, com a criação da RFA pelos aliados ocidentais, e não no dia da colocação da primeira pedra – facto deixado na sombra da história de modo a ocultar a co-responsabilidade dos EUA, da Inglaterra e da França (poderio capitalista) – essa queda, saudei-a, mesmo estando consciente de que iria pôr em risco a boa realidade por mim vivenciada no lado de lá do Muro, na Alemanha não-capitalista.

No discurso dominante, o uso do termo liberdade é limitativo, pois procura significar apenas um tipo de liberdade e ocultar outro: o que conheci na RDA, ou seja, a liberdade de não estar desempregado, de não passar fome, de não ter que esmolar, de poder viver em segurança, de ter reforma, de usufruir de ensino e serviço de saúde gratuitos. O Muro indesejável defendeu essa liberdade, mas aniquilou outras. Complexidades da humanidade…

Quando interrogados (em 1989) sobre qual era o maior problema que os afectava, a resposta dos cidadãos da RDA foi: não poder viajar para qualquer parte do mundo. Se não diz tudo, esta réplica diz pelo menos muito sobre a realidade socialista que existia. Que responderiam os cidadãos portugueses hoje?

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Pensar o Homem com Ray e Allen


Quando os seres humanos são levados a traçar o perfil da sua essencialidade, envolvendo-se em processo de auto-caracterização, é notória a inclinação narcísica. Até mesmo no plano do discurso mais erudito (filosófico, científico), em que se declara estarem pressupostas exigências de rigor, objectividade, profundidade, até mesmo aí fácil é verificar como em todas as várias fases históricas de auto-reflexão, a contaminação do narcisismo marcou presença. Daí que ao falar de si o ser humano tenda a ignorar ou a ocultar, lançando para a penumbra, características menos nobres, menos grandiosas, menos dignas de incontroversa admiração. Na feitura do auto-retrato, na selfie (ou selfy) à sua essência (para ser bem moderno no dizer), o Homem remete para essas zonas de sombra uma das suas mais fundamentais características definidoras: a credulidade. Tanto ou mais do que homo sapiens, somos homo credulus. Ser crédulo terá sido, com boa probabilidade, um factor evolutivo relevante, uma vantagem adaptativa no quadro do processo darwínico. Aí residirá a razão mais profunda dessa distintiva.

Mas a coisa não fica por aqui. Esconde-se, também, envergonhadamente, outro aspecto capital: o facto da vivência da credulidade ser gratificante. Temos aqui o modelo típico daquilo que em psiquiatria e neurobiologia se designa por circuito do prazer; a sequência pena/recompensa.

Estão presentemente em exibição nas nossas salas de cinema duas obras de arte cinematográfica que nos convidam a pensar esta vertente da essência do humano ao mesmo tempo que a filmam com a mestria própria dos autores em questão. Isso aqui me traz, com o mero intuito de deixar algumas observações críticas que, ao mesmo tempo, funcionem como recomendação, ou seja, que possam servir de incentivo a uma ida ao cinema. É essa uma forma de contrariar eventuais e inconvenientes efeitos inibitórios do desejo de ida ao espectáculo produzidos pela atitude de alguns críticos de serviço (até em jornais de referência) que se apressaram a colar o rótulo de medíocre neste mais recente trabalho de Woody Allen. Como se pode atribuir apenas duas estrelas (na habitual escala de 0 a 5) a uma obra cinematográfica com aqueles diálogos recheados de humor inteligente, transportando grande seriedade reflexiva, com uma construção narrativa tão conseguida, plena de efeitos surpresa bem arquitectados, com aquele tão elevado nível de representação, com a sedutora Cote d’ Azur a encher o ecrã, com um extraordinário bom gosto musical espraiando-se do universo sinfónico beethoveniano até Cole Porter? Quem merece menos de duas estremas é todo o crítico que assim ajuíza. Um despautério snobe que incomoda. Mas isto é apenas desabafo, pois todos sabemos que tal como há bons e maus realizadores também há, necessariamente, bons e maus críticos de cinema. Faz parte da natureza das coisas de humana iniciativa.

As obras em questão são as seguintes: Mahapurush (O Santo), realizado por Satyajit Ray em 1965, e Magic in the Moonlight (Magia ao Luar), de Woody Allen (2014).

Independentemente de tudo, e é muito, que diferencia os dois filmes – estilos, origem, data de realização, construção narrativa, técnicas de filmagem, etc. –, para além do foco temático as obras convergem no constante recurso ao humor inteligente, profundo, irónico, sarcástico e corrosivo. No entanto, para minha pessoal surpresa, nas sessões onde estive (nomeadamente na do cinema Nimas, com sala cheia de um público considerado de elite) os atentos espectadores não riam, nem me pareceu que esboçassem frequentes sorrisos. Certo é que nada semelhante ao riso franco, à gargalhada, foi para mim audível naquelas salas de projecção cinematográfica da nossa capital europeia. A certa altura, no espaço do Nimas, até dei comigo a conter-me para que as gargalhadas que me saltavam não fossem demasiado exuberantes e, nessa medida, eventualmente incomodativas para os outros espectadores, meus companheiros de circunstância, a começar pelo sujeito sentado ao meu lado direito que, de principio a fim se manteve sisudo, como se estivesse a assistir a pungente drama. No caso da película de Woody Allen, projectada também em sala frequentada por gente com nível de escolaridade elevado (servindo as elites da linha do Estoril) reparei que o público só começou a rir na parte final do filme, quando parece haver uma deriva temática e o enredo se centra na questão amorosa e nas duas hipóteses de casamento em aberto. A enérgica denúncia da credulidade, da crendice, da irracionalidade e da infinitude da estupidez humana que lhe está estruturalmente associada, o ostensivo gozar artístico com todas essas fraquezas ou deficiências do humano não é bem aceite e ainda menos assimilado. Provoca atitude reticente. Desde logo porque os espectadores são seres humanos – homo sapiens credulus, como talvez se devesse classificar com ganho de científico rigor.

A racional denegação do sobrenatural é uma construção complexa resultante de enorme investimento de esforço intelectual. É atitude artificial. A atitude natural, espontânea é a da crença no sobrenatural, nas forças do oculto, bem como o enamoramento pelo mistério, elemento sempre tão sedutor para a nossa mente, como se possuísse um certo magnetismo. Volto a sublinhar que o processo de vivência da crença no sobrenatural origina recompensa, no sentido psiquiátrico, psicológico ou neurológico do termo. Algo que é cinematograficamente bem explicitado pelos dois realizadores, Satyajit Ray e Woody Allen. Com o talento que lhes é reconhecido, ambos, de modo diferente mas igualmente bem conseguido, dirigem a câmara captando a essência da credulidade humana. Filmam a credulidade; dão-lhe expressão imagética, cinematográfica. Ray fazendo a câmara sobrevoar o espaço em que decorre a sessão do mágico, ou fazendo-a circular no meio da plateia, focando os rostos dos seres extasiados perante a actuação do Santo; Allen através dos planos em que capta o sorriso de ingénuo encantamento enchendo e iluminando o rosto da velha milionária deleitada com as supostas respostas do falecido marido ao seu rigoroso inquérito amoroso, não por acaso as exactas réplicas que ardentemente desejava escutar na sessão de espiritismo que decorre na sua mansão. Portanto, a troça irónica, o humor caustico que em ambos os filmes apimenta a intencional denúncia da fraude do “Santo” (o mágico) e da médium Sophie, em Magia ao Luar, denegando a existência das tão atraentes forças do sobrenatural, fere sensibilidades. Muitos espectadores sentem-se, de alguma maneira, postos em causa. Se não incorro em engano, o que lhes chega do ecrã provoca-lhes incómodo mental e inibe o riso; a vontade de soltar gargalhada não chega a despertar na sua alma de homo credulus. Uma das pessoas que me fazia boa companhia na ida ao cinema, no final, ao comentar comigo a ausência de riso e seus eventuais motivos, logo inteligentemente recordou o peso da cultura católica na nossa sociedade.

Tanto na esfera privada como pública, tenho visto ser endereçada uma enfática acusação a Woody Allen que pode ser resumidamente enunciada do seguinte modo: acreditar num espírita e na possibilidade de dialogar com os mortos é coisa completamente diferente da crença na existência de Deus, tal como ela se manifesta, por exemplo, no catolicismo (para apenas citar o caso da fé religiosa que nos é mais próxima). Na opinião destes opositores o realizador confunde dois tipos distintos de crença. Utilizando imagem em voga nestas nossas paragens, pode dizer-se que consideram existir a crença boa (religiosa) e a crença má (da magia, do espiritismo, da cartomancia, etc.), eventualmente fraudulenta.

