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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Hawking despede Deus

Contrariando a medicina e seus doutos esculápios, o físico Stephen Hawking teima em estar vivo. Para ainda maior espanto, continua a ser um vivo intelectualmente activo. Prova dessa vitalidade é o livro recentemente publicado com o título The grand design, obra escrita em colaboração com um seu colega, o matemático Leonard Mlodinow. Ainda não existe tradução portuguesa, como é natural. Mas ela não tardará muito. O que tardou ainda menos foi a oposição religiosa ao texto do prestigiado cientista.
Neste início da segunda década do século XXI, tendo o homo sapiens já a venerável idade de dezenas de milhares de anos, a civilização, por ele edificada, mais de cinco mil, e sendo as também por ele criadas filosofia e ciência entidades culturais centenárias (até a jovem scienza nuova já leva quatrocentos anos de existência, o tempo passa…), Hawking vem-nos dizer algo que seria suposto já não passar de mera banalidade cimentada nas nossas cabeças pensantes: que o Universo não foi criado por nenhuma mente divina; não é obra de nenhum deus pessoal, como esse de que nos fala a Bíblia ou o Corão, mas sim o resultado de processos descritos pelas leis da física. O Universo é um efeito quântico. Além do mais, aproveite-se para o dizer, a ideia de uma mente operando de modo absolutamente misterioso e contrário a todos os indícios experimentais, a todos os dados cognitivos amealhados pelas neurociências, e, até mesmo, em contradição com as evidências, é algo que, entre gente cultivada, vai sendo cada vez menos suportável, se quisermos manter atitude de autêntica honestidade intelectual. (Recorde-se que à luz do conhecimento legado pelas neurociências, em particular nas últimas duas décadas, a hipótese de uma mente consciente funcionando à revelia de qualquer tipo de sistema neural é algo destituído de sentido. Ninguém no interior da comunidade científica põe em causa a correlação entre acontecimentos mentais e acontecimentos cerebrais. A polémica, que a há, e forte, situa-se a outro nível.)
Conclui-se, então, que na opinião de Hawking a hipótese de um deus pessoal demiúrgico não faz sentido. É simplesmente inútil à compreensão da história do universo, incluindo o problema da sua origem. Basta-nos o recurso a criações bem humanas como a mecânica quântica. Deus é uma hipótese descartável. Não deveríamos saber isto desde Laplace, pelo menos?
Bom, convenhamos que a conclusiva é bastante indigesta para quem organiza o seu sustento na base da ideia da reconfortante presença de um Criador divino. A coisa incomoda, é certo. Mas a inteligência crítica devia servir para superar a dificuldade, edificando comportamento adaptado às novas realidades cognitivas.
O que, entre pessoas cultivadas, devia ser já algo incontroverso, por efeito do conhecimento coligido, na prática verifica-se não o ser. O novo livro de Hawking logo incendiou espíritos apressados em vir a terreiro com o objectivo de atacar o cientista, desacreditar a sua tese, vilipendiar e lançar alerta aos rebanhos para que se protejam deste discurso satânico, diabolizador.
Embora já quase nada me espante nesta esfera comportamental, o apego à cultura da inteligência crítica não me permite ficar indiferente a certas afirmações. Daí que, sem possibilidade de autocontrolo, vi levantarem-se-me os cabelos no cimo da cabeça quando me chegaram ao conhecimento as públicas declarações do padre Manuel Morujão. Faço notar tratar-se de um alto responsável da Igreja: secretário da Conferência Episcopal Portuguesa e ex-membro do governo geral dos jesuítas em Roma. Diz-nos ele o seguinte a propósito da tese de Hawking: «trata-se de uma indevida ingerência da ciência no campo da teologia. […] um físico famoso deve evitar a tentação de destronar Deus do seu lugar, pretendendo impor os dogmas da ciência em território da religião… Dêmos a cada um o que lhe pertence. […] Ciência e religião devem ser como dois países independentes, no respeito mútuo das fronteiras e da autonomia recíproca» (entrevista concedida à revista FOCUS, nº570, 15/Setembro/2010, pp.122-125) .
Então a religião afirma que o Universo (realidade física) foi criado por Deus, que esse Deus, e ainda outros entes semidivinos, provocam milagres, ou seja, fenómenos que denegam as leis da física, e, perante estas afirmações, a ciência (neste particular a física), que por acaso se estriba numa coisa chamada racionalidade critico-dubitativa, deve permanecer em silêncio? Deve ficar indiferente a essa possibilidade de os sistemas que estuda funcionarem, afinal, em desacordo com as leis por si tão cuidadosa e rigorosamente enunciadas? Não tem direito a contra-argumentação crítica? Então o trabalho científico, que é a mais triunfante ferramenta antidogmática criada pelo homem, é que está a impor dogmas? Não nos ensina a história ter sido a ciência vitimada cronicamente pela imposição de dogmas religiosos? Não foi por isso que, com um lamentável (para já não dizer vergonhoso) atraso de centúrias, o penúltimo papa pediu desculpa a Galileu? Louvado seja deus! Haja um pouco de sensatez e de decoro intelectual.
Uma religiosidade refém da ideia vetusta -- obsoleta mesmo -- de um deus pessoal, ser interveniente nos aconteceres mundanos, como o deus de que nos fala o cristianismo e as outras religiões do Livro, deixou de ter futuro. Afirmar a existência de uma tal entidade passou a ser uma desonestidade intelectual – quando, note-se bem, esse afirmar se manifesta num espaço culturalmente bem informado. Já entrámos no tempo da religiosidade pós-divina; isto é, o de uma religiosidade sem deuses pessoais demiúrgicos. Será essa uma religiosidade cada vez mais racional e absolutamente compatível com a ciência.

