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quinta-feira, 31 de março de 2011

A democracia contra os cidadãos

Tomo a iniciativa de inserir neste blog uma parte (os parágrafos finais) de um artigo de opinião que publiquei no semanário Expresso em Abril de 2004; portanto, há precisamente sete anos atrás. Faço-o por me parecer que toda a minha reflexão dessa altura mantém total actualidade. Retirando o caso concreto que lhe serve de exemplo, o que escrevi em 2004 podia perfeitamente ter sido escrito hoje. Quero com isto mostrar que muito do essencial da crise que agora nos aflige e nos coloca à beira do abismo é o simples culminar de um conjunto de graves deficiências que já vêm de longe, mas a que ao longo de todos estes anos não se quis dar importância, favorecendo assim interesses vários solidamente instituídos e cristalizados, bem como práticas políticas muito tóxicas que nos conduziram ao ponto em que estamos: uma situação de asfixia política, económica e financeira.
Passo a citar o referido artigo de opinião, recordando, para um melhor entendimento, que em Março/Abril de 2004 o Governo (PSD/CDS) tinha dado início às obras de concretização do projecto faraónico da Cidade Judiciária, a ser edificada na bonita e pacata vila de Caxias, numa zona de vivendas e de urbanização de baixa volumetria:

[…] O caso da Cidade Judiciária levanta interrogações fundamentais sobre as supostas virtudes do sistema político em vigor. Convida-nos a reflectir sobre a democracia real, ou seja, esta que temos aqui e agora. Sim, porque, ao contrário do que nos impingem, há várias formas de democracia; e a democracia está longe de se esgotar nesta democracia. Esta, como se vai podendo ver, é cada vez mais – e na versão menos pessimista – uma semidemocracia tendendo a passos largos para a extinção do ideal democrático.
É verdade que ainda não foi inaugurado o Guantanamo lusitano, mas a colocação da primeira pedra da Cidade Judiciária, contra a vontade e os interesses da maioria da população (claramente expressos em assembleias e num abaixo-assinado), contra a vontade dos seus representantes autárquicos, contra a opinião de todos os partidos políticos a nível local, contra o parecer das organizações para a defesa do ambiente, contra a presidente da edilidade, constitui verdadeiro sinal de alarme convocador da nossa maior atenção.
[…] Clara manifestação de um muito preocupante recrudescimento da arrogância política, do autoritarismo, da intolerância e da arbitrariedade. Um grupo cada vez mais fechado de funcionários políticos, de cinzentões tecnocratas engravatados representando interesses corporativos ou lóbis, vai governando à revelia da vontade e dos reais interesses dos cidadãos. A crescente arrogância autoritária combina-se de forma despudorada com uma triunfante imoralidade, ambas concorrendo para reduzir ao mínimo a participação do cidadão, obstando a que ele interfira no processo de decisão colectiva.
Face a esta prepotência, quem se sentirá ainda motivado a votar nas próximas autárquicas, depois de ter assistido ao esmagamento dos seus representantes?
Com estes exemplos só se pode esperar o aumento da abstenção, evidente sintoma da agonia do sistema.
[…] sem confundir realidades distintas, a nossa inteligência não se deve inibir de averiguar em que medida o desemprego, o assédio moral em instituições públicas e privadas, a marginalização ou a exclusão social, não desempenham hoje o papel da tortura do sono ou de outras sevícias desse então [o Portugal da ditadura salazarenta]. […] Na actual situação em que o autoritarismo estatal coabita com a banalização da desonestidade, o pior inimigo chama-se indiferença, passividade, conformismo. Essa atitude de renúncia, sempre cuidadosamente semeada pelos poderes autoritários, tem sido contrariada pelos caxienses. O seu inconformismo materializa-se no movimento Salvem Caxias. Também por isto tem este caso projecção nacional: simboliza a convicção de que é possível, necessário e até urgente edificar um sistema político incentivador do exercício da autêntica cidadania, em que cada um intervenha na condução da sua existência.