Iludem-se os acusadores. Aquele sujeito que acredita na omnipotência de uma divindade pessoal, na vida para além da morte, na ressurreição de Cristo, nos milagres, nas aparições de Fátima (ou outras), na autonomia das almas que libertando-se do corpo ascendem ao céu paradisíaco ou tombam na profundeza do inferno, esse sujeito é sempre alguém que, independentemente da religião que professe, está naturalmente disposto a aceitar como verdade a hipótese de dialogar com os mortos, de voltar a poder comunicar com os seus entes queridos entretanto desaparecidos do mundo dos vivos. Esta disponibilidade mental (disposição intima, essencial) para acreditar em tudo isso sem exigência de provas ou de sólida fundamentação racional é necessária consequência da crença dogmática, da aceitação dos dogmas da sua Igreja, da sua religião, do seu culto, do seu Deus. Como seria possível aceitar o dogma da vida eterna (do mundo dos mortos contraposto ao dos vivos) e simultaneamente não aceitar uma qualquer possibilidade de falar com os mortos, de regressar ao convívio? Seria uma total contradição. Pois não é notório que fazendo fé na autenticidade da vida eterna os mortos não podem estar totalmente mortos? E assim sendo, a parte desse ser que se supõe permanecer viva para além do túmulo, a sua alma, ou o que se lhe queira chamar, será o elemento que intervém possibilitando o tal fantástico diálogo com o outro ausente; ausente do nosso reino, do aquém, mas presente no espaço metafísico do além. E neste contexto de problematização não resisto a evocar uma notícia que, quase diria por feliz coincidência, acaba de ser posta a circular pela comunicação social britânica, tendo formidável valor exemplificativo para a nossa reflexão: uma jovem inglesa enviava mensagens, SMSs, para o telemóvel da avó falecida em 2011, mas que, por vontade expressa, tinha levado consigo alguns objectos de uso pessoal, incluindo o seu telemóvel; com o profundo desgosto da perda do ente querido, a jovem decidiu continuar a escrever SMSs para a avó, sentido conforto nesse gesto de enviar mensagens para o telemóvel sepultado, dando conta das suas desventuras. Subitamente, este procedimento do foro privado ganha dimensão de notícia mundial. Porquê? Porque a jovem recebeu resposta da avó morta há mais de 3 anos! Milagre!! A mensagem da vovó era concisa mas incisiva e coerente. Dizia: “Estou a olhar por ti. Aguenta-te!” A neta ficou desnorteada, envolta num dilúvio emocional povoado de contradições, entre o espanto, o susto, a alegria, o medo, o não saber que fazer. Segundo confessa, passaram-lhe de imediato pela cabeça as coisas mais espantosas, fantasiou descontroladamente, aventando todo o tipo de hipóteses sobre as causas sobrenaturais, sobre as forças ocultas causadoras de tão assombroso acontecimento – o primeiro contacto de um morto com o reino dos vivos através de SMS. Uma fantástica modernização do hábito das almas do outro mundo. Tudo lhe passou pala cabeça excepto o óbvio: o número de telefone tinha sido entretanto atribuído a outra pessoa, essa bem viva, que, farta de receber lamúrias por SMS no seu telemóvel, resolveu responder. Faço notar que a jovem adulta que estava convencida de ter recebido o primeiro SMS do além, redigido por saudosa alma querida, é uma cidadã escolarizada de um país europeu representativo do topo da civilização humana do século XXI. A hipótese óbvia, a simples explicação racional chegou a essa mente, de uma saudável jovem cidadã do nosso maravilhoso mundo civilizado, em último lugar; e ao que julgo saber, trazida de fora, pela mão da companhia telefónica que se sentiu na necessidade de apresentar um formal pedido de desculpa pelos danos emocionais involuntariamente causados.

Na paisagem humana há uma clivagem profunda, uma ruptura mental essencial, mas que não se situa onde os acusadores de Allen a colocam – entre géneros de crenças. O que existe são dois tipos de seres humanos: os crentes (tipo A) e os cépticos (tipo B); os amigos do sobrenatural e os negadores do sobrenatural; entre aqueles em que predomina o instinto da ininteligibilidade (culto do mistério) e aqueles em que predomina o instinto da inteligibilidade (desvendamento do mistério). Há aqui profunda ruptura. Dois tipos distintos. Formatações mentais essencialmente diferentes. Se bem que, em abono do rigor, se deva adicionar a afirmação de que nenhum sujeito real é um puro tipo A ou um puro tipo B. Essas purezas absolutas não existem na paisagem humana real. Acrescente-se ainda que um dos tipos referidos, aquele a que chamei A, é, foi e, com enorme probabilidade, continuará a ser, por vasto tempo, esmagadoramente maioritário. E adivinhando poder haver quem suponha serem os ateus, todos eles, por definição, lídimos representantes do tipo minoritário (o tipo B), apresso-me a dizer ser essa uma outra ilusão frequente. Uma grande parcela (maioria?) dos seres humanos que se dizem ateus é, de facto, pertença da irmandade dos crentes; são sujeitos tipo A e não B, como vulgarmente se supõe. Porquê? Porque o ateu tradicional, o ateu dogmático é o mais puro crente: é um crente na não-existência de Deus. Um crente tão fervorosamente crente como qualquer outro crente obediente ao seu Deus, seguidor de uma fé religiosa. O ateu critico-racional, não dogmático, andando de braço dado com o espírito científico (com a Ciência) não tem nenhuma crença na não-existência de deuses, sejam eles quais forem. Para ele não se trata nunca de uma questão de crença, mas sim de uma questão de presença/ausência de prova efectiva, de fundamentação racional; de prova construída pela Razão e pelo experimentalismo que a materializa.

A meu ver, Woody Allen comete dois “erros” grosseiros. Coloco aspas para que fique bem claro não haver da minha parte intensão de atacar o realizador no plano artístico. O que ele faz é absolutamente legítimo. A realização de um filme é um exercício de livre criatividade artística e não um tratado filosófico ou científico, sendo por isso lícito o procedimento do realizador, as suas opções estéticas. A minha objecção crítica situa-se no estrito plano da ideação.

Em primeiro lugar, é passada a ideia de que um racionalista, um céptico, um adepto do espírito científico e da atitude critico-racional (atitude científica), um não crente, é por definição um ser frio, seco, despido de veia romântica, pobre de emoções, desatento e inábil nos terrenos do amor, das paixões. Essa ideia é um completo disparate. Trata-se, no fundo, de outra arreigada crença que por efeito da ignorância e da não menos omnipresente estupidez humana perdura mesmo anos depois de as neurociências terem demonstrado experimentalmente a relevância, ou melhor, a indispensabilidade das emoções na construção do juízo racional consequente (adaptado à realidade a que tem que dar respostas eficazes). Justo será recordar dever-se em grande parte a um cientista português, António Damásio (embora frequentemente citado em prestigiadas publicações como sendo americano, por ter sido nos EUA que pôde desenvolver o seu trabalho, usufruindo dos excepcionais meios técnico-financeiros e culturais disponibilizados por essa pátria), deve-se a esse cientista português o experimentalismo científico que nos legou as evidências da unidade sistémica complexa (sistema de sistemas) entre a bioquímica das emoções e a arquitectura neuronal, de natureza igualmente bioquímica, associada ao raciocínio lógico (Razão). A mente racional é efeito dessa unidade complexa. A disfuncionalidade da vertente emocional compromete de imediato a competência da Razão, impedindo ou dificultando (em função da grandeza da disfunção) a resposta comportamental adequada ao desafio colocado ao sujeito no quadro da sua inserção espácio-temporal na realidade mundana.

O bom e autêntico racionalista não é um ser apoucado de emoções. Não está refém dessa inflexibilidade, dessa rigidez mental observada no personagem do filme. Um racionalista possui os instintos de qualquer outro ser humano. A diferença é que, na combinação do inato e do adquirido, se desenvolveu nele em mais elevado grau o instinto racional, coisa que lhe permite estruturar as embriaguezes românticas, as raivas, as paixões desregradas, os impulsos irracionais, não se deixando enredar na crendice. Ai se alicerça o cepticismo crítico racional denunciador da fraude associada à crença no sobrenatural.

