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domingo, 29 de abril de 2012

Civilização ou a estória da régia barbárie

O inglês Sir Kenneth Clark, célebre historiador de arte, autor de Civilisation, a inesquecível série televisiva da BBC (1969), confessava humildemente não ser capaz de responder à pergunta what is civilisation? Ou seja, sentia-se inepto para a tarefa intelectual de apresentar uma autêntica definição -- rigorosa, sucinta e suficientemente abrangente -- a partir da qual se possa dar razoável resposta à interrogativa enunciada. Se o barão Clark não logrou estabelecer essa tão procurada definição plena, muito menos terei eu engenho e arte para o fazer. Mas tal como esse prestigiado pensador da Arte, tenho a clara noção de que, embora não sabendo definir civilização, sei pelo menos reconhecer a sua presença e, complementarmente, a sua ausência ou escassez de representação. Felizmente para todos nós, houve outro inglês, de singular calibre mental, que generosamente nos legou preciosíssimo pensamento a partir do qual esse reconfortante reconhecimento se pode operar com maior facilidade, rigor e seriedade. Curioso o facto de esse inestimável legado, consubstanciado na forma livro, não ter sido, se muito não me engano, convenientemente assimilado pela generalidade dos membros da elite intelectual – refiro-me à de cá, bem como à de qualquer outro canto do globo onde se pratique a erudição ou o hábito do pensamento racional sistemático. Arrisco afirmar a minha forte suspeição de ser esse deficit de assimilação directo efeito de uma tão acentuada quão intelectualmente escandalosa ausência de leitura e, portanto, de exegese crítica do evocado escrito. Teve esse outro inglês a generosa preocupação intelectual de descobrir o primeiro fundamento da civilização humana, que é, recorde-se, a única forma de civilização que conhecemos. E como se isso não bastasse, num renovado investimento de esforço intelectivo, teve ele ainda o cuidado de deixar expressamente dito, por escrito e em livro, o que era esse elemento fundante da civilização. Elemento que, entretanto, tinha descoberto no decurso de um monumental trabalho científico, quase sem equivalentes históricos. Culminando uma muito profunda e singular reflexão sobre a génese do ser humano e do humano -- ou, se assim se preferir, da humanidade manifesta na interioridade psíquica bem como no comportamento de um ser vivo objectivamente concreto --, alteando essa reflexão pessoal, declarou esse Autor, em obra dada à estampa no já recuado ano de 1871, ser a simpatia a base essencial da civilização. Ela é administrada pelo instinto social, e, por isso mesmo, é dele indissociável. Representa o momento excepcional em que se começa a consolidar no seio de uma espécie viva o olhar altruísta sobre o outro; ou seja, em que o eu olha o tu com preocupação afectiva. Essa afeição (factor de protecção) projecta-se primeiro sobre o tu próximo, para depois, lenta e progressivamente, se ir estendendo a um outro mais distante (a vários níveis). E de tal modo se estendeu que acabou por se afirmar em relação a um ser outro exuberantemente diferente desse que deveio simpatizante singular. Isto é, a afeição, a sympathy, ultrapassou a fronteira delimitativa da espécie sapiens; transbordou para a esfera dos animais inferiores. Nessa medida, na fecunda visão do Autor da descoberta, podemos e devemos aperceber-nos de que, desenvolvendo-se a partir do momento histórico do reconhecimento do próximo (do semelhante), aquilo que denominamos civilização é então o que acaba por tornar próximo, e cada vez mais próximo, o outro que é um ser outro, diferente, distante por oposição ao próximo causante do desenvolvimento da emotion of sympathy. (Falo de momento histórico no sentido de ser instante de um processo histórico, de um devir contínuo.) Quanto maior for o grau de civilização, mais as fronteiras da simpatia se alargam ou, sob uma outra perspectiva, mais elas se diluem. Até porque, no fundo, de modo algo paradoxal, se diluem através do próprio movimento de alargamento – perdem efectividade quando aumentam. Leia-se então uma curta passagem do livro que me parece ter sido pouco lido, ou menos lido do que o exigido pela boa erudição associada ao cultivo da honestidade intelectual: «A simpatia [sympathy] levada para lá da esfera do homem, isto é, a humanidade relativamente aos animais inferiores, parece ser uma das aquisições morais mais recentes. Os selvagens [saveges], aparentemente, não a têm, excepto em relação aos seus animais domésticos ou de estimação.» Como fácil é verificar por quem se entregue ao útil trabalho de ler o livro com atenção, à luz deste preclaro escrito científico de referência, o acto de, p.e., matar um elefante não é “apenas” um decaimento moral ou um tipo de crime, senão que também uma manifestação da barbárie, ou seja, da anti-civilização. É coisa de selvagem. O bom e digno governante é aquele que, entre variegados outros atributos exigíveis ou exigidos, possui a qualidade principal de ser um ente civilizado que, logo por isso, de forma intransigente defende a civilização assente na tal simpatia que rompeu caminho em direcção ao sentimento de dever para com o outro, por mais diferente, por mais distante que ele pareça enquanto expressão de vida. E já que de governação falamos, talvez importe realçar que a concepção naturalista/materialista e anti- metafísica que subjaz à teorização do processo evolutivo conducente ao sapiens, expressa na obra que aqui nos tem servido de referência, é, na verdade, incompatível com o primeiro pressuposto da governação monárquica, instituidor de uma desigualdade essencial, de uma diferença ontológica que se supõe poder e dever legitimar uma linha de sucessão consanguínea. Nessa medida, creio poder dizer-se que as afinidades da teorização da sympathy como factor evolutivo edificador da civilização são republicanas. No idioma original, lê-se nas páginas do livro aqui chamado: «[The duty, the moral sense] is the most noble of all the attributes of man […]». O competente Autor sabia estar a protagonizar um acto inaugural, porque estava totalmente consciente de que era esta a primeira vez, em absoluto, que the most noble attribute ia ser abordado exclusivamente do ponto de vista da história natural. Genial mudança de atitude que, de modo irreversível, alterou a forma racional de pensar o Homem. Por ter sido produto da agigantada mente do senhor Charles Robert Darwin, talvez fosse legitimamente espectável, pelo menos da parte das elites culturais e na perspectiva do saudável hábito da semeadura de elevação intelectual, que The descent of man, and seletion in relation to sex (*) (aqui citado pelo rendido admirador em crescendo que me orgulho de ser) tivesse sido objecto de maior cuidar intelectivo. Mas parece que, prolongando uma tão lamentável quanto empobrecedora e generalizada tradição de olvido, nem mesmo um nobre senhor rei deste incerto e preocupante agora lhe dedicou atenção, com as consequências ético-intelectuais-políticas postas à vista de todos – e não só, julgo eu, de nuestros hermanos. Neste caso, o rei vai pior do que nu: vai despido de civilização. João Maria de Freitas Branco Caxias, Abril de 2012 (*) A origem do homem, na tradução por cá editada (Ed.Relógios d’Água, Lisboa, 2009). Nota final: Versão integral de um artigo de opinião do jornal Público. Também no blog “Razão”— razaojmfb.blogspot.pt