Referência:
João Maria de Freitas Branco: “A democracia contra os cidadãos”, Expresso, edição de 3 de Abril de 2004, p.29 (opinião).

sexta-feira, 25 de março de 2011

Regime exausto face à crise

Com a apresentação do pedido de demissão do primeiro-ministro está consolidada a crise política. Crise habilmente despoletada pelo próprio demissionário como último recurso, tendo em vista evitar provável derrota eleitoral gerada pelo acentuado desgaste do Governo e do partido que o suporta. Para que não se fique atulhado nas imundices da chicana partidária a atenção devia agora, mais ainda, concentrar-se no estudo das alternativas; ou, dito de outro modo, na criação de novas políticas que minimizem a injustiça social, a violentação do cidadão comum, permitindo a superação da crise económico-financeira por outras vias que não a do sistemático e imoral sacrifício dos mais frágeis, dos que já menos têm, mas que têm o acrescido azar de serem muitos, muitos mais do que os possidentes.
É evidente, ou devia ser evidente, que mudar de governo pouco ou nada interessa se essa mudança não for acompanhada de outra, essa sim essencial: a política que se faz. Porém, os diferentes intervenientes, incluindo os comentadores profissionais, continuam agarrados às questiúnculas da culpabilização, do diz tu direi eu, do empurra, da culpabilização em torno de formalismos secundários quando não estéreis. Pior: parece não terem ainda compreendido que o sistema democrático real, aquele que temos, o regime actual, exibe claros sinais de esgotamento. Percepcionar isso devia ser conta elementar do seu rosário. Não são eles os analistas profissionais, os politólogos? Fica por isso a suspeita de uma falsa cegueira alimentada por inconfessáveis interesses.
Há muito de insuportável na actual vida política. Daí termos chegado a este ponto de iminente colapso financeiro. Mas uma das coisas mais detestáveis e enfadonhas entre as muitas insuportáveis é a afirmação de que os sacrifícios contidos nos PECs são necessários e indispensáveis. Esta inverdade é matraqueada minuto a minuto, até à exaustão, como se a pobreza do pensamento político e da acção política fosse tão franciscana a ponto de só se encontrar um único caminho: o que impõe medidas como as consignadas nos vários PECs e que corresponde ao traçado pelo poderio, nacional bem como internacional. Um intenso bombardeamento discursivo abate-se permanentemente sobre o cidadão incauto com o propósito de o convencer de que as contrariedades que o afligem são uma fatalidade política, algo que terá que aceitar sob pena de males ainda maiores. Empunha-se assim a velha arma do medo que continua bem oleada.
Ninguém duvida da necessidade e até da extrema urgência em pôr ordem nas contas públicas. Temos que reduzir o deficit, travar o despesismo, cuidar da dívida externa? Claro que sim. Ninguém a tal se opõe. O problema reside na medicação prescrita. No como atacar esses males. Aí é que ninguém me convence de que só há um “como” único: o dos PECs. Não, de forma nenhuma. A pobreza da terapia política não é assim tão franciscana. Há outras soluções, outros caminhos a percorrer. Caminhos e procedimentos mais decentes. Mais respeitadores da ética política e da moral. Não fosse o tal matraquear constante, até talvez não fosse difícil perceber que o congelamento de pensões de miséria, o corte de subsídios a desempregados, a anulação de abonos de família, os cortes salariais e outras violências (para já não dizer malvadezes) sociais não são inevitabilidades a que estejamos condenados. As alternativas até nem exigem uma imensa revolução imediata. Exigem tão só que haja seriedade, ética, elevação moral no cozinhado político. É fácil verificar haver muito dinheiro por aí. As grandes empresas continuam a ter exuberantes lucros, mesmo em tempo de tão profunda crise financeira.