 O segundo “erro” grosseiro em que Woody Allen incorre está associado à já referida noção de recompensa: é a ideia que o filme acaba por fazer passar de que a fraude do sobrenatural, enquanto expressão do irracional, não passa, no fundo, de uma falsidade inofensiva. Se a velha viúva milionária fica feliz com as ilusões, mentiras, falsidades transmitidas pela médium e se a verdade só lhe podia causar tristeza, dor, desespero, então para quê a preocupação da denúncia da fraude? Se a ilusão é recompensadora, então tem, ao que tudo indica, algum efeito benéfico, não havendo razão para alarme nem se justificando a denúncia racionalista/céptica que até pode revelar-se inconveniente ao apagar a chama da recompensa. Claro que há ainda a vertente ético-jurídica do enriquecimento ilícito, da publicidade enganosa, da venda de gato por lebre, tudo aspectos menos relevantes para o nosso contexto analítico, que se pretende filosófico. Por isso os deixo de lado.

A primeira resposta para estas interrogações consiste em recordar uma regra ou princípio geral: o ser melhor ter-se conhecimento do que viver-se mergulhado na ignorância; verdadeiro e falso não têm a mesma cotação, seja no mercado do pensar ou no do agir. Este argumento chega a ser apresentado pelo personagem Stanley, o racionalista. Mas é insuficiente. O que se esconde por traz da crença no sobrenatural – isso a que costumo chamar irracionalidade à solta –, assim como as forças envolvidas nas prolixas acções da pseudociência constituem, no seu todo, um enorme perigo e uma seriíssima ameaça civilizacional. O que nas duas películas é simbolizado pelas figuras do Santo e da médium Sophie, é aquilo a que ao longo de anos tenho insistido em chamar cultura da confusão. A sua acção injecta confusão no corpo societal. Esse sistemático cultivo da confusão actua como um vírus causador de patologia. A confusão faz com que a sociedade adoeça. Daí que ela nunca seja inofensiva, benigna, nem mesmo mal menor. É sempre um perigo maior. Porque a confusão asfixia a liberdade e fertiliza a dependência.

Como escrevi num ensaio publicado há mais de dez anos, essas acções que injectam confusão favorecem «invariavelmente as ambiências propiciadoras da obediência e do consentimento». Significa isto que desempenham relevantíssima função político-ideológico-prática em prol dos poderes instituídos ou concorrendo para a edificação e afirmação de novos poderes obstrutores da autonomia e do esclarecimento.  

Sendo dois manifestos cinematográficos contra o por mim designado de irracional à solta, na sua tradicional associação com a crença no sobrenatural, as obras de Satyajit Ray e Woody Allen, com a inteligência que caracteriza o trabalho destes dois cineastas, não deixam de pôr em evidência certos limites da racionalidade, bem como também uma arrogância, uma soberba, uma inflexibilidade não infrequentemente presentes na atitude de intelectuais do tipo B. Ray fá-lo de forma mais subtil e exigente para o espectador, recorrendo a objectos, ao jogo de xadrez, aos livros, a ambientes interiores, etc.; Allen explicita, na figura de Stanley, um certo snobismo racionalista, acentuadamente British, a que o generoso talento de Colin Firth dá corpo.

Há múltiplos motivos para ir ao cinema ver estes dois filmes; e até há suficientes ingredientes justificativos de uma certa obrigatoriedade ou dever artístico-cultural de os conhecer. Mas quero acentuar outra razão para a dispensa de cuidada atenção a estas obras, razão porventura até mais relevante do que todas as outras, se bem que inseparável do valor estético: é que estas duas criações da sétima arte inserem-se de corpo inteiro no monumental projecto emancipador da Aufklärung, assumindo os autores a consciência da necessidade histórica e civilizacional de o concluir. O gesto cinematográfico é, nestes dois casos, um intencional investimento de esforço intelectual para, como diria essa personificação da Aufklärung chamada Ludwig Feuerbach, transformar os seres humanos fazendo-os passar da condição de crentes à de pensadores – caminhando da situação de dependência rumo à não-dependência. Assim se esculpe o Homem que é pessoa completa.

 

João Maria de Freitas-Branco

Outubro de 2014

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Exausto de tanta vilania


Já não há jornada em que sobre nós não se abata revoltante escândalo, abjecta indecência ou intolerável imoralidade. Tudo isso se banalizou -- o escândalo, a falta de decência, a imoralidade, a baixeza. E com isso, o ambiente pátrio devém cada vez mais insuportável para a pessoa de bem. O caso de hoje (dia 8 de Outubro) foi o do silenciamento do Baptista Bastos. Os novos poderes agora instalados no Diário de Notícias puseram fora do jornal uma das já poucas vozes livres e de límpida lucidez crítica presentes na nossa imprensa. Todas as quartas-feiras, na coluna que assinava, o Baptista Bastos não só incitava o leitor a pensar, como também, com seriedade, profundeza e generosa inteligência crítica, nos ajudava a pensar bem; a pensar melhor. Como se pode admitir o apagar de tão enriquecedora prosa?! A aguda crise civilizacional em que nos afundamos, entre outras coisas, caracteriza-se precisamente pela ascensão do homem-massa de que Ortega y Gasset nos falou; ser que não pensa, que aprecia a embriaguez, que execra o sério, o profundo, o difícil, o esforço, a nobreza do espírito racional e se compraz na superficialidade, na futilidade, no vazio, no irracional, no gosto pela cretinização, no culto dos prazeres imediatos associado a uma néscia infantilização.

A presença do Baptista Bastos nas páginas do DN era um antídoto contra este decaimento cultural e civilizacional.

No seu último artigo, intitulado “Ponto final”, Baptista Bastos despede-se dos leitores dizendo: «Fui posto fora, mas não das palavras. Vou com elas, velhas amantes, para aonde haja um jornal que as queira e admita a indignação e a cólera como elementos de afecto, e sinais de esperança, de coragem e de tenacidade.» Vai, vai depressa, meu bom Amigo, na companhia dessas magníficas amantes tuas (nossas), para lugar aonde possas rapidamente voltar ao convívio com os leitores agora deixados órfãos e acarinhar mais ainda as amantes no continuado esforço do espalhar de luz. Não pares!

Exausto de tanta vilania mas jamais rendido, aqui expresso a minha activa indignação face à mediocridade indecente da decisão agora tomada pela gentalha que parece ter tomado conta do Diário de Notícias e endereço afectuoso abraço de solidariedade ao BB.

João Maria de Freitas-Branco

Caxias, 8 de Outubro de 2014

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O DEUS DE HAWKING


A realidade prática demonstra à exaustão que sempre que um cientista utiliza a palavra “deus” se gera imediata confusão. Aparece logo um enxame de crentes a declarar que se fulano (o cientista a, b ou c) falou de deus é porque, evidentemente, acredita na existência de deus, sendo que cada um dos opinantes dá de barato que esse deus é o seu, ou seja, só pode ser aquele em que ele acredita e nenhum outro dos mais de dois mil deuses criadores historicamente recenseados. Invariavelmente nenhuma justificação é dada para essa curiosa convicção, embora seja fácil concluir ser essa automática identificação da divindade natural resultado facto (quase sempre ignorado) de, no quadro das modernas religiões monoteístas, os crentes serem refinados ateus em relação à hipotética existência de todos os outros deuses, os associados a religiões que não professam. A forma como ao longo de décadas o pobre Einstein tem sido constantemente violentado e arrebanhado como homem cheio de fé cristã, como pessoa crente na existência do deus do catolicismo é o mais paradigmático exemplo de como a palavra “deus” na boca ou na pena de um cientista prestigiado semeia confusão e abre caminho a interpretações abusivas e deturpadoras do significado das asserções produzidas. Conhecedor desses tradicionais maus tratos, e antes que a morte o leve, Stephen Hawking resolveu pôr travão às falsas interpretações do seu pensar.

Então, para definitivo esclarecimento do que pensa Stephen Hawking sobre os deuses criadores temos agora a sua mais recente entrevista. Útil esclarecimento, uma vez que algumas mentes menos abonadas de inteligência não entenderam o que o cientista quis dizer ao referir, numa das suas obras, "a mente de Deus". Aqui fica, na versão castelhana original, a resposta do notabilizado cientista contemporâneo à habitual pergunta sobre a existência de deus:

«En el pasado, antes de que entendiéramos la ciencia, era lógico creer que Dios creó el Universo. Pero ahora la ciencia ofrece una explicación más convincente. Lo que quise decir cuando dije que conoceríamos 'la mente de Dios' era que comprenderíamos todo lo que Dios sería capaz de comprender si acaso existiera. Pero no hay ningún Dios. Soy ateo. La religión cree en los milagros, pero éstos no son compatibles con la ciencia».

