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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Damásio assume-se

Chega-nos novo livro de António Damásio, com título, a meu ver, bem mais feliz na edição americana do que na versão portuguesa que funciona como uma espécie de “segundo original” (passe o paradoxo). Isto malgré a pessoana titulação presente na edição com a dupla chancela da Temas e Debates/Círculo Leitores: O livro da consciência. Em inglês o título é: Self comes to mind. O termo “self”, inexistente nas línguas latinas, cria desde logo dificuldades de tradução que a associação com “come to” em nada vem facilitar. Uma exigida translação rigorosa, literal, acabaria sempre por não resultar, a vários níveis -- incluindo o do marketing editorial. Mas ambas as titulações são da responsabilidade do próprio autor. Nesta obra versando temática verdadeiramente fascinante – a questão de saber como é que se arquitecta a mente consciente, como é que emerge, na base de um processo construtivo, aquilo a que o autor chama o eu autobiográfico – Damásio, consciente da fase de vida em que está, exibindo invejável currículo científico e sabedor da notoriedade internacional de que goza, decidiu assumir-se inequivocamente como pensador/cientista materialista ateu. Sempre tive a sensação de que o autor do Erro de Descartes não estava ciente da dimensão do temor causado pelas fogueiras, inquisitorialmente ateadas, na alma do Filósofo que criticava. No entanto, também nunca duvidei que, embora liberto do risco directo da proximidade desse lume inquisitorial, o nosso prestigiado neurocientista não estava imune aos medos causados pelas neo-fogueiras, destituídas de lume, é certo, mas nem por isso menos destruidoras da pessoa humana. São elas, entre outras, os cortes de financiamento, o desemprego, a marginalização, a ostracização. Bem consciente desses perigos que tão gravemente podiam lesar a sua nobre labuta, António Damásio conseguiu gerir habilmente o seu discurso em relação a questões particularmente sensíveis no plano filosófico, ideológico e religioso. Nisso, nesse cuidado, não deixou de estar em sintonia com Descartes. Mas agora, pela primeira vez em obra com grande visibilidade (mediática e não só), assume ele clara e inequívoca posição face ao central e clássico problema da relação mente/corpo, mental/neural ou, no uso de terminologia mais clássica e tradicional, o problema da relação do espiritual com o material. Questão que não se pode separar de um outro eterno, e não menos exasperante, quebra-cabeças. Refiro-me ao problema, também ele fundamental, da causalidade descendente. Ou seja, a dificuldade de entender como é que partindo do nível dito superior da pura espiritualidade, o dos estados mentais, se pode descer por uma escada de causa-efeito até o patamar do comportamento. Como é que o espiritual pode influir no material? Como pode um estado mental causar um efeito sobre o funcionamento de um sistema material (um órgão, uma perna, a boca, etc.) influenciando os actos comportamentais práticos (constitutivos da acção prática concreta)? Descartes debateu-se com estas tremendas problemáticas ao longo de toda uma vida, optando, se muito não erro, pela ambiguidade. Uma prodigiosa ambiguidade teorética. Encenou intelectualmente uma resposta dualista para ambas as questões, resposta em que no fundo, ao que estou em crer, não acreditava. Hipótese minha, necessariamente muito discutível, e, como se sabe, não aceite por Damásio que por isso mesmo tomou a iniciativa de pôr em evidência aquilo a que chamou «o erro de Descartes», mas que no meu ensaio Cérebro, mente e paixões da alma (Universidade de Évora, 2000) tive o atrevimento de sugerir ser mais «o erro de Damásio». Seja como for, Damásio sente-se desde há muito em rotura com Descartes e atraído por Espinosa. Quanto a este, naturalmente -- acrescento eu. A inclinação em direcção ao monismo, em detrimento da resposta dualista, foi desde muito cedo clara no discurso do neurocientista. O que há agora de novo, se bem observo, é a clara assunção de um monismo materialista em que se reconhece um caminho facilitador da superação do «exasperante problema da causalidade descendente». Vejamos quão preclaro é o texto que agora nos chegou sobre a forma de livro no concernente ao enunciado de uma resposta final para os dois grandes problemas evocados.
No último dos apêndices que encerram a obra agora dada à estampa pode ler-se o seguinte:

«A perspectiva adoptada neste livro engloba uma hipótese que não é universalmente apreciada, e muito menos aceite – ou seja, a ideia de que os estados mentais e os estados cerebrais são, no seu essencial, equivalentes.» (p. 383 da edição portuguesa).

Saltando do fim para o princípio, deparamos com os seguintes parágrafos:

«A observação da consciência a partir da nossa posição actual […] é responsável por uma distorção compreensível mas perturbante dos estudos sobre a mente e a consciência. Observada do alto […] parece um fenómeno de natureza diferente do dos tecidos e funções biológicas do organismo que a alberga. […] O encararmos a mente como um fenómeno não-físico, isolado da biologia que a cria e mantém, é responsável pela colocação da mente fora das leis da física, uma discriminação à qual outros fenómenos cerebrais geralmente não estão sujeitos. […].
A nossa intuição diz-nos que a efémera e volátil mente carece de ex-tenção física. Penso que essa intuição é falsa, e que deve ser atribuída às limitações do eu desarmado. Não vejo motivo para que essa intuição mereça mais crédito do que anteriores intuições evidentes e poderosas, como por exemplo a noção pré-coperniciana do que acontece com o Sol e com a Terra, ou mesmo a noção de que a mente residia no coração. As coisas nem sempre são o que parecem.» (pp.31 e 32, ed. cit.).

Terrível heresia a que estas passagens exalam. Sectores como os que ainda há poucas horas desavergonhadamente contestaram a justa atribuição do prémio Nobel a Richard Edwards não vão perdoar a António Damásio. Mas, como ele próprio sabe, já não têm poder para o “queimar”, e muito menos conseguem impedir o avanço do conhecimento científico. Pena que o grande Descartes não tenha podido usufruir da mesma imunidade.

[Referências bibliográficas: DAMÁSIO, António: O livro da consciência, Temas e Debates / Círculo de Leitores, Lisboa, 2010.
BRANCO, J.M.de Freitas: "Cérebro, mente e paixões da alma", em Seminário sobre o Cartesianismo, Universidade de Évora, Évora, 2000.]

1 comentário:

  1. Meu caro filófoso tens aqui uns excelentes textos. E que tens feito para divulgar o teu RAZÃO.
    Sei que não fica bem andar por aí a pedir que façam o favor de ir aprender alguma coisa ali no meu blog em vez de perderem o vosso tempo a ler (e ver )o lixo que por ai vai em jornais (e TV's).
    Um truque é deixar um comentário por blogs que prestem e há alguns. Depois os frequentadores, além do dono, vão bisbilhotar a casa do atrevido autor do comentário e passam a lá ir todos os dias. Conheces o excelente blog do JMCP Politeia? (Procura no Google)
    Comprei o livro do Damásio há dois dias. Ainda vou no início.
    Um abraço do Raimundo Narciso

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