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sexta-feira, 25 de março de 2022

Neblina em tempo de guerra

 

Há cerca de duas semanas, deparei com a seguinte afirmação de Raimundo Narciso no Facebook:

«Como sabereis o Sr Zelensky poderia ter evitado esta guerra bastava-lhe informar o Sr Putin que desistira de aceitar os insistentes convites de Washington para aderir à NATO. Ora, contra o que a Casa Branca prometera a Gorbatchov em 1990, a NATO avançou desde 1997 para o cerco à Rússia estabelecendo-se em mais 14 países do Leste europeu, a toda a sua volta. »

A primeira afirmação surpreendeu-me, dada a sólida cultura político-militar deste meu amigo e conhecido combatente antifascista. A segunda declaração é uma verdade factual que qualquer pessoa intelectualmente honesta subscreve (sendo que há gente poderosa a querer ocultá-la, disfarçá-la e até mesmo negá-la), mas que neste preciso momento, no contexto da agressão bélica da Rússia, dá azo a interpretações ambíguas, tendencialmente justificativas da decisão de Putin e recorrendo à habitual argumentação adversativa (sou contra Putin, mas…, condeno, contudo…, no entanto…, abundam por aí os exemplos), argumentação que os que a usam parecem não sentir como eticamente inaceitável no momento histórico presente. Além disso, reforçando a ambiguidade, ou até mesmo a intenção de justificar uma ilegalidade criminosa (a invasão da Ucrânia), o texto acompanhava a imagem de um cartoon em que o presidente dos EUA, Joe Biden, é representado de pé, com as mãos a escorrer sangue e pisando uma montanha de cadáveres de vítimas da política americana nas últimas décadas, em vários cantos do globo.

No actual contexto bélico, as afirmações e a divulgação do cartoon mereceram-me o seguinte breve comentário sob a forma de carta aberta:

 

Raimundo, caríssimo Amigo,
Será que acreditas mesmo que «o Sr. Zelensky poderia ter evitado esta guerra, bastando para isso ter «informado o Sr. Putin que desistia de aceitar os insistentes convites de Washington para aderir à NATO? Acreditas mesmo que o tirano de Moscovo ouvia a declaração do Sr. Zelensky e de imediato desistia do titânico plano belicista de invasão da Ucrânia, plano meticulosamente delineado ao longo de dois anos (pelo menos)?

Quanto ao “boneco exibido”, é incontestável que retrata uma trágica realidade; mas dizer uma verdade, por mais sólida que ela seja, pode ser acto pouco digno em determinado contexto. Se não me equivoco, o caso vertente disso mesmo é exemplo. Porque, queiramos ou não, a verdade que o cartoon por ti publicado transporta concorrerá, inevitavelmente, na presente situação, para uma qualquer forma de justificação do injustificável: a invasão da Ucrânia pelo exército russo e a consequente inauguração de uma guerra que ameaça a paz mundial. Abraço.
[Facebook, 12 de Março de 2022; não junto resposta do destinatário porque ele não a deu.]

 

O que me motivou a trazer aqui estes escritos é uma minha preocupação de fundo que se tem vindo a agravar com a observação de opiniões publicadas, disseminadas por vários espaços públicos. Qual é essa minha preocupação? É a seguinte: num momento histórico exigente de elevada lucidez está a adensar-se uma neblina mental no plano das elites; está a agudizar-se de forma acelerada uma crise do pensamento.

Voltarei recorrentemente ao tema por o considerar essencialíssimo no tempo presente.

João Maria de Freitas Branco

GUERRA


Entramos hoje no segundo mês de guerra na Ucrânia, um conflito que para além das tragédias já causadas constitui, hora a hora, uma ameaça para o mundo. Neste dia de passagem do primeiro para o segundo mês de guerra vem-me à memória a seguinte afirmação do escritor George Orwell depois de ter vivenciado a guerra em solo espanhol, na Catalunha, nos anos 30 do século passado:

«O facto é que todas as guerras padecem de uma espécie de degradação progressiva a cada mês que passa, porque coisas como liberdade individual e imprensa de confiança são simplesmente incompatíveis com a eficiência militar»

JMFB, 25 de Março de 2022

terça-feira, 22 de março de 2022

Guerra e Crise do pensamento

 

Vejo que a guerra actual suscita por aqui (em algumas páginas) acesas polémicas em que se contabilizam méritos dos exércitos dos EUA, da URSS e de outros Aliados no desfecho da segunda Grande Guerra. Isso motiva-me a enunciar três interrogativas:

 

Não será intolerável desrespeito para com todos os que corajosamente combateram o nazi-fascismo enveredar por exercícios contabilísticos? Não será atitude portadora de inadmissível deselegância ético-política? Ou será uma das faces visíveis da grande crise do pensamento?