Muito claro. No entanto, por uma questão de rigor, considero que o ateísmo enraizado no autêntico espírito científico não deve produzir asserções como "não há nenhum Deus" -- a usada por Stephen Hawking na citada entrevista concedida ao El Mundo e publicada na edição de 21 de Setembro deste conhecido jornal espanhol (entrevista logo traduzida para português e também publicada entre nós, na edição do semanário Expresso do passado dia 27 de Setembro). Um ateu não é um crente na não existência de deuses demiúrgicos. Para o ateu, não se trata de uma questão de crença. Deixo aqui este reparo crítico à linguagem utilizada pelo prestigiado cientista, sem que isso fira a concordância (a minha afinidade) com o essencial do conteúdo discursivo. E já que aqui estou, adiciono um outro reparo crítico: desta feita ao comentário de Carlos Fiolhais à referida entrevista (publicado no Expresso online). Diz ele que «hoje sabemos que no início do Big Bang há uma transição da não-existência para a existência. Passa-se do nada para o ser.» Para além da falta de rigor ou fundamento científico, esta afirmação peca também pelo facto de ser um perigoso convite à confusão, quando exactamente o que temos de combater é a manifestação da cultura da confusão, sermos agentes da anti-confusão. Há muitos, muitos anos atrás um grande grego chamado Aristóteles deu esclarecedora (e talvez definitiva) resposta a esta questão: do nada só pode surgir o nada.

João Maria de Freitas-Branco

Caxias, 6 de Outubro de 2014

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Concerto para Cravos e orquestra

Aqui ficam, ao cuidado dos melómanos interessados, os textos que redigi, a convite da direcção da Festa do Avante, sobre o concerto de abertura da próxima Festa (dia 5 de Setembro, às 22h), espectáculo comemorativo do 40º aniversário da Revolução de Abril. O prosa completa (incluindo os textos biográficos sobre os compositores) foi publicada num caderno que saiu com a edição do jornal Avante do dia 10 de Abril de 2014.




OBRAS

 

TEXTO 1

CHOPIN / GLAZUNOV: Polonaise, op.40, nº1, “Militar”, em Lá Maior.

 

A forma musical designada por polonaise (termo francês que designa o ser “polaco”) tem imediata e profunda conotação patriótica, pelo que não será de estranhar a escolha desta obra para iniciar um concerto evocativo de um dos actos mais patrióticos da nossa história: a Revolução dos Cravos. Na sua origem, bem recuada no tempo, a polonaise é uma dança processional polaca que tradicionalmente acompanhava cerimónias públicas ou casamentos, tendo muitas vezes uma componente vocal e podendo ser também uma peça instrumental. Composta por músico polaco com apelido tão afrancesado como a própria denominação da obra, esta peça espelha bem um momento de particular entusiasmo patriótico, sendo uma representação musical da valentia da cavalaria da Polónia e da sua determinação na defesa do solo pátrio. Daí o facto de também ser chamada e conhecida por “Militar”. É, por isso mesmo, uma construção sonora enérgica, de grande pujança e brilhantismo, em que cada nota transmite um claro sentimento de optimismo.

Foram muitíssimos os compositores que se dedicaram à composição de polacas, desde Bach e Telemann até Scriabin. No entanto, nenhum outro contribuiu tanto para a sua fama como Frederic Chopin, o que desde logo se compreende pelo facto de ser ele o mais notabilizado compositor polaco. Mas foi através do seu instrumento predilecto, o piano, que Chopin deu esse relevo à polonaise. Nem mesmo no caso vertente, em que o propósito de enaltecimento patriótico e a dimensão marcial parecia aconselhar o recurso a um vasto conjunto de instrumentos, a uma orquestra sinfónica, nem mesmo isso demoveu o compositor de se manter fiel ao seu adorado piano. Escutado o resultado estético compreende-se a opção. Mas o que ouviremos no concerto inaugural da 38ª edição da Festa do Avante não é essa versão original para piano solo, que Chopin criou pouco tempo antes da sua partida para Maiorca na companhia de Sand, local onde irá viver um momento crucial da sua vida: aquele em que os médicos da ilha lhe diagnosticaram tuberculose. É impressionante o contraste entre as duas polacas compostas nessa época; o contraste entre o já referido optimismo transbordante da op.40, nº1 e o estado de espírito musicalmente traduzido na partitura da nº2 (há duas polonaises com o mesmo número de opus), composta já depois do surgimento dos primeiros sintomas da doença fatal. A passagem do modo maior para o modo menor  (tonalidade de Dó menor, na nº2) é, só por si, um indicativo da profunda alteração do estado de espírito do músico. Aconselho aos que desejem ser espectadores do concerto da Festa do Avante que escutem antes a composição original, recorrendo a um registo discográfico (uma edição em CD) ou então utilizando modernos meios informáticos agora postos ao nosso dispor, como o YouTube ou outros sítios da Internet.

No início do século XX, 60 anos depois da morte de Chopin, coube ao compositor russo Glazunov a tarefa de orquestrar a peça para piano. É essa versão para orquestra que será executada no concerto. Isso ajudará a melhor fruir o espectáculo ao vivo.

Se a polonaise tem, como vimos, uma ligação umbilical com a dança, foi também a dança que esteve na origem do trabalho de orquestração de Glazunov. Tudo terá começado com o bailarino e coreógrafo Mikhail Fokine, figura marcante na renovação do reportório de bailado, que em 1907 tomou a iniciativa de coreografar uma peça de Chopin (a Valsa, op.64, nº2), oferecendo-a ao talento da celebérrima bailarina Anna Pavlova. Incentivado pelo sucesso obtido, Fokine utilizou outras duas peças para piano do compositor polaco, apresentando-as sob o título Danses sur la musique de Chopin (Danças baseadas na música de Chopin) e destinadas agora a um corpo de ballet. Foi a partir destas experiências que nasceu o bailado “Chopiniana”, com 5 peças de Chopin orquestradas por A. Glazunov. Teve estreia em S. Petersburgo, no conceituado Teatro Mariinski, a 19 de Fevereiro de 1909. Entre o público presente estava Serguei Diaghilev que logo decidiu levar o espectáculo para Paris, para ser apresentado nos seus “Ballets Russes”. Foram acrescentadas mais três orquestrações de Glazunov e o espectáculo estreou no Teatro do Châtelet no dia 2 de Junho desse mesmo ano. Só que o título “Chopiniana” foi abandonado, acabando por cair no esquecimento. Razão pela qual essa produção de Diaghilev, com música de Chopin orquestrada por Glazunov, coreografia de Fokine e guarda-roupa e cenografia de Alexeandre Benois é hoje mundialmente conhecida pelo nome com que então foi baptizada, na Cidade Luz: Les Sylphides.

A orquestração da polonaise op.40, nº1, corresponde à primeira parte do bailado em um acto Les Sylphides, mas em algumas produções mais recentes tem vindo a ser substituída por outra peça da autoria de Chopin – o Prelúdio em Lá maior
 

 

 
TEXTO 2

BEETHOVEN: Sinfonia nº3, op.55 – 1º Andamento

 

Como tem sido assinalado pela generalidade dos historiadores e musicólogos, a terceira das nove sinfonias compostas por Beethoven representa um ponto de partida; ou seja, o mesmo será dizer que protagoniza uma profunda ruptura com o passado. Nas suas duas primeiras criações deste género o compositor mantém-se fiel ao modelo clássico representado por Haydn, limitando-se a procurar desenvolver essa forma sinfónica preexistente. Mas quando em 1803 se lança no trabalho de composição desta sua 3ª sinfonia, a atitude assumida é radicalmente diferente. Nesse sentido, podemos dizer ser esta a primeira sinfonia autenticamente beethoveniana. A dimensão dos seus quatro andamentos, bem como a grandeza e a pujança da sua arquitectura sonora não têm precedentes na história da música. Nunca antes se tinha composto uma sinfonia tão longa. O facto de ter começado por ser dedicada a Napoleão, figura que começou por despertar no músico uma enorme admiração, não pode ser olhado como algo separado da intenção do gesto criativo. Bem pelo contrário. A dedicatória inicial – depois apagada – faz parte de uma totalidade estética essencial. É elemento constitutivo da essência da arte beethoveniana. Porque, talvez como nenhum outro, este arquitecto de sons tinha a profunda convicção de que a música podia e devia celebrar um conjunto de valores e ideais humanos, assumindo-se dessa forma como relevante factor de consolidação do crescimento civilizacional e do humanismo. A alma desta partitura sinfónica só pode ser completamente assimilada, compreendida, à luz desta convicção pessoal do autor. A grandiosidade sonora que nos é presente é um hino à coragem e ao poder imenso do espírito humano. Valores que, na época em que escreve esta página sinfónica, Beethoven vê personificados na figura emblemática do político revolucionário, do estadista, do chefe militar que é Napoleão, por si reconhecido como “libertador da Europa”, transportando com a força da espada os ideais emancipadores da Revolução Francesa. Fácil entender, portanto, a designação de “Heróica”, “Sinfonia Heróica”. Aliás o compositor terá chegado a pensar utilizar o nome Bonaparte num subtítulo. Se o tivesse feito, provavelmente hoje estaríamos a falar da Sinfonia Bonaparte. Recorde-se que Beethoven e Napoleão eram exactamente da mesma geração; quase nasceram no mesmo ano.