Uma última nota crítica: pena que este último livro de Stephen Hawking seja obra demasiadamente ligeira, fazendo demasiadas concessões ao leitor não iniciado. O tema exigia maior profundidade e densidade. Qualidades não necessariamente incompatíveis com a intenção divulgadora.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Portugal em crise

Um imenso coro de alegados especialistas em política, em economia, em finanças vem a terreiro dizer fundamentalmente duas coisas: que o país está à beira do abismo em consequência da incapacidade governativa de quem tem governado ao longo dos últimos anos; e que o orçamento de Estado proposto pelo Governo é muito mau, não garantindo solução para a gravíssima crise financeira. Dito isto, as mesmas sumidades apressam-se a dizer que o PSD tem que aprovar o OE sob pena, acrescentam, de se passar do mau para o péssimo. O que nos vai salvar desse agravamento é, dizem os mesmos analistas, a aprovação de um péssimo orçamento e a consequente aplicação de medidas que ninguém acredita serem eficazes, para além de serem socialmente injustas. A irracionalidade continua à solta. Parte-se irracionalmente do pressuposto de que as medidas do PEC-3 são as únicas possíveis e de que, assim sendo, não há alternativa. A voz de quem apresenta alternativas concretas e contrapropostas orçamentais para a contenção da despesa pública é pura e simplesmente silenciada. Depois, multiplicam-se pressões, particularmente sobre a direcção do PSD, para que o mau OE seja aprovado. Por último, considera-se gravíssimo o risco de os actuais governantes incompetentes se irem embora. Então perante a incapacidade governativa do actual Governo não seria lógico desejar-se que ele desapareça, deixando de semear erros que arrastam o país para o abismo? A gravidade da situação parece aconselhar uma medida enérgica que nos salve da incompetência governativa do actual Governo: a criação de um Governo de salvação nacional que dê para o exterior uma imagem de credibilidade governativa, um governo suprapartidário. Nas últimas horas, foi da boca do fiscalista e vice-presidente do PSD Diogo Leite de Campos (a cuja família político-ideológica não pertenço) que ouvi comentário mais lúcido, com a acrescida vantagem do humor. Passo a citar: «Qual é a diferença entre ter este Governo ou estar a duodécimos – onde não pode aumentar impostos mas pode cortar despesa – quando os operadores internacionais já disseram que não acreditam nestas medidas? Não podemos estar reféns de um Governo incapaz que diz que, se não fizermos o que quer, foge. Então fujam!»

Nobel da Paz

Arrepio-me ao ver, neste meu país, pessoas e instituições com grandes responsabilidades políticas virem protestar contra a atribuição do Nobel da paz a um cidadão chinês, Liu Xiao Bo, que corajosamente trava um combate pela liberdade de expressão no seu país, em vez de se preocuparem, prioritariamente, em denunciar uma obscenidade política: a intolerável situação de desrespeito por direitos humanos elementares, como o da liberdade de expressão, naquele que é o Estado mais populoso do globo. Será que tais pessoas e instituições não se apercebem do descrédito em que caiem? É grave quando responsáveis políticos perdem autoridade moral.
Não me sinto em condições de avaliar se a atribuição é a mais justa. Não conheço suficientemente a pessoa em causa nem a acção por ela desenvolvida, e desconheço quem eram os outros candidatos ao prestigioso prémio. Mas tal em nada afecta o que antes ficou dito.
Liu Xiao Bo encontra-se preso por pensar e ter determinadas opiniões críticas. A sua mulher acabou de ser detida, proibida de falar, impedida de utilizar o seu telefone e o seu computador por ter dito o que pensa.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Damásio assume-se

