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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Caiu a Máscara



Estamos a viver um tempo politicamente interessante, mobilizador, cheio de atractivos, mas também muito perigoso, porque se adensam os riscos de total definhamento da democracia. Como pano de fundo temos uma séria crise da democracia que se tem vindo a intensificar com assustadora celeridade. A estruturação de uma ditadura financeira na Europa tornou-se evidente com o caso Grécia. Já não é necessária grande perspicácia política para compreender que a perda de soberania desagua na extinção da democracia efectiva no interior de cada pátria europeia.  

No espaço nacional, emergiu, de modo súbito, uma situação inédita na história desta nossa 2ªRepública: a hipótese de concretização da tão sonhada e apregoada unidade de esquerda. Este surpreendente agitar de águas em torno da procura de solução governativa, motivado pela lúcida atitude do PCP de viabilizar um governo minoritário do PS como primeiro gesto destinado a travar a onda antidemocrática gerada pela tão em voga ideologia do austeritarismo, parece-me concorrer para um promissor reavivar da chama da democracia.

Actuando de forma aparentemente concertada, PCP e BE desferem forte e certeiro golpe na tão nefasta quanto reaccionariamente empobrecedora política do “não há alternativa”. Toda esta agitação tem tido, para mim, entre outras, a virtude de possuir especial utilidade prática: pôr a nu o falso socialismo de muitos socialistas. Fez cair as velhas máscaras, deixando bem expostos os perfis ideológicos reais de gente que tem passado a vida a fingir que é de esquerda, que é socialista, que é contrário aos interesses do universo direitista da coligação PaF, quando na realidade pertence exactamente ao mesmo universo de interesses. Uma consolidada irmandade.

O exemplo mais exuberante deste útil efeito imediato das negociações do PS com os partidos situados à sua esquerda foi-nos oferecido pelo ex e pelo actual líder de uma central sindical, a UGT. João Proença e Carlos Silva apressaram-se a vir a terreiro manifestar o seu pavor. Assumiram protagonismo de solistas num coro de sujeitos mascarados de socialistas, onde melodiam sob a batuta de destacados dirigentes do PS, e até de putativos candidatos ao lugar de secretário-geral do partido. Um coro que agora faz triunfante tournée pelos canais televisivos, bem como por todo o restante território da comunicação social.

 Após os mais agressivos quatro anos de política contra o bem-estar dos trabalhadores, depois de uma política que gerou a maior transferência de riqueza do trabalho para o capital de que há memória no Portugal contemporâneo, estes sujeitos utilizadores do disfarce de representantes dos trabalhadores, exemplo daquilo a que chamo o kitsch político, vêm afirmar que a única boa solução é manter no poder os autores dessa política, através de uma aliança do PS com a coligação de direita. O que, a concretizar-se, consistiria também grave traição ao sentido de voto dos socialistas autênticos, que foram votar no passado dia 4 de Outubro com o objectivo prioritário de varrer do poder esses inimigos dos trabalhadores e da própria democracia, pois o discurso do “não há alternativa” é, por definição, uma forma de negar a possibilidade de existir uma sociedade livre e democrática. É a negação da possibilidade de escolha por parte do cidadão. Óbito da democracia.

A esperançosa unidade de esquerda pode acabar por não se concretizar; mas a tentativa de a edificar teve já este grande mérito: fazer cair as máscaras. Um belo contributo para o premente combate ao kitsch político.

João Maria de Freitas-Branco
[Artigo de opinião, jornal PÚBLICO, edição de Domingo, 18 de Outubro de 2015,  p.52]

domingo, 11 de outubro de 2015

Notas de Autor 5

Transcrição da minha participação no programa radiofónico "Notas de Autor", na TSF, emissão do dia 1 de Outubro:
 