A partir de um esboço realizado em 1802, a composição da obra estendeu-se por mais de um ano, entre a Primavera de 1803 e o mês de Maio de 1804. Supõe-se que tenha sido executada pela primeira vez em ambiente privado, em casa do príncipe Lobkowitz, digno patrono das artes e grande admirador/protector de Beethoven, a quem, por fim, a obra seria dedicada, depois de raivosamente apagado o nome de Napoleão por efeito da decepção causada pelo facto histórico – imortalizado em uma célebre tela de David (de grandiosidade curiosamente semelhante à da sinfonia beethoveniana) – de o seu herói se ter feito coroar imperador, espezinhando, na óptica do músico, os ideais da Revolução Francesa e passando de herói libertador a vulgar tirano.

A estreia pública ocorreu no dia 7 de Abril de 1805, em Viena, no Theater an der Wien, sob a batuta do compositor. Data marcante na história da arte dos sons. A cidade de Viena, já tão associada à história da forma sinfonia, reforçava assim esse elo.

O 1º andamento (o único que será escutado no concerto de abertura da Festa do Avante), um Allegro com brio, inicia-se com dois acordes de magnífico efeito a que se segue o primeiro tema, inicialmente apresentado pelos violoncelos e logo depois exposto também pelos violinos e pelas violas. Delicioso o diálogo, com curtíssimas frases musicais de apenas 3 notas, entre o oboé, o clarinete, a flauta e os violinos, sucedendo-se depois o primeiro tutti de grande pujança em que sentimos a imponência dos sopros de metal (trompas e trompetes), em número superior ao que era regra até então. Repare-se nos largos acordes sincopados, muito vigorosos, de modo a transmitir a pretendida imagem de heroísmo. O desenvolvimento é de uma riqueza, variedade e extensão absolutamente surpreendentes para a época. Beethoven não teme o investimento na complexidade da estruturação do discurso musical, o que só por si convoca uma exegese que em muito extravasa o escopo do presente texto. De notar, no final, o reaparecimento do motivo inicial, nas trompas, culminando depois no vigoroso brilhantismo do som do colectivo da orquestra. Uma autêntica obra-prima. Um exemplo de genialidade. Se bem que no momento da estreia os críticos não se tenham apercebido disso e tivessem feito juízos depreciativos. A novidade que rompe, provoca cegueiras. Hoje, essa força do génio faz-nos acreditar no poder que o Autor de Fidélio atribuía à Música, mesmo quando desacompanhada da palavra.

Não quero deixar de chamar a atenção para algo que, a meu ver, lamentavelmente sempre vejo ser ignorado. Refiro-me ao facto de a dimensão revolucionária da escrita musical beethoveniana só poder ser cabalmente entendida, fundamentada e justificada se tivermos em conta factores de natureza não musical nem mesmo artística que de modo radical afectaram a sonoridade da vida quotidiana, principalmente a urbana, por efeito directo ou indirecto do surgimento da máquina a vapor, representando um novo paradigma da técnica, bem como do extraordinário desenvolvimento da ciência e das suas várias aplicações técnicas. Nessa medida, a meu ver, importa acentuar, mesmo correndo o risco de alguma simplificação excessiva, que a sinfonia beethoveniana, ao romper com o quadro da sinfonia clássica que teve em Haydn e Mozart os seus cumes estéticos, essa sinfonia de novo tipo que nasce com os primeiros acordes da Heróica, é a expressão artística da primeira fase da Revolução Industrial, um equivalente estético da ambiência sonora semeada pela ciência e pela técnica no seio das sociedades humanas mais desenvolvidas no dealbar dos anos Oitocentos.

 

 

TEXTO 3

SCHUMANN: Concerto para quatro trompas e orquestra, op. 86

 

Ver inserido no programa de um espectáculo uma peça orquestral em que à trompa seja atribuído principal protagonismo, aparecendo o trompista como solista, já é algo raro; mas peça para quatro trompas e orquestra é coisa raríssima, causando estranheza até mesmo a melómanos experientes. O desequilíbrio entre o acolhimento dado pelos criadores musicais ao violino ou ao piano e o acolhimento dado à trompa é enorme. Daí que este opus 86, mesmo tendo a assinatura de um Schumann, seja partitura pouco conhecida, raramente executada e até exótica – sendo que há fundamento objectivo para o referido desequilíbrio. Mas se estivermos a falar com um trompista, bastará pronunciar a palavra Konzertstück (primeira palavra que compõe o título original, em alemão) para que ele de imediato saiba de que obra se trata e quem é o compositor. Essa familiaridade resulta do facto de esta composição representar um momento muito relevante na afirmação do instrumento trompa, chamando a atenção para as inovações técnicas introduzidas no início dos anos Oitocentos.

Em linguagem actual, diríamos que esta obra é a concretização de uma acção de marketing em defesa da trompa. Pondo em evidência a evolução técnica geradora de novas capacidades de execução, permitindo que fossem tocadas notas da escala antes impossíveis para esse velho instrumento. Nesse sentido, é uma obra de propaganda. O seu perfil alegre, optimista, afirmativo satisfaz esse propósito. Uma manifestação de fé no próspero futuro do instrumento.

Para melhor compreendermos a génese desta obra rara afigura-se-me útil um breve olhar sobre o passado, recuando ao século que antecedeu o de Schumann. Vamos encontrar aí nobre excepção à regra de fraco acolhimento, a que comecei por fazer referência: nas obras para trompa compostas por Mozart e Francesco Rossetti na segunda metade do século XVIII. Se as deste cedo caíram no esquecimento, as daquele definiram um padrão para o instrumento. Mas nesse tempo – e eis aqui o mais importante – o instrumento não podia produzir todas as notas da escala, estando limitado apenas a algumas. Tratava-se de uma impossibilidade física, e também de uma limitação técnica que os melhores executantes desse tempo tentavam superar, sem grande sucesso, através do modo peculiar e estranho como o instrumento é segurado nas mãos (com a introdução da mão na campânula ou pavilhão). Ainda não tinham sido inventadas as válvulas. Só nos anos de 1810 surgiram as primeiras trompas de válvulas, mas por vários motivos foram mal recebidas tanto pelos compositores como pelos intérpretes.

Assumindo-se como espírito moderno, inovador, e representante das novas tendências musicais, Schumann aceitou com entusiasmo o desafio, procurando criar uma peça que explorasse ao máximo todos os recursos do instrumento renovado. Em consequência disso, também os intérpretes são aqui postos à prova, em virtude das dificuldades de execução que lhes são colocadas. Há momentos de grande virtuosismo e bravura em que Schumann quis tirar todo o partido das novas válvulas, “esticando” em todas as direcções, levando o instrumento a fazer o que antes era impossível fazer

Este concerto foi escrito em 1849, que foi, no plano composicional, o ano mais produtivo da vida de Robert Schumann. Criou nesse período mais de três dezenas de obras importantes, se bem que o seu estado de saúde mental se estivesse a deteriorar rapidamente.

O primeiro e o último andamentos são os mais virtuosísticos e, por isso, também os mais vistosos. Exemplo disso é a vibrante e enérgica fanfarra inicial com que as 4 trompas sobem à ribalta, após dois curtos acordes da orquestra. Fica dado o mote. No entanto, e talvez contrariando a reacção mais habitual dos públicos, parece-me a mim que o melhor da partitura está no andamento menos virtuosístico: o 2º, Romança. Sente-se aí o autêntico Schumann, o da sensualidade lírica do universo do Lied romântico. 