Não conscientes (ao que parece) do estado de decadência em que o regime se encontra, os protagonistas políticos, os analistas, os opinantes falam tranquilamente das eleições como “normal solução democrática”. Não vêem que as eleições, mantendo-se o mesmo leque de ofertas, já não satisfazem as exigências de liberdade de escolha? Esses 300 mil que desfilaram pelas ruas de várias urbes no passado dia 12 exibindo cartão vermelho, ou pelo menos amarelo, aos partidos existentes vão poder votar de modo a influir na definição de novas políticas? Esses a que Paulo Portas chamou geração pós-partidária encontrarão no boletim de voto das próximas eleições modo de expressarem a sua vontade política? Os milhões de eleitores que já há vários anos decidiram deixar de votar, ou votar em branco, por não se reconhecerem nos partidos concorrentes, vão agora considerar útil a ida às urnas? Será que vão encontrar nas próximas eleições algo que os atraia, que sintam ser forma de fazerem prevalecer a sua opinião? Ou será que vão continuar a achar inútil dar o seu voto? Que diferença efectiva pode ser trazida pelas eleições? Que novidades autênticas vão elas inscrever na nossa realidade sócio-política? Não será a resposta a estas interrogativas claro sintoma do esgotamento do regime democrático em que vivemos? Já há bastantes anos que insisto em denunciar aquilo a que chamo democracia contra os cidadãos. (Conto inserir aqui no blog um artigo de opinião que publiquei no semanário Expresso e que me parece, à distância de alguns anos, ser bem indicativo do processo de decadência do regime.)
Os situacionistas, os defensores deste esgotado regime, dirão que o eleitorado, se considerar que a política consignada nos sucessivos PECs é errada, tem plena liberdade para penalizar os partidos responsáveis por essas medidas, neste caso o PS e o PSD. Podem, p.e. votar em massa no PCP ou no BE. Mas esses mesmos situacionistas consideram que isso seria absolutamente catastrófico, representaria o fim do país, e jamais aceitariam semelhante resultado eleitoral. Com a imediata cumplicidade dos poderes da Comunidade Europeia encarregar-se-iam de anular “democraticamente” a vontade popular. Então, se as eleições servem para votar nos mesmos, nos que defendem a política dos PECs, para que servem elas? Para limar caprichos partidários? Para satisfazer vaidades pessoais de líderes políticos?
Eleições que têm elevado custo financeiro (cerca de 20 milhões de Euros) para saber se é o PS ou o PSD quem tem mais votos? Mudar, eventualmente, a cor do Governo para prosseguir, no essencial, a mesma política, a dos PECs? Haja alguma racionalidade e bom senso. Não estamos em tempo propício a brincadeiras de gincana político-partidária.
Não seria então preferível o Presidente da República promover uma mediação que permitisse aos dois partidos gémeos chegarem a um entendimento mínimo? Sempre se poupava tempo e dinheiro, o que, convenhamos, em tempos de aguda crise não é pouco. Quem se opõe a essa política terá que continuar a ir para a rua, usando todas as formas de legítimo protesto contra essa prática e procurando alterar o regime de modo a termos uma democracia que não seja uma democracia contra os cidadãos.

