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sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Pensar o Homem com Ray e Allen


Quando os seres humanos são levados a traçar o perfil da sua essencialidade, envolvendo-se em processo de auto-caracterização, é notória a inclinação narcísica. Até mesmo no plano do discurso mais erudito (filosófico, científico), em que se declara estarem pressupostas exigências de rigor, objectividade, profundidade, até mesmo aí fácil é verificar como em todas as várias fases históricas de auto-reflexão, a contaminação do narcisismo marcou presença. Daí que ao falar de si o ser humano tenda a ignorar ou a ocultar, lançando para a penumbra, características menos nobres, menos grandiosas, menos dignas de incontroversa admiração. Na feitura do auto-retrato, na selfie (ou selfy) à sua essência (para ser bem moderno no dizer), o Homem remete para essas zonas de sombra uma das suas mais fundamentais características definidoras: a credulidade. Tanto ou mais do que homo sapiens, somos homo credulus. Ser crédulo terá sido, com boa probabilidade, um factor evolutivo relevante, uma vantagem adaptativa no quadro do processo darwínico. Aí residirá a razão mais profunda dessa distintiva.

Mas a coisa não fica por aqui. Esconde-se, também, envergonhadamente, outro aspecto capital: o facto da vivência da credulidade ser gratificante. Temos aqui o modelo típico daquilo que em psiquiatria e neurobiologia se designa por circuito do prazer; a sequência pena/recompensa.

Estão presentemente em exibição nas nossas salas de cinema duas obras de arte cinematográfica que nos convidam a pensar esta vertente da essência do humano ao mesmo tempo que a filmam com a mestria própria dos autores em questão. Isso aqui me traz, com o mero intuito de deixar algumas observações críticas que, ao mesmo tempo, funcionem como recomendação, ou seja, que possam servir de incentivo a uma ida ao cinema. É essa uma forma de contrariar eventuais e inconvenientes efeitos inibitórios do desejo de ida ao espectáculo produzidos pela atitude de alguns críticos de serviço (até em jornais de referência) que se apressaram a colar o rótulo de medíocre neste mais recente trabalho de Woody Allen. Como se pode atribuir apenas duas estrelas (na habitual escala de 0 a 5) a uma obra cinematográfica com aqueles diálogos recheados de humor inteligente, transportando grande seriedade reflexiva, com uma construção narrativa tão conseguida, plena de efeitos surpresa bem arquitectados, com aquele tão elevado nível de representação, com a sedutora Cote d’ Azur a encher o ecrã, com um extraordinário bom gosto musical espraiando-se do universo sinfónico beethoveniano até Cole Porter? Quem merece menos de duas estremas é todo o crítico que assim ajuíza. Um despautério snobe que incomoda. Mas isto é apenas desabafo, pois todos sabemos que tal como há bons e maus realizadores também há, necessariamente, bons e maus críticos de cinema. Faz parte da natureza das coisas de humana iniciativa.

As obras em questão são as seguintes: Mahapurush (O Santo), realizado por Satyajit Ray em 1965, e Magic in the Moonlight (Magia ao Luar), de Woody Allen (2014).

Independentemente de tudo, e é muito, que diferencia os dois filmes – estilos, origem, data de realização, construção narrativa, técnicas de filmagem, etc. –, para além do foco temático as obras convergem no constante recurso ao humor inteligente, profundo, irónico, sarcástico e corrosivo. No entanto, para minha pessoal surpresa, nas sessões onde estive (nomeadamente na do cinema Nimas, com sala cheia de um público considerado de elite) os atentos espectadores não riam, nem me pareceu que esboçassem frequentes sorrisos. Certo é que nada semelhante ao riso franco, à gargalhada, foi para mim audível naquelas salas de projecção cinematográfica da nossa capital europeia. A certa altura, no espaço do Nimas, até dei comigo a conter-me para que as gargalhadas que me saltavam não fossem demasiado exuberantes e, nessa medida, eventualmente incomodativas para os outros espectadores, meus companheiros de circunstância, a começar pelo sujeito sentado ao meu lado direito que, de principio a fim se manteve sisudo, como se estivesse a assistir a pungente drama. No caso da película de Woody Allen, projectada também em sala frequentada por gente com nível de escolaridade elevado (servindo as elites da linha do Estoril) reparei que o público só começou a rir na parte final do filme, quando parece haver uma deriva temática e o enredo se centra na questão amorosa e nas duas hipóteses de casamento em aberto. A enérgica denúncia da credulidade, da crendice, da irracionalidade e da infinitude da estupidez humana que lhe está estruturalmente associada, o ostensivo gozar artístico com todas essas fraquezas ou deficiências do humano não é bem aceite e ainda menos assimilado. Provoca atitude reticente. Desde logo porque os espectadores são seres humanos – homo sapiens credulus, como talvez se devesse classificar com ganho de científico rigor.