 

 

 

TEXTO 4

MOZART: Sinfonia nº 40, em Sol menor, K. 550

 

O programa do concerto a que estas notas se referem introduz uma inversão histórica, fazendo escutar primeiro o que na sequência cronológica da história da sinfonia só surgiu depois. Isso deve-se à circunstância de a partitura mozartiana, ao contrário da beethoveniana, ir ser escutada na íntegra, adquirindo assim o direito de ocupar o lugar de honra, encerrando o espectáculo. Mas essa inversão não vai retirar ao espectador a possibilidade de aproveitar este concerto para poder dele retirar alguns ensinamentos sobre a história da forma musical conhecida sob a designação de sinfonia. Desejo acreditar que esta breve nota possa constituir um modesto contributo para essa aquisição cognitiva.

A sinfonia (termo de origem grega que significa literalmente “com som”) nasceu no século XVII e caracteriza-se por ser uma peça composta exclusivamente para orquestra (norma que muito mais tarde, já no século XIX, irá ser violada), sendo habitualmente organizada em 3 ou 4 andamentos.

De um modo geral, a sinfonia foi considerada a forma nuclear, e nesse sentido a mais importante, da chamada composição orquestral. No século XVII o designativo foi utilizado com alguma falta de rigor, acabando por se ver aplicado a obras de tipo muito diferente. Deixemos de parte essas dificuldades terminológicas que as pessoas de expressão inglesa resolvem com mais facilidade jogando com uma nuance ortográfica que possibilita o uso diferenciado de duas palavras gémeas: “sinfonia” e “symphony”. A partir das aberturas de ópera italiana da última metade dos anos Seiscentos, principalmente nas cidades de Viena e Mannheim (dois grandes centros da cultura musical desse tempo), mas também em outras cidades (Londres, Paris, etc.), vários compositores começaram a desenvolver a “nova sinfonia”, também designada por sinfonia vienense. Estas composições inauguram um novo rumo que vai conferir autonomia à forma sinfonia, libertando-a da esfera do teatro musical, assim como da música de câmara. Com o concurso de músicos hoje, para o chamado grande público, quase totalmente caídos no esquecimento, só conhecidos dos especialistas, como Vanhal, Dittersdorf, Michael Haydn (irmão mais novo de Joseph Haydn) ou Hofmann, surge a sinfonia clássica ou sinfonia clássica vienense, em que prevalece a organização em 4 andamentos. Haydn (o Joseph) e Mozart vão ser os expoentes máximos dessa forma. A nº 40 que ouviremos é modelar exemplo de sinfonia clássica.

Depois de ter estado na presença da “Heróica” até o espectador totalmente não iniciado poderá percepcionar algumas diferenças essenciais. Sugiro que comecem por contar o número de instrumentistas em palco. Depois contem, p. e., o número de trompetes. Terão a surpresa de verificar que na obra de Mozart não há nenhum para contar, tal como também não há timbales. E trompas são só duas. Atenção: escrevo isto desconhecendo as opções do maestro que, considerando as particularidades do local em que o concerto se vai realizar, pode decidir, legitimamente, acrescentar instrumentos de modo a conseguir obter maior volume de som. É claro que nunca passou pela cabeça do Sr.Mozart a hipótese de qualquer das suas sinfonias ser executada ao ar livre com a presença de mais de 20 mil espectadores! Isto levanta um problema. Mas antes de o abordar, sugiro uma última contagem: a da duração da obra em comparação com a anterior sinfonia beethoveniana. Enquanto a nº40 dura pouco mais de meia hora, a Heróica (completa) andará pelos 50 minutos. Portanto, quase o dobro.

Não se julgue, porém, que por utilizar uma orquestra substancialmente mais pequena Mozart fica atrás de Beethoven no plano dos efeitos estético-emocionais obtidos. A sinfonia em Sol menor, a penúltima da lavra do Músico de Salzburg, é aquilo a que costumo chamar um cume estético. É, desde logo pela sua profundidade dramática e emocional, uma das obras mais admiráveis jamais compostas. Se, no geral, os psiquiatras e psicólogos no activo tivessem maior cultura musical, estou em crer que seria habitual vê-los utilizar esta partitura como forma de abordar com os seus pacientes o complexo problema da vivência/gestão das emoções nas profundezas do eu singular, assim como no quadro das relações intersubjectivas. Pelo meu lado, como filósofo, tenho procurado utilizar esta obra como factor de melhoramento da vida concreta dos seres humanos, pois é essa a principal função da filosofia: proporcionar bem-estar; gerar aquilo a que os franceses, gozando do charme do seu idioma, chamam le bonheur.

Escutem com a máxima atenção e sintam como a angústia humana é musicalmente traduzida, como é espelhada em subtil harmonia musical logo a partir dos primeiros compassos. O tema do Andante (2º andamento) não é menos intenso. É mais uma página pungente. E não se deixem iludir pela energia do alegro assai final que pode parecer anular as tensões num movimento de libertação, de abandono da ansiedade, da angústia, do medo lancinantes. No desenvolvimento, neste andamento final, Mozart cria extraordinários efeitos de tensão dramática que nos deslumbram ao mesmo tempo que nos comovem profundamente.

Que teria feito este tão extraordinário Wolfgang se tivesse podido escutar a “Heróica”? Uma excitante dubitativa que de modo recorrente me assalta a alma.

Regressemos ao problema da audição. Esta sinfonia em sol menor não pode ser bem fruída, em todas as suas dimensões (estéticas, técnico-musicais, filosóficas, psicológicas, etc.) num recinto como o da Quinta da Atalaia. Tem que ser escutada em espaço mais íntimo, mais pequeno, com outras condições acústicas, para que todos os detalhes possam ser percepcionados. Não se veja aqui uma crítica. Há que entender ser outra a função prioritária de um espectáculo de massas como o da Festa. Pretende-se que esta presença da obra gigante diante de sensibilidades não iniciadas, que, por ventura, em muitos casos, nunca antes com ela se cruzaram “ao vivo”, pretende-se que esse contacto directo com a grande obra de arte musical possa, de algum modo, desencadear no espectador a vontade de a revisitar, nascendo assim o hábito de a escutar na sala de concertos, com condições acústicas mais adequadas, ou através de gravações discográficas – pelo que, para o caso vertente, aqui deixo uma sugestão: Edição Deutsche Grammophon, colecção “The Originals”, sob a direcção de Karl Böhm e com a Orquestra Filarmónica de Berlim.

 

 

 

quinta-feira, 26 de junho de 2014

ABSTENÇÃO OU O RETORNO DO MAL


ABSTENÇÃO OU O RETORNO DO MAL

Em busca de um significado profundo como resposta crítica a um colunista

 

O acto eleitoral europeu do passado dia 25 de Maio foi o último grande acontecimento de uma alarmante sequência de factos demonstrativos dos agigantados perigos que sobre nós pairam. Só a título de exemplo, recordo que um partido alemão (note-se bem) que em campanha eleitoral apregoou que “a Europa é um continente branco” e colou cartazes onde se lê “dá-lhes gás” passou a estar representado no Parlamento Europeu, tal como o Jobbik húngaro, o Aurora Dourada, da Grécia, ou a triunfante Frente Nacional francesa, unidos em torno dos mesmos ideais.

Quem tenha o salutar hábito de aprender com a história, libertando-se de limitações pretéritas, mais atormentado estará, pois sabe, como Albert Camus – esse paradigma do pensamento autónomo – «que o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca». Nietzscheanamente inspirado, o filósofo contemporâneo Rob Riemen fala do «eterno retorno do fascismo».

Afigura-se-me já assaz exuberante o processo de reanimação dos agentes daquilo a que Hannah Arendt começou por chamar mal radical, e a que depois, em esforçado gesto autocrítico (gesto, por sinal, pouco atendido pelos seus leitores), preferiu designar como mal extremo, esse, sim, compatível com a banalidade por ela conceptualizada a partir da figura do oficial nazi Adolf Eichmann.

Mas vejo agora que me iludo na suposição dessa exuberância. A visibilidade que julgava existir parece afinal não ser assim tão visível, tão efectiva. Isso exponencia o meu estado de séria apreensão. Uma evidência, paradoxalmente, pode não ser vista. Por cá, p.e., não é verdade que, depois de o governo PSD/CDS ter posto em marcha uma política descaradamente imoral -- de traição de promessas, de mentira, de pilhagem, de agiotagem, de injustiça social, de desavergonhada submissão aos interesses do capital financeiro e da especulação –, não é verdade que cerca de 28% dos votantes apoiaram a Aliança Portugal? Não pretendo rotular os nossos governantes de nazis, mas a política austoritária transporta em si o mal, abrindo caminho à sua radicalização, podendo extremá-lo.