NOTA: Há poucos dias, Victor Ramalho (do PS) e Ângelo Correia (do PSD) mostraram publicamente, diante das câmaras de televisão da SIC-Notícias, como seria fácil chegar a um entendimento, caso os negociadores sejam pessoas sérias e com elevação intelectual. Até mostraram que esse entendimento fácil traria, também com naturalidade, alguns benefícios, na medida em que assentava numa recusa de algumas medidas moralmente obscenas presentes no PEC 4 e nos anteriores.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Os sofistas que nos (des)governam

Nas últimas horas escutei duas entrevistas concedidas por figuras cimeiras da governação local: a do primeiro-ministro à SIC e a do ministro da presidência à Antena 1. Duas peças de retórica política merecedoras de estudo para quem deseje compreender a realidade democrática em que vivemos.
Aí encontramos o político sofista em plena acção. Esse ser habilidoso na arte do disfarce, habilitado malabarista das misturas da mentira com a meia-verdade, especialista do ilusionismo verbal produtor e reprodutor de asserções melífluas postas ao serviço da sedução manipuladora. Quem pratica esta arte é gente que passou toda a sua vida adulta (e às vezes mais) mergulhada nos jogos de ilusão característicos dos corredores da política. Gente, por isso mesmo, experimentada nestas faculdades do engano, neste jeito, neste engenho de fazer parecer, ocultando o que é de facto. Capacidades que não se devem subestimar. Para poder proceder à exemplificação concreta seria necessário transcrever passagens das citadas entrevistas, coisa que excedia minha afrouxada paciência já bastante violentada durante os dois momentos de audição. Mas convido o paciente leitor que porventura ainda duvide desse, para mim, já exuberante ilusionismo discursivo a entregar-se ao esforço de análise das palavras cuidadosamente arquitectadas e bem buriladas pelos dois políticos em causa.
Para qualquer cidadão atento, politicamente inteligente, bem informado e experimentado nas lides políticas (no maquiavelismo, quase apetece dizer) o actual comportamento do primeiro-ministro e dos seus próximos obedece a um propósito claro: desencadear uma crise política em que o ónus da culpa (termo tão acarinhado na nossa cultura embebida de catolicismo) seja despejado em cima dos adversários e, em particular, do mais eleitoralmente temido, o PSD. Forma habilidosa de conseguir recuperar apoios para o inevitável confronto eleitoral antecipado. Forma astuta de disfarçar gravosas incompetências, revoltantes erros, responsabilidades pesadas, varrendo-as para cima do concorrente que assim aparecerá aos olhos do eleitor com menos atractivos. Só que os políticos sofistas como José Sócrates -- máxima contradição irónica que o destino nos reservou e que a mim, incondicional admirador do grande ateniense, tanto me dói (como pode um Sócrates, mesmo que pequeno, ser sofista?!), só que esses políticos sofistas sabem que o eleitorado não é maioritariamente composto por mentes atentas, politicamente inteligentes, informadas, experimentadas. Daí a utilidade do investimento sofístico. Logo a partir dessa base se começa a estruturar um terrível primado: o da manipulação; o do jogo da sedução manipuladora.
Ideia central a reter, que não me canso de enfatizar a cada hora que passa: estes políticos que hoje nos governam (ou desgovernam) argumentam com o objectivo central, quando não mesmo único, de vencer seduzindo e não com a finalidade de servir a verdade, fazendo da retórica um instrumento para o seu desvendar. Distorção trágica: a retórica política empregue, em vez de estar ao serviço da dilucidação, do descobrimento de verdades, em vez de se apresentar como meio adequado à procura da verdade, aparece antes como via de alcançar o triunfo, o sucesso, a vitória – valores agora supremos.
Estamos então perante aquilo que considero ser um dos mais graves problemas que nos atingem no mundo actual e que sinto, doído, não ser completamente estranho à filosofia que alguns pensadores do século passado lograram pôr em moda:

O hábito generalizado do desrespeito pela verdade.

Tremendo costume que no debate político-ideológico (e não apenas aí) promove a manipulação, a sedução manipuladora, o valor irracional dos jogos retóricos em detrimento da séria e fundamentada argumentação racional, único meio intelectualmente honesto de persuadir o outro.
O desrespeito pela verdade desnorteia e ilegitima a argumentação.

«We live at a time when, strange to say, many quite cultivated individuals consider truth to be unworthy of any particular respect.»
Harry G. Frankfurt, On Truth, p.17

terça-feira, 15 de março de 2011

Islândia: retrato de um caso

Fonte: João Simas / página do Facebook
A partir de um e-mail recebido no dia 10/3/2011.



"Por incrível que possa parecer, uma verdadeira revolução democrática e anticapitalista ocorre na Islândia neste preciso momento e ninguém fala dela, nenhum meio de comunicação dá a informação, quase não se vislumbrará um vestígio no Google: numa palavra, completo escamoteamento. Contudo, a natureza dos acontecimentos em curso na Islândia é espantosa: um povo que corre com a direita do poder sitiando pacificamente o palácio presidencial, uma "esquerda" liberal de substituição igualmente dispensada de "responsabilidades" porque se propunha pôr em prática a mesma política que a direita, um referendo imposto pelo Povo para determinar se se devia reembolsar ou não os bancos capitalistas que, pela sua irresponsabilidade, mergulharam o país na crise, uma vitória de 93% que impôs o não reembolso dos bancos, uma nacionalização dos bancos e, cereja em cima do bolo deste processo a vários títulos "revolucionário": a eleição de uma assembleia constituinte a 27 de Novembro de 2010, incumbida de redigir as novas leis fundamentais que traduzirão doravante a cólera popular contra o capitalismo e as aspirações do povo por outra sociedade.

Quando retumba na Europa inteira a cólera dos povos sufocados pelo garrote capitalista, a actualidade desvenda-nos outro possível, uma história em andamento susceptível de quebrar muitas certezas e sobretudo de dar às lutas que inflamam a Europa uma perspectiva: a reconquista democrática e popular do poder, ao serviço da população."