A racional denegação do sobrenatural é uma construção complexa resultante de enorme investimento de esforço intelectual. É atitude artificial. A atitude natural, espontânea é a da crença no sobrenatural, nas forças do oculto, bem como o enamoramento pelo mistério, elemento sempre tão sedutor para a nossa mente, como se possuísse um certo magnetismo. Volto a sublinhar que o processo de vivência da crença no sobrenatural origina recompensa, no sentido psiquiátrico, psicológico ou neurológico do termo. Algo que é cinematograficamente bem explicitado pelos dois realizadores, Satyajit Ray e Woody Allen. Com o talento que lhes é reconhecido, ambos, de modo diferente mas igualmente bem conseguido, dirigem a câmara captando a essência da credulidade humana. Filmam a credulidade; dão-lhe expressão imagética, cinematográfica. Ray fazendo a câmara sobrevoar o espaço em que decorre a sessão do mágico, ou fazendo-a circular no meio da plateia, focando os rostos dos seres extasiados perante a actuação do Santo; Allen através dos planos em que capta o sorriso de ingénuo encantamento enchendo e iluminando o rosto da velha milionária deleitada com as supostas respostas do falecido marido ao seu rigoroso inquérito amoroso, não por acaso as exactas réplicas que ardentemente desejava escutar na sessão de espiritismo que decorre na sua mansão. Portanto, a troça irónica, o humor caustico que em ambos os filmes apimenta a intencional denúncia da fraude do “Santo” (o mágico) e da médium Sophie, em Magia ao Luar, denegando a existência das tão atraentes forças do sobrenatural, fere sensibilidades. Muitos espectadores sentem-se, de alguma maneira, postos em causa. Se não incorro em engano, o que lhes chega do ecrã provoca-lhes incómodo mental e inibe o riso; a vontade de soltar gargalhada não chega a despertar na sua alma de homo credulus. Uma das pessoas que me fazia boa companhia na ida ao cinema, no final, ao comentar comigo a ausência de riso e seus eventuais motivos, logo inteligentemente recordou o peso da cultura católica na nossa sociedade.

Tanto na esfera privada como pública, tenho visto ser endereçada uma enfática acusação a Woody Allen que pode ser resumidamente enunciada do seguinte modo: acreditar num espírita e na possibilidade de dialogar com os mortos é coisa completamente diferente da crença na existência de Deus, tal como ela se manifesta, por exemplo, no catolicismo (para apenas citar o caso da fé religiosa que nos é mais próxima). Na opinião destes opositores o realizador confunde dois tipos distintos de crença. Utilizando imagem em voga nestas nossas paragens, pode dizer-se que consideram existir a crença boa (religiosa) e a crença má (da magia, do espiritismo, da cartomancia, etc.), eventualmente fraudulenta.