Chega-nos novo livro de António Damásio, com título, a meu ver, bem mais feliz na edição americana do que na versão portuguesa que funciona como uma espécie de “segundo original” (passe o paradoxo). Isto malgré a pessoana titulação presente na edição com a dupla chancela da Temas e Debates/Círculo Leitores: O livro da consciência. Em inglês o título é: Self comes to mind. O termo “self”, inexistente nas línguas latinas, cria desde logo dificuldades de tradução que a associação com “come to” em nada vem facilitar. Uma exigida translação rigorosa, literal, acabaria sempre por não resultar, a vários níveis -- incluindo o do marketing editorial. Mas ambas as titulações são da responsabilidade do próprio autor. Nesta obra versando temática verdadeiramente fascinante – a questão de saber como é que se arquitecta a mente consciente, como é que emerge, na base de um processo construtivo, aquilo a que o autor chama o eu autobiográfico – Damásio, consciente da fase de vida em que está, exibindo invejável currículo científico e sabedor da notoriedade internacional de que goza, decidiu assumir-se inequivocamente como pensador/cientista materialista ateu. Sempre tive a sensação de que o autor do Erro de Descartes não estava ciente da dimensão do temor causado pelas fogueiras, inquisitorialmente ateadas, na alma do Filósofo que criticava. No entanto, também nunca duvidei que, embora liberto do risco directo da proximidade desse lume inquisitorial, o nosso prestigiado neurocientista não estava imune aos medos causados pelas neo-fogueiras, destituídas de lume, é certo, mas nem por isso menos destruidoras da pessoa humana. São elas, entre outras, os cortes de financiamento, o desemprego, a marginalização, a ostracização. Bem consciente desses perigos que tão gravemente podiam lesar a sua nobre labuta, António Damásio conseguiu gerir habilmente o seu discurso em relação a questões particularmente sensíveis no plano filosófico, ideológico e religioso. Nisso, nesse cuidado, não deixou de estar em sintonia com Descartes. Mas agora, pela primeira vez em obra com grande visibilidade (mediática e não só), assume ele clara e inequívoca posição face ao central e clássico problema da relação mente/corpo, mental/neural ou, no uso de terminologia mais clássica e tradicional, o problema da relação do espiritual com o material. Questão que não se pode separar de um outro eterno, e não menos exasperante, quebra-cabeças. Refiro-me ao problema, também ele fundamental, da causalidade descendente. Ou seja, a dificuldade de entender como é que partindo do nível dito superior da pura espiritualidade, o dos estados mentais, se pode descer por uma escada de causa-efeito até o patamar do comportamento. Como é que o espiritual pode influir no material? Como pode um estado mental causar um efeito sobre o funcionamento de um sistema material (um órgão, uma perna, a boca, etc.) influenciando os actos comportamentais práticos (constitutivos da acção prática concreta)? Descartes debateu-se com estas tremendas problemáticas ao longo de toda uma vida, optando, se muito não erro, pela ambiguidade. Uma prodigiosa ambiguidade teorética. Encenou intelectualmente uma resposta dualista para ambas as questões, resposta em que no fundo, ao que estou em crer, não acreditava. Hipótese minha, necessariamente muito discutível, e, como se sabe, não aceite por Damásio que por isso mesmo tomou a iniciativa de pôr em evidência aquilo a que chamou «o erro de Descartes», mas que no meu ensaio Cérebro, mente e paixões da alma (Universidade de Évora, 2000) tive o atrevimento de sugerir ser mais «o erro de Damásio». Seja como for, Damásio sente-se desde há muito em rotura com Descartes e atraído por Espinosa. Quanto a este, naturalmente -- acrescento eu. A inclinação em direcção ao monismo, em detrimento da resposta dualista, foi desde muito cedo clara no discurso do neurocientista. O que há agora de novo, se bem observo, é a clara assunção de um monismo materialista em que se reconhece um caminho facilitador da superação do «exasperante problema da causalidade descendente». Vejamos quão preclaro é o texto que agora nos chegou sobre a forma de livro no concernente ao enunciado de uma resposta final para os dois grandes problemas evocados.
No último dos apêndices que encerram a obra agora dada à estampa pode ler-se o seguinte:

«A perspectiva adoptada neste livro engloba uma hipótese que não é universalmente apreciada, e muito menos aceite – ou seja, a ideia de que os estados mentais e os estados cerebrais são, no seu essencial, equivalentes.» (p. 383 da edição portuguesa).