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Na morte de Miguel Portas

Com o dilatar do tempo e o amontoar de aconteceres nos labirintos da vida, frequente é não nos lembrarmos do momento em que conhecemos um amigo; mas contrariando essa frequência, tenho nítida memória das circunstâncias em que conheci o Miguel, ainda menino, na sede da UEC, numa tarde do histórico ano de 1974 em que me foi apresentado como “o filho de”… Acredito que a sobrevivência de tal memória se deva à impressão causada pela maturidade, determinação, inteligência e entusiasmo que brotavam daquele rosto de menino adolescente. Os anos de convívio que se seguiram, passados nas mesmas barricadas da luta política, à luz de uma mão cheia de ideais comuns, confirmaram a minha impressão inicial. Depois da UEC e do PCP, pertencemos à direção da Plataforma de Esquerda de que ambos fomos cofundadores e que serviu como rampa de lançamento de novas iniciativas políticas à esquerda. Não teve longa vida, mas viveu a vida intensamente, agindo de acordo com o que pensava, sentindo o que pensava, dizia e fazia, com coragem, com inabalável verticalidade moral, sobrepondo as convicções às conveniências e aos interesses pessoais. Assim foi pessoa, perfilando-se na política, e em particular no Bloco de Esquerda, como bom exemplo de dignidade. Uma vida encurtada pela doença, mas que valeu a pena, merecendo ser recordada. Apresento ao BE as minhas condolências. João Maria de Freitas Branco Homenagem ao Miguel Portas