In http://www.cadtm.org/Quand-l-Islande-reinvente-la


"Desde Sábado, 27 de Novembro, a Islândia dispõe de uma Assembleia constituinte composta por 25 simples cidadãos eleitos pelos seus pares. É seu objectivo reescrever inteiramente a constituição de 1944, tirando nomeadamente as lições da crise financeira que, em 2008, atingiu em cheio o país. Desde esta crise, de que está longe de se recompor, a Islândia conheceu um certo número de mudanças espectaculares, a começar pela nacionalização dos três principais bancos, seguida pela demissão do governo de direita sob a pressão popular.

As eleições legislativas de 2009 levaram ao poder uma coligação de esquerda formada pela Aliança (agrupamento de partidos constituído por social-democratas, feministas e ex-comunistas) e pelo Movimento dos Verdes de esquerda. Foi uma estreia para a Islândia, bem como a nomeação de uma mulher, Johanna Sigurdardottir, para o lugar de Primeiro-Ministro."

In http://www.parisseveille.info/quand-l-islande-reinvente-la,2643.html

DE: Ricardo Passarinho
Uma interrogativa que vai proliferando na mente de muitos cidadãos preocupados: como é que posso com o meu voto contribuir para salvar o país, garantindo políticas alternativas às do actual Governo? Perante o desastre que está à vista, como é que as próximas eleições podem servir para mudar de rumo e salvar a Pátria?
Talvez o texto que me chegou recentemente sobre o que se está a passar na Islândia, e a que a nossa comunicação social não tem dado a menor importância, possa contribuir para uma resposta.
O referido texto sobre a islândia será introduzido neste blog depois da entrevista do primeiro-ministro na SIC-Notícias, aguardada com muita espectativa.

segunda-feira, 14 de março de 2011

A FACE OCULTA DA TERRA: Espontaneidade

A FACE OCULTA DA TERRA: Espontaneidade: "Foram, quase que aposto, mais do que aqueles que os organizadores modestamente anunciaram ter descido hoje a avenida e foram, certamente, mu..."

Depois da Manif da "Geração à Rasca"