Iludem-se os acusadores. Aquele sujeito que acredita na omnipotência de uma divindade pessoal, na vida para além da morte, na ressurreição de Cristo, nos milagres, nas aparições de Fátima (ou outras), na autonomia das almas que libertando-se do corpo ascendem ao céu paradisíaco ou tombam na profundeza do inferno, esse sujeito é sempre alguém que, independentemente da religião que professe, está naturalmente disposto a aceitar como verdade a hipótese de dialogar com os mortos, de voltar a poder comunicar com os seus entes queridos entretanto desaparecidos do mundo dos vivos. Esta disponibilidade mental (disposição intima, essencial) para acreditar em tudo isso sem exigência de provas ou de sólida fundamentação racional é necessária consequência da crença dogmática, da aceitação dos dogmas da sua Igreja, da sua religião, do seu culto, do seu Deus. Como seria possível aceitar o dogma da vida eterna (do mundo dos mortos contraposto ao dos vivos) e simultaneamente não aceitar uma qualquer possibilidade de falar com os mortos, de regressar ao convívio? Seria uma total contradição. Pois não é notório que fazendo fé na autenticidade da vida eterna os mortos não podem estar totalmente mortos? E assim sendo, a parte desse ser que se supõe permanecer viva para além do túmulo, a sua alma, ou o que se lhe queira chamar, será o elemento que intervém possibilitando o tal fantástico diálogo com o outro ausente; ausente do nosso reino, do aquém, mas presente no espaço metafísico do além. E neste contexto de problematização não resisto a evocar uma notícia que, quase diria por feliz coincidência, acaba de ser posta a circular pela comunicação social britânica, tendo formidável valor exemplificativo para a nossa reflexão: uma jovem inglesa enviava mensagens, SMSs, para o telemóvel da avó falecida em 2011, mas que, por vontade expressa, tinha levado consigo alguns objectos de uso pessoal, incluindo o seu telemóvel; com o profundo desgosto da perda do ente querido, a jovem decidiu continuar a escrever SMSs para a avó, sentido conforto nesse gesto de enviar mensagens para o telemóvel sepultado, dando conta das suas desventuras. Subitamente, este procedimento do foro privado ganha dimensão de notícia mundial. Porquê? Porque a jovem recebeu resposta da avó morta há mais de 3 anos! Milagre!! A mensagem da vovó era concisa mas incisiva e coerente. Dizia: “Estou a olhar por ti. Aguenta-te!” A neta ficou desnorteada, envolta num dilúvio emocional povoado de contradições, entre o espanto, o susto, a alegria, o medo, o não saber que fazer. Segundo confessa, passaram-lhe de imediato pela cabeça as coisas mais espantosas, fantasiou descontroladamente, aventando todo o tipo de hipóteses sobre as causas sobrenaturais, sobre as forças ocultas causadoras de tão assombroso acontecimento – o primeiro contacto de um morto com o reino dos vivos através de SMS. Uma fantástica modernização do hábito das almas do outro mundo. Tudo lhe passou pala cabeça excepto o óbvio: o número de telefone tinha sido entretanto atribuído a outra pessoa, essa bem viva, que, farta de receber lamúrias por SMS no seu telemóvel, resolveu responder. Faço notar que a jovem adulta que estava convencida de ter recebido o primeiro SMS do além, redigido por saudosa alma querida, é uma cidadã escolarizada de um país europeu representativo do topo da civilização humana do século XXI. A hipótese óbvia, a simples explicação racional chegou a essa mente, de uma saudável jovem cidadã do nosso maravilhoso mundo civilizado, em último lugar; e ao que julgo saber, trazida de fora, pela mão da companhia telefónica que se sentiu na necessidade de apresentar um formal pedido de desculpa pelos danos emocionais involuntariamente causados.

