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terça-feira, 14 de janeiro de 2014

MIRANTE


Tenho a satisfação de ser co-fundador, na boa companhia de dois magníficos Amigos, o José Carlos Oliveira e o Gustavo Faria (este de longuíssima data), do movimento MIRANTE. No processo de fundação, e como é natural, discutiu-se muito a denominação, pois ela, para além da óbvia relevância funcional, implicava ao mesmo tempo uma tomada de posição relativamente ao carácter mais local ou mais universal da acção a ser desenvolvida pelo movimento emergente. O resultado desse debate, traduzido no voto unânime expresso pelos participantes na Assembleia Geral constituinte, parece-me muito feliz. A esse debate apeteceu-me juntar um esclarecimento complementar. O texto já foi redigido há mais de 15 dias, no rescaldo da Assembleia. Pedi na altura que o enviassem por e-mail a todos os membros do Movimento. Mas verifico agora que algumas pessoas não o receberam. É natural. O nosso secretariado ainda não está completamente instalado. Mas para colmatar a falha, coloco agora o texto aqui; também como forma de melhor divulgar esta iniciativa cívica em defesa da Cultura e do Desenvolvimento. Aqui fica à consideração de todos os Amigos FB, sejam ou não sejam membros do MIRANTE. Aos que ainda não forem, espero que a leitura motive o desejo de se inscreverem – tanto mais que basta assinar uma ficha, dado não haver nenhuma exigência de pagamento de quota. Aqui fica.

 

 

MIRANTE – Movimento para a Cultura e Desenvolvimento

Breve esclarecimento sobre uma denominação

 

Toda e qualquer acção humana se gera a partir de um topos, de um espaço singular concreto – assim como também de um tempus ou cronos, de um momento no devir temporal. Ela é sempre localizada, no sentido em que nasce e se desenvolve a partir de um ponto no espaço. Um mirante, na sua dimensão física, de materialização arquitectónica, transporta consigo o rico significado simbólico de ser o ponto donde o olhar se estende, projectando-se sobre os múltiplos pontos constitutivos de um amplo horizonte. Ou, dito de outro modo, o ponto a partir do qual o olhar se expande para o infinito. Nesse sentido, o mirante cria universalidade. Na projecção visual nele implicada, por definição, dá-se o processo simbólico de universalização de valores locais. De forma paradoxal é a localização do olhar que promove a sua deslocalização, criando universalidade em vez de particularidade. É esta visão larga que serve de fundamento à concepção camoniana de Pátria e de patriotismo, em oposição à atávica e panegírica concepção nacionalista de enaltecimento de elementos regionais.

Mas o valor simbólico do mirante é ainda mais largo. Nele a referida projecção é simultaneamente uma concentração, um chamamento, dado que o seu expandir atrai. Porque a sua essencial função consiste em proporcionar o desfrute de várias perspectivas. É, por isso mesmo, lugar excepcional, ponto de observação privilegiado. Ele atrai o olhar ao mesmo tempo que o expande, no sentido em que nos seduz a olhar a partir dele, pois de ali se vê mais e melhor. Como diria Garrett, «do mirante a que subimos, pode-se formar perfeita ideia […]». É o goetheano (ou fáustico) sítio da elevada contemplação.

«Hier ist die Aussicht frei,
Der Geist erhoben.»

[A vista é livre aqui,
O espírito elevado.]

 

Eis aqui as razões profundas pelas quais, na minha óptica, o nosso Movimento não devia incluir Caxias na sua denominação. Isso iria tornar-se não só um factor de exclusão ditado por bairrismo estéril, como também, e fundamentalmente, um elemento contrário ao pretendido espírito universal e negador da valiosa simbologia associada à memória do desaparecido património arquitectónico caxiense que serviu de inspiração à denominação aprovada na Assembleia Geral Constituinte realizada no passado dia 21 de Dezembro.

No seguimento do frutuoso debate então realizado, afigurou-se-me útil legar a todos os membros do nosso emergente Mirante esta pequena nota de esclarecimento tendente a fundamentar a deliberação tomada.

João Maria de Freitas-Branco

Caxias, 27 de Dezembro de 2013

NOTA: Este texto foi inicialmente publicado no Facebook. 

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Brevíssimo comentário em dia de luto nacional por Eusébio


Assistimos nas últimas horas ao ressuscitar da polémica dos mortos de mérito e da legitimidade de acesso ao Panteão nacional. Até se viu, na própria hora das exéquias de Eusébio, alguns virem a terreiro agitar a bandeira dos seus mortos, declarando merecerem estes maior veneração do povo lusíada do que esse outro que por aí tinha andado a correr atrás de um objecto esférico. Cada um tem os seus mortos, e para quase todos os seres humanos o que é seu vale mais e é melhor. Mas convenhamos ser no mínimo impróprio, e até deselegante, vir proclamá-lo publicamente no preciso momento em que o morto de muitos outros é sepultado.

O culto do morto, e em particular do morto que em vida protagonizou acção exemplar, é elemento constitutivo do mais profundo da essência humana. Na história da vida, essa atenção substitutiva de uma aparente pretérita indiferença é, em si mesma, coisa fundadora do humano, da humanidade do homo. Evidente, por isso mesmo, porque o acto nos humaniza, a necessidade de atender ao morto, e, em particular, ao que antes foi ilustre vivo. Mas será um Panteão a forma mais inteligente de o fazer? E será a mais eficaz? Contribuirá de facto para o efectivo conhecimento dos méritos do tumulado? Para um aproximar referencial? Quantos cidadãos portugueses visitaram o Panteão? Quantos sabem quem lá está sepultado? Qual a percentagem dos que sabem onde se situa o dito Panteão? E não estará um Panteão inevitavelmente refém da ideologia dominante, sendo por isso, inevitavelmente, um factor discriminatório? Como estabelecer critério objectivo de escolha dos mortos de mérito? Não sei se confesso imperdoável piáculo ou vergonha inapagável, mas em respeito pela pura verdade devo dizer não possuir memória clara de alguma vez ter posto o pé no interior do nosso Panteão.

Seja-me permitido o atrevimento de lembrar a alguns ilustres colegas intelectuais o seguinte:

Quando um ser humano consegue exercer a profissão que abraçou em vida com grau de excelência que dele faz um dos melhores em toda a história dessa actividade, afigura-se-me ser isso facto merecedor de admiração, quanto mais não seja pela invulgaridade;

Quando um ser humano consegue, com seu engenho e arte, semear felicidade na alma de milhões de outros seres humanos, parece-me isso merecer veneração;

Quando um homem, ao longo de toda uma carreira profissional, exibe comportamento exemplarmente bondoso, ao ponto de se tornar um paradigma daquilo a que gosto de chamar bondade desportiva, creio ser isso merecedor de particular estima.

Foi isto que Eusébio conseguiu em vida. É isto que justifica que nos curvemos perante a sua figura, prestando digna homenagem ao morto.

Caxias, 7 de Janeiro de 2014