No passado Sábado, dia 12 de Março (por pouco não era outro memorável 11…), voltou a pairar na rua o voluptuoso aroma da espontaneidade popular afectuosamente retido na memória de todos aqueles que tiveram a incomparável felicidade de viver os tempos da Revolução dos Cravos, o PREC de 1974/75. Há longos anos que esse encantador aroma não se fazia sentir. A manif de Sábado foi diferente do agora habitual. Muito diferente. Logo por isso bem interessante. Engano total o daqueles comentadores políticos de serviço, como o Pedro Marques Lopes, que disseram não ter passado de uma manifestação orquestrada a partir das sedes de alguns partidos. Tais comentadores, para além de se revelarem observadores inexperientes, devem ter feito como o Oscar Wilde dizia em relação à apreciação de livros: «nunca leio os livros sobre os quais tenho que fazer uma crítica, para não ser influenciado« (cito de memória). Só que para quem, como o aqui escrevente, tenha longa experiência de manifs, tanto como manifestante como co-organizador, é fácil detectar o apartidarismo – e até algum claro antipartidarismo – presente nesta de que se fala. Chame-se-lhe influência, feeling ou o que lhe quiserem chamar; a verdade é que esta manif foi, na sua concretização prática, exactamente aquilo que os seus jovens e inexperientes promotores quiseram que ela fosse: uma acção de massas político-social apartidária, laica e ordeira. Uma acção política apartidária – sublinhe-se, de modo a evitar a frequente confusão entre ter carácter político e partidarismo. A coisa anunciada foi a apresentada, de facto. Algo só por si digno de louvor neste mundo saturado de publicidades enganosas. Parabéns aos promotores.
Por enquanto, e se bem sei assimilar o acontecido, a nova geração de humilhados e ofendidos desceu à rua não tanto para atacar, senão que para avisar. Avisar os senhores da política, os governantes actuais bem como os que actualmente querem vir a ser governantes, e em geral todos os que são profissionais do ramo político, avisar que não podem nem devem esses senhores continuar a fazer a política que têm feito, nem a estar na política do modo como têm estado. Aí dos políticos que não forem capazes, ou não quiserem, reflectir sobre a mensagem deixada nas ruas de 11 cidades lusas nas últimas horas. O futuro político, bem como o próximo futuro desses profissionais da política, passa em boa medida pela capacidade que tiverem de assimilar a mensagem depositada, agindo depois em conformidade com as elações extraídas, alterando comportamentos, corrigindo defeitos, afinando a decência, construindo novas políticas.
Para quem não for politicamente ingénuo e tiver estado atento ao germinar do protesto da “geração à rasca”, é evidente que à unanimidade na vertente da denúncia do que se considera errado não corresponde equivalente dose de consenso ideológico na vertente da construção de alternativas. Desequilíbrio comprometedor de qualquer tipo de acção transformadora consequente. Essa acção exige, sempre exigiu, arquitectura ideológica, porque é esta que confere sentido à acção. Mas os começos são assim. Além disso, neste caso, parece-me que, independentemente do vago ideológico, de todas as indefinições programáticas, das indeterminações várias quanto às soluções a apresentar, estão já criadas condições para a imediata formalização de um movimento político de cidadania que confira maior consistência organizativa aos anseios expressos. Nesse sentido lavro já o meu vivo apelo. Já agora, acrescento mais: perante a notória ausência de criatividade audaz, diferenciadora, alternativa por parte da actual direcção do PSD, afigura-se-me interessante a iniciativa de Pedro Santana Lopes de criar um movimento tendente à próxima edificação de novo partido que, à direita, possa trazer arejamento político. Sendo eu, como é público e notório, velho bicho de esquerda, não serei, em princípio ou provavelmente, seu directo apoiante; mas em gesto que reputo de política e intelectualmente saudável, saúdo com sincera satisfação essa iniciativa, caso se venha a concretizar. Vou mais longe: por muito que choque os meus “familiares” políticos, nem mesmo excluo liminarmente a hipótese de poder apoiar em circunstância conjuntural concreta um líder proveniente da área da direita parlamentar. Em outra circunstância procurarei esclarecer o porquê dessa hipótese que sei tanto chocar muito boa gente que comigo anda à esquerda.
Tema para reflexão: foi nítido para quem esteve na manifestação o forte sentimento de descrença na paleta partidária actualmente existente. Se assim é, como é que estes milhares de eleitores podem participar em próximas eleições se a oferta, se as possibilidades de escolha política continuarem a ser as mesmas? Como se pode traduzir em voto o sentimento dos manifestantes de Sábado já descrentes dos partidos tradicionais? Como devem eles proceder? De acordo com o sistema democrático vigente as soluções governativas definem-se em função de resultados eleitorais; sendo assim, é conveniente, para já não dizer necessário ou obrigatório, em nome do enriquecimento democrático, que todo o eleitor encontre no boletim de voto a possibilidade de expressar a sua vontade política. Ou seja, uma opção que traduza, no essencial, a sua vontade, a sua concepção do mundo. Causa maior da larga abstenção parece residir na ausência de um maior leque de opções. Para que as próximas eleições (quase de certeza antecipadas) possam ser acto democrático verdadeiro, e para que possam não ser inúteis, impõe-se que o boletim de voto apresente novas possibilidades, nomeadamente a da candidatura uninominal. O apartidarismo que marcou forte presença nas ruas no passado fim-de-semana tem que encontrar espaço eleitoral, coisa algo paradoxal no seio do sistema. Também por isso o sistema tem que mudar, em nome dos próprios valores democráticos.
No final da manif, já à entrada do Rossio, encontrei o Carlos Antunes, alguém que a “geração à rasca” já não identifica. Para os que não se lembrem, trata-se do Carlos Antunes antifascista, líder, com Isabel do Carmo, das Brigadas Revolucionárias, e que antes do 25 de Abril de 1974 protagonizou acções directas contra o regime. No Sábado, de novo na rua, de novo em protesto, estava com um lindo sorriso de criança estampado no rosto, felicíssimo por poder respirar outra vez aquele perfume PREC. «Alguma coisa há-de sair daqui…» disse-me à despedida, com claro optimismo. Bonito. Tão bonito que não resisti à tentação de deixar este registo.
Isto está engraçado. Começa a estar como eu gosto.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Manif da Geração à Rasca

