Quando ao início da tarde me dedicava a percorrer os principais canais televisivos em busca das últimas notícias sobre o conflito bélico que neste momento monopoliza a nossa atenção, apercebi-me do corte do sinal do canal RT que, como se sabe, é uma rede televisiva internacional com directa ligação ao Estado russo. No ecrã do televisor apareceu-me, sobre fundo negro, a seguinte nota informativa:
«A emissão deste canal está proibida por decisão do Regulamento EU 2022/350 do Conselho, de 1 de Março de 2022».
Será que esta decisão é aceitável à luz dos valores democráticos? Esta proibição não põe em causa a liberdade de imprensa? Não está o Conselho da União Europeia a adoptar um regulamento censório e, assim sendo, contrário aos princípios da União Europeia?
Ao que me é dado saber, a agência de notícias russa Sputnik foi também abrangida pela decisão do Conselho da EU.
Mas há mais. Têm vindo a verificar-se outras “proibições” que atingem personalidades de nacionalidade russa, incluindo artistas e directores de instituições culturais. Retenha-se esta notícia publicada ontem num jornal italiano, dando conta do despedimento do aclamado maestro russo Valery Gergiev (ocupava o cargo de director da Orquestra Filarmónica de Munique) por não ter condenado a invasão da Ucrânia e ser amigo de Putin:
«Sulla scelta della star
mondiale del melodramma [Anna Netrebko] pesa, senza ombra dubbio, la guerra in Ucraina e la decisione - del sindaco Beppe Sala e del
Piermarini - di allontanare dal teatro il direttore d'orchestra Valery
Gergiev, amico personale di Vladimir Putin e messo alla porta perché non si è
schierato apertamente contro l'invasione russa.»
A célebre soprano Anna Netrebko, russa, já não vai subir ao palco no próximo dia 9, no Scala de Milão. Vários teatros na Alemanha, na Holanda, em Itália, já anunciaram a intenção de cancelar os concertos com Gergiev que é o mais notabilizado maestro russo da actualidade.
Quem toma estas decisões diz combater a falta de liberdade na Rússia e o ditador Putin. Estranha atitude: denunciar a censura censurando; evocar a liberdade impedindo a liberdade de opinião.
Tudo isto me parece extremamente preocupante.
João Maria de Freitas Branco
Caxias, 2 de Março de 2022
NOTA: Para quem estiver interessado em ler na íntegra o Regulamento aprovado, informo que ele foi hoje publicado no Jornal Oficial da União Europeia, podendo ser consultado na Internet.
Comentário do meu amigo e compositor Carlos Alberto Augusto que merece ser lido:
Ainda vai correr
muita tinta por causa destas proibições, sanções e outras reacções. Racismo,
intolerância, perseguições, revanchismo, atropelamento de direitos
democráticos, correm livres, por todo o lado, aqui também em Portugal. Não
tarda vai valer tudo. Verifico que se aceita tudo isto com bonomia, diria
mesmo, com não escondida satisfação. E nunca o ditado "no melhor pano cai
a nódoa" foi tão verdadeiro. Estamos num estado de pré-fascismo,
transversal a toda a sociedade. Exagero? Vamos ver...
Carlos Alberto Augusto, Facebook, 2 de Março de 2022
A minha resposta:
Carlos Alberto,
é terrível dizê-lo, mas inclino-me a considerar que não pecas por exagero.
Repara, por exemplo, na situação dos EUA, com uma guerra fria civil a decorrer
há largos meses e com o Partido Republicano convertido ao autoritarismo
neofascista de Trump, ou na situação em França, em que destacadas
personalidades falam abertamente de guerra civil já iniciada! E onde estão as
forças organizadas capazes de contrariar as novas vagas explicitamente antidemocráticas
e totalitárias? Nos anos 1920/30 existiam, e mesmo assim foi necessário travar
uma guerra mundial. Muito perturbador...
Carlos Alberto Augusto, um acrescento à minha primeira resposta: repara
como bastam estas poucas dezenas de reacções ao meu escrito para se poder
exemplificar/demonstrar a aceitação por ti referida, seja ela acompanhada de
mais ou de menos bonomia. Chegámos a pensar que a Escola pública e os anos de
vivência democrática tinham gerado sólida imunidade ao "vírus" do
autoritarismo neofascista. Não por acaso, desde o berço da civilização o
ilusionismo foi uma forma de diversão que granjeou enorme sucesso. O sapiens é
um ente que se ilude e auto-ilude. Abraço.
João Maria de Freitas Branco
3 de Março de 2022
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