João Maria de Freitas Branco
22 de Março de 2022

 

quinta-feira, 3 de março de 2022

SINAIS ALARMANTES

Quando ao início da tarde me dedicava a percorrer os principais canais televisivos em busca das últimas notícias sobre o conflito bélico que neste momento monopoliza a nossa atenção, apercebi-me do corte do sinal do canal RT que, como se sabe, é uma rede televisiva internacional com directa ligação ao Estado russo. No ecrã do televisor apareceu-me, sobre fundo negro, a seguinte nota informativa:

«A emissão deste canal está proibida por decisão do Regulamento EU 2022/350 do Conselho, de 1 de Março de 2022».

Será que esta decisão é aceitável à luz dos valores democráticos? Esta proibição não põe em causa a liberdade de imprensa? Não está o Conselho da União Europeia a adoptar um regulamento censório e, assim sendo, contrário aos princípios da União Europeia?

Ao que me é dado saber, a agência de notícias russa Sputnik foi também abrangida pela decisão do Conselho da EU.

Mas há mais. Têm vindo a verificar-se outras “proibições” que atingem personalidades de nacionalidade russa, incluindo artistas e directores de instituições culturais. Retenha-se esta notícia publicada ontem num jornal italiano, dando conta do despedimento do aclamado maestro russo Valery Gergiev (ocupava o cargo de director da Orquestra Filarmónica de Munique) por não ter condenado a invasão da Ucrânia e ser amigo de Putin:

«Sulla scelta della star mondiale del melodramma [Anna Netrebko] pesa, senza ombra dubbio, la guerra in Ucraina e la decisione - del sindaco Beppe Sala e del Piermarini - di allontanare dal teatro il direttore d'orchestra Valery Gergiev, amico personale di Vladimir Putin e messo alla porta perché non si è schierato apertamente contro l'invasione russa.»

A célebre soprano Anna Netrebko, russa, já não vai subir ao palco no próximo dia 9, no Scala de Milão. Vários teatros na Alemanha, na Holanda, em Itália, já anunciaram a intenção de cancelar os concertos com Gergiev que é o mais notabilizado maestro russo da actualidade.

Quem toma estas decisões diz combater a falta de liberdade na Rússia e o ditador Putin. Estranha atitude: denunciar a censura censurando; evocar a liberdade impedindo a liberdade de opinião.

Tudo isto me parece extremamente preocupante.

João Maria de Freitas Branco
Caxias, 2 de Março de 2022

 

NOTA: Para quem estiver interessado em ler na íntegra o Regulamento aprovado, informo que ele foi hoje publicado no Jornal Oficial da União Europeia, podendo ser consultado na Internet.

Comentário do meu amigo e compositor Carlos Alberto Augusto que merece ser lido:

Ainda vai correr muita tinta por causa destas proibições, sanções e outras reacções. Racismo, intolerância, perseguições, revanchismo, atropelamento de direitos democráticos, correm livres, por todo o lado, aqui também em Portugal. Não tarda vai valer tudo. Verifico que se aceita tudo isto com bonomia, diria mesmo, com não escondida satisfação. E nunca o ditado "no melhor pano cai a nódoa" foi tão verdadeiro. Estamos num estado de pré-fascismo, transversal a toda a sociedade. Exagero? Vamos ver...
Carlos Alberto Augusto, Facebook, 2 de Março de 2022

A minha resposta: 

Carlos Alberto, é terrível dizê-lo, mas inclino-me a considerar que não pecas por exagero. Repara, por exemplo, na situação dos EUA, com uma guerra fria civil a decorrer há largos meses e com o Partido Republicano convertido ao autoritarismo neofascista de Trump, ou na situação em França, em que destacadas personalidades falam abertamente de guerra civil já iniciada! E onde estão as forças organizadas capazes de contrariar as novas vagas explicitamente antidemocráticas e totalitárias? Nos anos 1920/30 existiam, e mesmo assim foi necessário travar uma guerra mundial. Muito perturbador...

 

Carlos Alberto Augusto, um acrescento à minha primeira resposta: repara como bastam estas poucas dezenas de reacções ao meu escrito para se poder exemplificar/demonstrar a aceitação por ti referida, seja ela acompanhada de mais ou de menos bonomia. Chegámos a pensar que a Escola pública e os anos de vivência democrática tinham gerado sólida imunidade ao "vírus" do autoritarismo neofascista. Não por acaso, desde o berço da civilização o ilusionismo foi uma forma de diversão que granjeou enorme sucesso. O sapiens é um ente que se ilude e auto-ilude. Abraço.
João Maria de Freitas Branco
3 de Março de 2022