A expressão popular “à rasca” (ver-se à rasca) fere bastante a minha sensibilidade de utilizador da língua, confesso. No plano estético da musicalidade do linguajar de Camões ela é exemplo de grosseria, de impolidez, de fealdade linguística difícil de igualar até na esfera do bruto palavrão. Facto que sempre me fez evitar o seu uso, até mesmo na ambiência do vulgar vernáculo coloquial. Mas tenho que admitir ser ela, essa feia ou malparecida expressão, algo politicamente muito feliz. Ou seja, locução politicamente bem-parecida, uma vez que traduz na perfeição, com rigor e de modo incisivo a realidade que o actual movimento de protesto Geração à Rasca, movimento político espontâneo, apartidário e laico, pretende denunciar e contra a qual se perfila com muito meritória audácia e nobreza cívica.
Arrisco afirmar que as manifestações convocadas para amanhã à tarde em várias das mais importantes urbes do nosso apoquentado país vão constituir um marco histórico. Vão fazer história. É, por cá, a primeira grande manif Facebook. Algo inaudito. Relevantíssima inovação metodológica na esfera da organização da acção política. Mais ainda: desde a formação desta nossa 2ªRepública, que já leva 35 anos de vida, é também a primeira manifestação que reúne gente de todos os quadrantes. Nessa medida, até se pode afirmar que apresenta uma paleta ideológica mais ampla do que o célebre, inesquecível, 1º de Maio de 1974, mesmo que seja menos participada. Digo isto porque a extrema-direita, os neonazis, a talassa e sei lá que outros grupos ultraconservadores, desta vez também anunciaram a descida à rua.
É curioso ver o medo que já começa a fervilhar em algumas almas do meio político institucional; entre os democratas encartados, os funcionários políticos, os profissionais da governação. António Costa e Pacheco Pereira faziam ontem à noite, na sua Quadratura do Círculo, e juntando a sua voz à de outros opinantes, o elogio da moderação, advertindo para o perigo dos radicalismos (como se retirar abonos, reduzir pensões de sobrevivência, cortar subsídios de desemprego e bolsas de estudo não fossem medidas imoderadas ou radicais); apressaram-se a dizer que, “em democracia”, é no Parlamento e nos actos eleitorais que se aprovam ou desaprovam as políticas governamentais. Não é com violência que se deve actuar para corrigir eventuais políticas injustas, acrescentam. Violência nunca! Mas se amanhã algum manifestante resolver apedrejar uma agência bancária, incendiar um contentor do lixo ou quebrar o vidro de uma janela de um edifício governamental isso não passará de violência light. Caríssimos senhores opinantes democratas, violência, violência autêntica é retirar a milhões de cidadãos as bases materiais, os meios económico-financeiros mínimos sem os quais a existência humanamente digna deixa de ser possível. Isso sim é violência inaceitável. Essa é que é a violência intolerável que governantes com decência estão obrigados a reprimir, não com máquinas policiais, mas sim com mais cultura, com mais escola, com mais ética, com mais criatividade, com mais condições de trabalho produtivo. Isto é, em resumo e por outras palavras, aumento de riqueza através de: criação de bons hábitos societais; culto da elevação; empenhado incremento da produtividade nacional (ressuscitando o aparelho produtivo que antes quase foi assassinado).
Numa sociedade governada por pessoas de bem é essa referida violência que deve ser absoluta e prioritariamente proibida. Banida.
Quando um sistema político começa a tropeçar nos seus defeitos, nas suas imperfeições endógenas, nas suas contradições estruturais, exibindo lustrosos sintomas de esgotamento que se traduzem, nomeadamente, na clara incapacidade de contrariar a injustiça social, de conduzir ao banimento dessa tal violência, quando assim é, ensina-nos a história que as transformações exigidas se operam a partir de fora ou por fora do sistema avelhentado, exigindo ao cidadão exausto, farto de se ver injustamente à rasca, a descida à rua. É aí, na rua e pela rua que se constrói a mudança com plena legitimidade cívica e democrática.
Que muitos desçam à rua na tarde de amanhã com gritos de honesto protesto é o que eu, como cidadão interventivo que sou e sempre fui, desejo e espero.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Deolinda - nota de esclarecimento