Mas há coisa ainda mais grave, e isso me motiva a escrever. Porque os 28% talvez tenham explicação atenuadora no défice de cultura política, nos efeitos da sempre presente demagogia ou até, talvez, no puro masoquismo; havendo, além disso, o peso dos sofisticadíssimos mecanismos de construção das ideias comuns (do pensamento dominante), complexo esforço de arquitectura ideológica.

Qual é essa gravidade maior? Colho exemplo dela nas páginas de um jornal de referência: o PÚBLICO.

Um respeitável colunista desse jornal, João Miguel Tavares (JMT), pessoa da nova geração que regularmente exibe inteligência, cultura e bom senso, veio declarar que a monumental abstenção eleitoral registada nada tem de preocupante. E explica: «Não votar […] significa invariavelmente que vivemos numa sociedade pacificada, em que nada de realmente fundamental se joga em cada eleição. Não ir votar é um gesto típico de uma democracia consolidada, em que nos podemos dar ao luxo de deixar nas mãos dos outros a decisão do voto»(PÚBLICO, edição de 27/5/14).

Confesso que estas afirmações me põem os cabelos em pé. Democracia consolidada?! Esta democracia esvaziada de Povo? Onde está a solidez quando já nem sequer há democracia plena? Por mera coincidência, na mesma edição do PÚBLICO saiu artigo de minha lavra em que enuncio o problema do quórum das eleições. Deixo por isso de lado essa questão. O que hoje aqui me traz é, porventura, um problema de ainda maior grandeza e centralidade: o da dificuldade de assimilação/consciencialização do retorno do mal, tratado por Hannah Arendt, mesmo quando nos situamos na esfera exclusiva das elites – espaço que se supõe abonado de cultura, de conhecimento político, informação, inteligência. A gravidade da questão é imensa, convocando a mais cuidada atenção.

Diante do mesmo fenómeno (a abstenção) vê JMT o que eu não vejo e não vê o que eu vejo. O que a ele tranquiliza, a mim apoquenta.

Terá JMT lido o que o lúcido Thomas Mann escreveu na antevéspera do culminar de um mal extremo nunca antes (nem depois) visto na história da humanidade? Não existirá alguma alarmante semelhança entre o que se passou nesses anos 30 do século dos extremos e o insinuante processo de reestruturação da barbárie a que agora quotidianamente vamos assistindo? A minha já imensa preocupação expande-se mais ainda perante o facto de uma mente temperada de generosa inteligência e politicamente cultivada poder não conseguir ver o essencial, inibindo assim a acção preventiva contra o retorno da peste. Não ver, no caso vertente, que por traz da abstenção está o triunfo da mentalidade kitsch, o primado da superficialidade, a cultivação sistemática da superficialidade, da alegria pateta, a tão em voga idiotice do “temos que ser positivos”, o alheamento da seriedade do viver, o permanente resvalar para o hábito de não pensar (a lacuna de Eichmann), de não se deter nas coisas essenciais, profundas, o apego ao soft e ao efémero, o vício da embriaguez, no grave sentido atribuído por Thomas Mann ao termo, espécie de adição psiquiátrica individual e colectiva que concorre para «libertar o Eu do pensamento, da verdade da moral e da razão». É este o despautério em que estamos e que dia a dia se agrava, semeando horror.

A abstenção não é um mero facto político conjuntural. O seu significado fundamental vai muito para além da imediatez política. Ela é um dos sintomas deste decaimento que gera uma sociedade deficiente. E o que é uma sociedade deficiente? É uma sociedade apoucada de civilização! A compreensão profunda desta minha noção radica nas páginas mais esquecidas da obra do grande Charles Darwin, como aqui e em outros lados tenho insistido em revelar. Portanto, a abstenção não é coisa simples; não pode ser tratada como mero fait-divers. A meu ver, e se muito não erro, o primeiro defeito do comentário que aqui critico reside em não avistar esta complexidade mais profunda que acabo de sucintamente referir, constrangido pelos limites de espaço.

Estarei a ser demasiado alarmista? Estarei enleado em medos ilusórios? Padecerei de alucinações políticas, maleita aliás historicamente nada infrequente? Preferia poder admitir ser meu o defeito e estar a verdade do lado da “tranquilidade” advogada no escrito que critico; mas, despido de vaidade ou de qualquer orgulho presunçoso, receio bem que a verdade esteja mais do lado de cá: o dos meus medos alegadamente ilusórios. Uma coisa tenho como certa, e nisso espero que JMT esteja concordante: é que, como escreveu Edmund Burke nos recuados mas iluminados anos Setecentos, «tudo o que é necessário para o triunfo do mal é que os homens de bem nada façam».

João Maria de Freitas-Branco

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Eleições Europeias -- Dúvidas para uma solução


No meio de todas as divergências, antagonismos, desconfianças, ódios que existem entre os partidos políticos com assento parlamentar houve na campanha eleitoral para as Europeias um elemento absolutamente consensual, algo que os uniu, fazendo-os vir à ribalta declarar em coro, bem alto e a uma só voz, que estas eleições eram da maior relevância para todos os cidadãos e que, em consequência, o acto cívico de votar era, neste difícil momento histórico, de profunda crise, um dever acrescido.

Como responderam os cidadãos a esse lancinante apelo que lhes foi endereçado por todos os partidos e por todas as figuras de proa da nossa cena político-partidária?

A resposta dos cidadãos eleitores foi cristalina e nem se fez esperar: seis milhões trezentos e noventa e seis mil quinhentos e dez eleitores tiveram-se positivamente nas tintas para as enfáticas recomendações. Este número corresponde a cerca de 67% do eleitorado. Dos restantes 33%, 7,47% foram votos brancos ou nulos (4º lugar no ranking). Ou seja, a grande maioria dos cidadãos não acredita naqueles tribunos que a eles se dirigem em alta voz. Por isso, e não só, não puseram os pés nas secções de voto, algumas das quais nem chegaram a abrir porque os bons cidadãos boicotaram o próprio acto, considerando-o dispensável.

Parece claríssimo: todos os partidos representados na AR e no PE, bem como os seus principais dirigentes sofreram pesadíssima derrota. Todos. Mais de 74% do eleitorado não se sente representado. Só que o evidente, afinal, não é evidente para alguns. Para quem? Para esses mesmos políticos co-responsáveis pela desistência dos cidadãos. Logo eles, que deviam ser os primeiríssimos a reconhecer a derrota. Que conste, nenhum pôs o seu lugar de dirigente partidário à disposição. Nenhum se declarou incompetente. Não se ouviu ninguém dizer: vou ter que mudar radicalmente, vou ter que actuar de outra maneira. Nenhum veio dizer ser urgente repensar e restruturar a sua actividade política, alterar em profundidade o modo de actuação do seu partido. Nada. Em vez disso, ao longo da noite de rescaldo eleitoral assistimos através do cubo mágico a pura magia política (por alguma razão ele é mágico); fruímos uma colecção de prestidigitação política ridícula ao sabor das conveniências. Os cúmulos foram-nos oferecidos pelo partido que maior responsabilidade parece ter na edificação de uma alternativa real, salvadora de uma democracia em processo de decomposição ou desmoronamento: o PS. O seu líder apareceu, pouco seguro, discursando como se fosse uma grafonola: Ganhámos! Ganhámos! Repetia incansavelmente. Pessoas com a responsabilidade de António Vitorino, Francisco Assis, António José Seguro insistiram na tão ridícula quanto indecorosa asseveração de ter sido o PS português o partido socialista mais votado na Europa. E para espanto, não houve alma -- um jornalista, um militante, um qualquer sujeito ali presente nos estúdios ou nos salões de hotel -- que lhes tivesse perguntado qual a razão de se sentirem assim tão felizes com o descalabro eleitoral dos partidos irmãos. Sim, porque foram derrotas humilhantes como a do PS francês a causa do apregoado triunfo do PS cá da terra.

Qual é o limite de participação para conferir legitimidade democrática às eleições? 30%? 20? 10? Ou será que basta o voto de um único eleitor? Há muito que lanço esta interrogativa.