 
Sempre fui um crítico opositor do pensamento por compartimentos estanques. Por isso, na nota de hoje quero recomendar uma obra, acabadinha de chegar aos escaparates das livrarias, e que é exemplo da negação dessa persistente tendência para a arrumação em compartimentos estanques. Continua a imperar a ideia de que ciência e emoções se excluem mutuamente, e que o romantismo, enquanto movimento cultural enaltecedor do ideal de subjectividade, é coisa absolutamente contrária, oposta, à Ciência, à objectividade científica. Ora, a obra que vos quero recomendar, da autoria de Richard Holmes, premiada pela Royal Society, e intitulada “A Era do Deslumbramento”, parte da noção de espanto para demonstrar a existência (e cito) de «uma ciência romântica, do mesmo modo que existe uma poesia romântica». Numa prosa atraente, o autor faz uma espécie de romance biográfico da ciência realizada entre a chegada do botânico Joseph Banks ao Taiti, em 1769 (integrado na expedição de James Cook), e a célebre viagem de Darwin a bordo do Beagle, iniciada em 1831. No centro da narrativa está também a sedutora figura do músico astrónomo William (ou Wilhelm) Herschel, bem como as primeiras experiências de voo, com balões (o balonismo, os “globos aéreos”, como então se dizia).

Felicito a Gradiva por mais esta feliz iniciativa editorial que é também um gesto corajoso, dado não ser fácil em tempos de crise lançar no acanhado mercado português uma obra com cerca de 700 páginas e bastante iconografia.

Como o trabalho científico de William Herschel inspirou o compositor Joseph Haydn, deixo-vos ao som da oratória “A Criação” (Die Schöpfung). Sugestão musical para acompanhar a leitura proposta.
[TSF, 1 de Outubro de 2015]

sábado, 3 de outubro de 2015

Notas de Autor 4

Transcrição integral da minha participação na emissão de ontem do programa radiofónico "Notas de Autor", na TSF:


A minha nota de hoje é um alerta – porque sou um autor-cidadão preocupado, muito preocupato.

Estamos a viver um período em que se misturam dois actos eleitorais (legislativas e presidenciais)que, a meu ver, são os mais importantes da história desta nossa 2ªRepública desde 1975/76.

O austeritarismo promove a desumanização, destruindo os valores que são os pilares do nosso ideal de civilização. Cortar pensões, reduzir salários, criar pobreza, abalar o Estado social são formas de atentar contra a Vida. E quando o amor à vida decai e o poder é exercido por quem já não ama a Vida, o que acontece é que o Mal germina e institucionaliza-se.

Para que se varra do poder os inimigos da Vida e se consolide uma consciência cívica que impeça o regresso do Mal, do mal organizado, institucionalizado, esse mal extremo de que falava Hannah Arendt, é importante a memória. Recomendo, por isso, uma visita ao Museu do Aljube, recentemente inaugurado e que é, em grandíssima parte, fruto do trabalho do NAM – Associação Cívica Não Apaguem a Memória, de que sou director.  
TSF, "Notas de Autor", 2 de Outubro de 2015

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Notas de Autor 3

Transcrição integral da minha intervenção radiofónica no programa "Notas de Autor" da TSF, no dia 30 de Setembro de 2015:


Quero hoje falar-vos de educação e da escola que temos. Actualmente a educação está subjugada à ideologia imediatista do útil, imposta pelos interesses do mundo dos negócios, das empresas e do Estado. A educação tem-se curvado diante das imposições utilitárias da elite dos negócios para quem a coisa mais importante é ganhar dinheiro, muito dinheiro, no imediato.

Foi precisamente há cem anos, em 1915, que foram publicados dois dos mais relevantes textos sobre educação escritos por autores portugueses, embora uma dessas obras tenha sido redigida em francês e editada no estrangeiro: refiro-me ao livro de Faria de Vasconcelos sobre a “Escola Nova” (Une école nouvelle en Belgique, é o título original) e ao ensaio de António Sérgio “Educação Cívica”. Recomendo a leitura destes dois escritos como forma de recuperar uma educação que abra caminhos para que cada ser humano se possa tornar uma pessoa de carácter.

Não me canso de dizer: a grande crise não é a económico-financeira mas sim a dos valores em voga. É uma crise cultural, uma crise da civilização. Para a superar necessitamos de uma educação de qualidade que concorra para aquilo a que tenho por hábito chamar a formação integral do cidadão pessoa.

Como Sérgio e Vasconcelos eram admiradores de Beethoven, sugiro que os leiam ouvindo o último disco da Maria João Pires, CD premiado, com o 4º concerto para piano do Músico de Bonn.
João Maria de Freitas-Branco, TSF, programa "Notas de Autor, 30/09/2015