O juízo crítico que ontem aqui lavrei sobre os Deolinda baseou-se unicamente no que ouvi ser declarado numa emissão do canal televisivo SIC-Notícias por um dos membros do referido grupo musical, pessoa que lamentavelmente não consigo identificar pelo nome. Transcrevi quase literalmente o que foi afirmado. Tudo o que ouvi, e que não passou de algumas curtas frases, deixou-me a nítida impressão de que os autores da cantiga “Parva que sou” temiam as repercussões políticas que se têm vindo a avolumar e pretendiam demarcar-se do movimento de contestação ao Governo que adoptou a cantiga “Parva que sou” como hino geracional de protesto. O que ouvi sugeria haver da parte dos autores alguns receios, talvez fundamentados ou, pelo menos, fáceis de adivinhar nos tempos que correm, e um não quererem assumir o papel de defensores de uma causa política que desagrada aos governantes bem como ao poderio, em geral. O conteúdo das asserções escutadas semeou-me na alma irritação que esteve na origem do texto ontem aqui publicado. Considerando aquilo que de facto ouvi e cuidadosamente transcrevi, tenho a certeza de não ter cometido nenhuma injustiça. Porém, dizem-me que tal não corresponde à verdadeira opinião e atitude das pessoas que compõem o grupo. Se assim for, isso só me pode trazer contentamento. Talvez as afirmações por mim escutadas tenham sido descontextualizadas, como não raras vezes acontece na edição de algumas peças televisivas. Isso pode ter-me induzido em erro. Se tiver sido esse o caso, se me tiver enganado, fico muito satisfeito e apressar-me-ei na apresentação de desculpas aos visados pela crítica.

quarta-feira, 2 de março de 2011

A parvoíce dos Deolinda

Deploráveis as recentes afirmações dos jovens músicos que compõem o grupo Deolinda. Refiro-me às declarações públicas sobre os efeitos políticos da sua cantiga “Parva que sou”. Numa entrevista concedida à SIC-Notícias, que ontem vi e ouvi, procuram os autores demarcar-se de toda e qualquer intencionalidade política.
-- Aproveitaram-se da nossa canção – diz um deles com ar amedrontado; e logo acrescenta:
-- Nós só queremos fazer música; e música é música, é uma forma de entretenimento; serve para passar bem o tempo e não é para fazer política.
Que imbecilidade! Uma das coisas que caracteriza a autêntica obra de arte, musical ou outra, é exactamente o não ser banal e simples entretenimento. Que pensará então este mancebo, que se apresenta como músico profissional, da Heróica ou da Sinfonia Coral do Beethoven? Ou do mozartiano “Viva la libertà” do Don Giovanni? Ou do “Va, pensiero…” do Verdi? Que dirá ele da música de um Shostakovitch, de um Viktor Ullmann ou de um Luigi Nono? Pensará que tudo isso não passa de puro entretenimento? Estará convencido que criações musicais como Intolleranza ou The Suspended Song, do Nono (baseada, esta última, em cartas de vítimas dos campos de concentração nazis), por serem obras musicais, foram compostas com a finalidade de entreter os que as escutarem? E, para não ser acusado de só dar exemplos da esfera erudita, interrogo-me também sobre que opinião terão os Deolinda da música popular de intervenção que marcou a sociedade portuguesa nas décadas de 1960 e 70?
Na ausência do saudoso Zeca Afonso, bem podia o Zé Mário Branco dar-lhes uns açoites bem assentes, explicando-lhes a história da cantiga poder ser uma arma. Os pobres autores de “Parva que sou” também fazem figura de parvos por parecer não terem percebido ainda quantas vantagens podem advir desse involuntário efeito político. Vantagens que, segundo me parece, no caso concreto da cantiga em questão, dificilmente poderiam colher por via de atributos exclusivamente artísticos. Talvez percebam quando forem cobrados os direitos de autor. Para já, conseguiram fazer figura de idiotas, lançando, sobre si próprios, opinião idiota, prejudicial à sua imagem.