segunda-feira, 9 de abril de 2012

É urgente estudar Darwin

Charles Darwin (o homem e a obra) devia ser objecto prioritário de estudo nas nossas escolas. É o que penso e inequivocamente afirmo. Não movido por qualquer sectária preferência subjectiva, ou por considerar possuir o naturalista inglês grandeza superior à de qualquer outro dos Grandes da ciência, e menos ainda por supor a sua esplêndida Teoria da Evolução mais valiosa do que as restantes principais construções teoréticas da história da ciência. Não, nada disso. Apenas me parece que Darwin constitui, em si mesmo, um modelo exemplar do que se entende por atitude científica, tendo sobre outros a vantagem de o seu exemplo de esforço cognitivo incidir sobre um domínio que ao longo de largas centúrias foi coutada privilegiada dos sistemas ideológico-práticos da obediência, já tão preocupantes para o nosso bom Espinosa; ou seja, o estudo e compreensão do humano, incluindo o velho problema da origem deste homo sapiens que narcisicamente dizemos ser.
A primeiríssima função intelectual da Escola devia consistir na semeadura de racionalidade crítico-dubitativa, de modo a legar à sociedade espíritos libérrimos, expurgados de vícios de pensamento primários, como aqueles que estão na base das formas de embriaguez intelectual -- vícios que são sustento do irracional, da superstição, do sobrenatural, da vulgar crença, do culto do mistério insondável. Isto é, os nossos jovens deviam assimilar nos bancos da escola as ferramentas mentais indispensáveis para escudar o cidadão, para lhe criar alguma imunidade mental aos vírus ideológicos em circulação, permitindo-lhe enfrentar com audácia aquilo a que tenho insistido chamar a cultura da confusão – essencial e indispensável serva da dependência em detrimento da autonomia, da emancipação.
Darwin representa um maravilhoso momento de concretização da ciência adulta, ou seja, de uma ciência expurgada de crença, por ter desenvolvido instrumentos (materiais e imateriais) de verificação racional, assumindo, ao mesmo tempo, consciência da absoluta indispensabilidade desse mesmo instrumentário, porque qualquer excepção a essa atitude metodológica escancara a porta à tal embriaguez intelectual, permitindo-lhe avançar, instalando a confusão dominadora. Essa confusão promotora do estado de dependência.
Darwin tem, portanto, um valor universal, que se estende a todo o espaço cultural. Aliás como logo no seu século foi percebido pelos espíritos atentos. O darwinismo constituiu um passo decisivo no processo geral de dessacralização do Real. Ao fazer com que a ciência se libertasse dos prejudiciais efeitos da metafísica e da teologia natural ele enviou ondas de choque em todas as direcções, ondas que não tardaram a surtir efeitos nos mais diferentes espaços disciplinares, da literatura à política.
Devemos aos iluministas do século XVIII o decisivo desvendamento do elo ancestral, presente em todas as sociedades, entre a crença, os mitos, a sacralização, os mistérios, a institucionalização de cultos (religiosos ou profanos) e o Poder – incluindo, claro está, o exercício do poder político na esfera da práxis, a governação. Daí que só uma muito excessiva ingenuidade possa levar alguém a ignorar que o fazer com que se ensine mais Darwin nas escolas não é procedimento fácil, nem gesto que escape a resistências de variado timbre.
A actual fraca presença do darwinismo nos programas escolares é um escândalo intelectual nada ingénuo. Não é fruto do acaso, da mera incompetência ou de uma qualquer desatenção, um desses “lapsos” ministeriais agora em voga. Também não consigo ser suficientemente ingénuo para poder acreditar que a resistência não esteja também solidamente instalada dentro da escola, entre a população docente. Que outra coisa se pode esperar face a um trabalho científico, o de Darwin, que de modo tão profundo e consistente veio colocar em evidência o facto de, chegada ao seu estado adulto, a ciência ser necessariamente ateia?
Mas exactamente como Darwin e com Darwin temos que continuar a investir no esforço de estruturação do moderno pensamento emancipador. Parte importante desse esforço consiste em colocar mais Darwin, mais darwinismo nos programas escolares (em todos, ou quase todos, e não apenas nos da disciplina de biologia), dando simultaneamente formação aos docentes para que desses novos conteúdos programáticos possam tirar máximo proveito no âmbito da nobre função pedagógica de edificação da racionalidade, pois que, como gostaria de recordar um celebrado filósofo contemporâneo de Darwin, a razão sempre existiu, só que não sempre na forma racional. É por isso necessário educar para a racionalidade, fazendo com que a razão exista na forma racional. Um contributo pedagógico-formativo que legitimamente podemos esperar e desejar que seja legado pelas nossas escolas.

NOTA: Para melhor compreensão do que entendo por “confusão”, leia-se o meu ensaio “Racionalidade: confusão e anti-confusão”, publicado em Razão Activa, Boletim da Fundação Internacional Racionalista, Abril de 2003, pp.21-30. Também publicado neste blog, se bem que não integralmente e com alguns defeitos formais causados por limitações informáticas (v. índice).