Quando é que se faz o urgente? Será que o tão evidente quão extraordinário consenso alargado hoje existente em torno de três ou quatro grandes questões não chega? Quando é que as mentes mais lúcidas, mais racionalmente críticas e modernas da esquerda e do centro-esquerda -- da área socialista, comunista, social-democrata, democrata-cristã – se sentam à mesa para, em conjunto, cozinharem o núcleo de um programa de acção governativa que salve o país da violenta imoralidade da política “austericida”? E existindo esse documento que materialize uma convergência já há muito latente não será fácil encontrar duas figuras razoavelmente consensuais para se apresentarem como os dignos estadistas que agora tanto nos faltam -- um digno PR e um digno Primeiro-Ministro?

Alguém me pode responder?
 
João Maria de Freitas Branco
Artigo de opinião que saiu no jornal PÚBLICO, edição de 27 de Maio de 2014, p.44


sábado, 26 de abril de 2014

Palestra (notícia)


A todos os interessados:

Faço uma palestra hoje à noite, às 21h., no Auditório Ruy de Carvalho, em Carnaxide (Rua 25 de Abril), uma iniciativa que se insere nas comemorações do 40º aniversário da Revolução e em que evocarei a obra, o pensamento e a acção cívica do compositor Fernando Lopes-Graça. Haverá também um concerto em que actuará o Coro Lopes-Graça (antigo Coro da Academia de Amadores de Música). A entrada é livre. Irei fazer algumas revelações eventualmente chocantes.

Aqui fica o convite. Um palestrante precisa de público de qualidade.
João Maria de Freitas-Branco

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Bom exemplo


Já o escrevi em outro lugar, mas aqui deixo também: parabéns à jornalista Alexandra Lucas Coelho pelo prémio, pelo lúcido discurso proferido na sessão de entrega e, talvez acima de tudo, pela coragem de dizer a verdade que deve ser dita, denunciadora de um poder político obsceno e imoral, protagonizado por gente indecente.
Texto completo do discurso no site do jornal PÚBLICO. Também na minha página do Facebook.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

MIRÓ - a cotação de que não se fala


Que os afectados de iliteracia artística, como os actuais habitantes dos salões e corredores do poder, desconheçam, em absoluto, a importância da proximidade de uma tela de Miró no enriquecer da interioridade do ser humano, bem como no engrandecimento da sua humana existência é coisa que em nada surpreende. É naturalíssimo que tais iletrados patetas reduzam Joan Miró a quantidades de vil metal. Espanto haveria se víssemos nesses sujeitos atitude inversa, mais despida de prioridades financeiras e mais vestida de prioridades culturais. Assim, é uma simples normalidade, consentânea com a indigência cultural de quem protagoniza a atitude, não me despertando incómoda estranheza. Revoltante, inquietante e até insuportável é ver a vara do mando na mão de tal gente.

Mas não é isso que hoje aqui me traz a propósito do recente caso Miró.

Quero sim manifestar o meu desgosto não face ao espectável, senão que face ao por mim não esperado. Ou seja, as inesperadas e nada naturais atitudes/opiniões assumidas por comentadores cultivados, por sérios jornalistas intelectuais. Ver esses enveredar também pelo mero raciocínio mercantilista, deixando ignorada a imensa relevância imaterial dos objectos artísticos em debate é coisa, confesso, que me molesta. Então também vocês só se preocupam com a tradução dos Mirós em milhões, em quantidade de vil metal? Como pode ser? Onde está então a resistência culta, intelectualmente elevada, capaz de fazer frente à bestial iliteracia que comecei por evocar? Onde está, entre os comentadores de serviço, a voz opositora da baixeza intelectual e da indigência cultural que, em adiposas lufadas, brota do discurso dos actuais governantes indecentes e de seus indescritíveis acólitos? Não oiço comentadores a pôr o acento no essencial, a evidenciar o que me parece ser o mais importante: o valor imaterial da badalada colecção Miró caída no regaço do Estado português.

É provável que os comentadores no activo gozem ainda do privilégio de poderem viajar, de poderem ir ver os originais dos grandes criadores de pintura a Paris, Londres, Nova Iorque ou à Barcelona de Miró. Óptimo! Mas, e os outros? Que acontece à maioria esmagadora que não pode dar-se a esse luxo? Será indiferente para a construção da interioridade do sujeito humano ter ou não ter estado na presença de quadros com assinaturas autorais do calibre da de Miró? É que os quadros têm uma sumptuosa cotação imaterial no impreciso mercado dos bens interiores, das etéreas riquezas da complexa profundidade do eu, onde se decide o ser ou não ser pessoa e a grandeza desta.

Não, não é nada indiferente. Nem é questão menor no plano sócio-cultural e político. Para mais se pensarmos nos jovens que frequentam as nossas escolas, estudando a história da pintura, ou da arte, em geral, sem pôr olho em original, limitando-se a ver as reproduções que o manual escolar oferece. Ter a possibilidade de fruir os originais não é questão educativa merecedora de atitude despiciente.

Se há coisa verdadeiramente importante é termos em funcionamento uma sociedade provida de meios – escolas, desde logo – que concorram para fazer emergir, em boa quantidade, aquilo a que o lúcido Montaigne chamava «une tête bien faite».

Para que a vara do mando possa ser colocada nas mãos de pessoas decentes, superando o actual despautério governativo (questão política decisiva), é prévia condição existirem cabeças “bien faites”, bem esculpidas, na acepção do notabilizado ensaísta-filósofo francês.

A presença activa da grande arte e, no geral, da Alta Cultura, sob a forma de pintura, escultura, música, literatura, arquitectura, etc., é coisa inalienável, porque favorece o esforço ciclópico da semeadura de «une tête bien faite».

 

João Maria de Freitas-Branco
Artigo de opinião - jorna PÚBLICO

 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Acordai, cidadãos!


O profundo desprezo pela Cultura tem sido uma das muitas, mas também uma das mais nítidas características da indigna política anti-civilizacional do actual Governo. Um desdém coerente com a concertada acção protagonizada por uma gentalha indecente que ilegitimamente continua a (des)governar o nossa atormentada pátria.
O caso da colecção Miró é apenas o último exemplo desse escândalo diário, desse contínuo fluir de indecência, de imoralidade, de baixeza, de incompetência em que se transformou a actividade governativa no nosso país. Ouviram as declarações do Secretário de Estado da Cultura depois da acusação de ilegalidade proferida pela Direcção-Geral do Património? Absolutamente confrangedor. Em vez de evidenciar empenhamento na defesa do património cultural e, neste caso concreto, manifestar clara vontade de manter no país uma valiosa colecção de quadros de um dos maiores pintores do século XX, o primeiro responsável governamental pela cultura assume atitude contra a cultura, exteriorizando total insensibilidade relativamente ao interesse e às potencialidades inerentes à posse de tão precioso conjunto de obras de arte. Este sujeito, colocando-se numa posição de indecorosa subserviência politico-partidária, de obediência ao chefe e à patroa das finanças, nem sequer se atreve a mostrar perceber o que percebe, ou seja, a fonte de riqueza que é esta colecção. Desrespeitando-se a si próprio – digo-o porque o conheço --finge desconhecer que a Arte e a Cultura não só geram riqueza imaterial como também material, podendo fazer entrar muito dinheiro nos cofres, bem mais do que o numerário obtido através de apressado leilão ferido de ilegalidades. Isto é insuportável. Como se pode admitir tal despautério? Vamos continuar a admitir este desgoverno que dia após dia ofende a dignidade nacional?

Felicito a deputada Gabriela Canavilhas e os seus colegas de bancada pela forma decidida como vieram a terreiro defender a Cultura. Essa intervenção foi determinante na travagem da venda.  

O meu amigo BB (leia-se Baptista Bastos) reuniu em volume acabado de publicar algumas das suas crónicas jornalísticas. Fértil semeadura de lucidezes sobre o nosso quotidiano, estribada em escorreita prosa. Leitura que, por isso mesmo, pelo brilho da ideia e pela qualidade da forma literária (já rara na nossa imprensa), aqui vivamente recomendo. Aí, nesse volume acabadinho de chegar aos escaparates, se pode ler o que aqui cito e entusiasticamente subscrevo na íntegra, esperançoso de abrir apetites de leitura e de animar vontades de acção transformadora:

«Não podemos, nem devemos admitir que esta gentalha destrua o que ainda deixou restar da decência, da honra e da dignidade da nação e da pátria.

Acordai, cidadãos!»  

 

João Maria de Freitas-Branco

Caxias, 4 de Fevereiro de 2014

Blog RAZÃO – razaojmfb.blogspot.pt