Saltando do fim para o princípio, deparamos com os seguintes parágrafos:

«A observação da consciência a partir da nossa posição actual […] é responsável por uma distorção compreensível mas perturbante dos estudos sobre a mente e a consciência. Observada do alto […] parece um fenómeno de natureza diferente do dos tecidos e funções biológicas do organismo que a alberga. […] O encararmos a mente como um fenómeno não-físico, isolado da biologia que a cria e mantém, é responsável pela colocação da mente fora das leis da física, uma discriminação à qual outros fenómenos cerebrais geralmente não estão sujeitos. […].
A nossa intuição diz-nos que a efémera e volátil mente carece de ex-tenção física. Penso que essa intuição é falsa, e que deve ser atribuída às limitações do eu desarmado. Não vejo motivo para que essa intuição mereça mais crédito do que anteriores intuições evidentes e poderosas, como por exemplo a noção pré-coperniciana do que acontece com o Sol e com a Terra, ou mesmo a noção de que a mente residia no coração. As coisas nem sempre são o que parecem.» (pp.31 e 32, ed. cit.).

Terrível heresia a que estas passagens exalam. Sectores como os que ainda há poucas horas desavergonhadamente contestaram a justa atribuição do prémio Nobel a Richard Edwards não vão perdoar a António Damásio. Mas, como ele próprio sabe, já não têm poder para o “queimar”, e muito menos conseguem impedir o avanço do conhecimento científico. Pena que o grande Descartes não tenha podido usufruir da mesma imunidade.

[Referências bibliográficas: DAMÁSIO, António: O livro da consciência, Temas e Debates / Círculo de Leitores, Lisboa, 2010.
BRANCO, J.M.de Freitas: "Cérebro, mente e paixões da alma", em Seminário sobre o Cartesianismo, Universidade de Évora, Évora, 2000.]

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

República desgovernada

A Nação comemora o primeiro centenário da República sob a séria ameaça de falência do Estado Português, ao mesmo tempo que a acção governativa provoca um misto de descrença, estupefacção, indignação e revolta. No essencial, a coisa pode resumir-se assim: no seio de uma família numerosa chega-se à conclusão que os recursos financeiros são insuficientes para sustentar o estilo de vida presente e que, portanto, emergiu uma situação de grave crise económico-financeira exigente de urgentes medidas tendentes a reduzir as despesas. A mãe e o pai dessa família, assumindo a condição de chefes do grupo, primeiros responsáveis pelo governo do lar ameaçado, decidem então manter o projecto de compra de um terceiro automóvel de luxo, assim como o hábito de jantar fora várias vezes por semana em faustosos restaurantes e de pernoitar em hotéis estrelados, mas, conscientes da crise, acordam em reduzir drasticamente as despesas de alimentação, saúde e educação dos filhos menores, bem como os gastos com os avós reformados e enfermos. Tomadas estas “corajosas” decisões, os país apreçam-se a anuncia-las à parentela, apresentando-as solenemente como única alternativa à iminente catástrofe financeira, como única solução possível. Apelam por fim à compreensão de todos, ao sentido de responsabilidade e ao espírito de sacrifício dos membros da família. Quanto a um consistente programa de acção para gerar riqueza com base no trabalho produtivo, nada disseram, ao que consta, os chefes da afectada família.
Eis a imoralidade governativa à solta. Eis a desvergonha de quem está refém de inconfessáveis interesses.
À luz da ética, da moral, da justiça social as medidas anunciadas pelo Governo são completamente irracionais. Mas à luz dos interesses do poderio são bem racionais e intencionais.
É este o despautério político que os comentadores de serviço deviam denunciar, mostrando que a solução apresentada pelo Governo não só não é a única possível, como também não é nem a mais justa nem a mais eficaz. Pior. Não chega a ser, no fundamental, uma verdadeira solução. Estranha-se (ou talvez não) que a comunicação social, em particular as televisões, ignore por completo os economistas que apontam alternativas, que propõem outros caminhos, outros desenlaces. Faz-se prevalecer a ideia, falsa, de que existe um consenso cientificamente fundamentado em torno do conteúdo das medidas governamentais.
Do Brasil chegam-nos sinais importantes para o bom pensar da nossa situação presente. Amealho alguns: a extrema relevância da qualidade humana de quem ostenta a vara do mando; ou seja, o valor da presença de seres humanos de categoria no topo da governação. (Os dois últimos presidentes da República Federal do Brasil chamavam-se Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva.) A demonstração de que o combate à pobreza não é incompatível com a diminuição da dívida do Estado. (Entre 1995 e 2010 a dívida foi reduzida para menos de metade – de 26 mil milhões de dólares para 11 mil milhões – e 24 milhões de pessoas deixaram de ser pobres.) O facto de o Brasil ter passado, num período de apenas década e meia, de país do terceiro mundo para o grupo dos países mais desenvolvidos do mundo (nos últimos tempos o crescimento foi de 7%).
Talvez estes sinais nos possam ajudar a estruturar uma acção indignada de transformação da nossa realidade política. O 5 de Outubro, para mais em comemoração de centenário, é um momento propício para pensar a mudança.