Na paisagem humana há uma clivagem profunda, uma ruptura mental essencial, mas que não se situa onde os acusadores de Allen a colocam – entre géneros de crenças. O que existe são dois tipos de seres humanos: os crentes (tipo A) e os cépticos (tipo B); os amigos do sobrenatural e os negadores do sobrenatural; entre aqueles em que predomina o instinto da ininteligibilidade (culto do mistério) e aqueles em que predomina o instinto da inteligibilidade (desvendamento do mistério). Há aqui profunda ruptura. Dois tipos distintos. Formatações mentais essencialmente diferentes. Se bem que, em abono do rigor, se deva adicionar a afirmação de que nenhum sujeito real é um puro tipo A ou um puro tipo B. Essas purezas absolutas não existem na paisagem humana real. Acrescente-se ainda que um dos tipos referidos, aquele a que chamei A, é, foi e, com enorme probabilidade, continuará a ser, por vasto tempo, esmagadoramente maioritário. E adivinhando poder haver quem suponha serem os ateus, todos eles, por definição, lídimos representantes do tipo minoritário (o tipo B), apresso-me a dizer ser essa uma outra ilusão frequente. Uma grande parcela (maioria?) dos seres humanos que se dizem ateus é, de facto, pertença da irmandade dos crentes; são sujeitos tipo A e não B, como vulgarmente se supõe. Porquê? Porque o ateu tradicional, o ateu dogmático é o mais puro crente: é um crente na não-existência de Deus. Um crente tão fervorosamente crente como qualquer outro crente obediente ao seu Deus, seguidor de uma fé religiosa. O ateu critico-racional, não dogmático, andando de braço dado com o espírito científico (com a Ciência) não tem nenhuma crença na não-existência de deuses, sejam eles quais forem. Para ele não se trata nunca de uma questão de crença, mas sim de uma questão de presença/ausência de prova efectiva, de fundamentação racional; de prova construída pela Razão e pelo experimentalismo que a materializa.

A meu ver, Woody Allen comete dois “erros” grosseiros. Coloco aspas para que fique bem claro não haver da minha parte intensão de atacar o realizador no plano artístico. O que ele faz é absolutamente legítimo. A realização de um filme é um exercício de livre criatividade artística e não um tratado filosófico ou científico, sendo por isso lícito o procedimento do realizador, as suas opções estéticas. A minha objecção crítica situa-se no estrito plano da ideação.

Em primeiro lugar, é passada a ideia de que um racionalista, um céptico, um adepto do espírito científico e da atitude critico-racional (atitude científica), um não crente, é por definição um ser frio, seco, despido de veia romântica, pobre de emoções, desatento e inábil nos terrenos do amor, das paixões. Essa ideia é um completo disparate. Trata-se, no fundo, de outra arreigada crença que por efeito da ignorância e da não menos omnipresente estupidez humana perdura mesmo anos depois de as neurociências terem demonstrado experimentalmente a relevância, ou melhor, a indispensabilidade das emoções na construção do juízo racional consequente (adaptado à realidade a que tem que dar respostas eficazes). Justo será recordar dever-se em grande parte a um cientista português, António Damásio (embora frequentemente citado em prestigiadas publicações como sendo americano, por ter sido nos EUA que pôde desenvolver o seu trabalho, usufruindo dos excepcionais meios técnico-financeiros e culturais disponibilizados por essa pátria), deve-se a esse cientista português o experimentalismo científico que nos legou as evidências da unidade sistémica complexa (sistema de sistemas) entre a bioquímica das emoções e a arquitectura neuronal, de natureza igualmente bioquímica, associada ao raciocínio lógico (Razão). A mente racional é efeito dessa unidade complexa. A disfuncionalidade da vertente emocional compromete de imediato a competência da Razão, impedindo ou dificultando (em função da grandeza da disfunção) a resposta comportamental adequada ao desafio colocado ao sujeito no quadro da sua inserção espácio-temporal na realidade mundana.

O bom e autêntico racionalista não é um ser apoucado de emoções. Não está refém dessa inflexibilidade, dessa rigidez mental observada no personagem do filme. Um racionalista possui os instintos de qualquer outro ser humano. A diferença é que, na combinação do inato e do adquirido, se desenvolveu nele em mais elevado grau o instinto racional, coisa que lhe permite estruturar as embriaguezes românticas, as raivas, as paixões desregradas, os impulsos irracionais, não se deixando enredar na crendice. Ai se alicerça o cepticismo crítico racional denunciador da fraude associada à crença no sobrenatural.

 O segundo “erro” grosseiro em que Woody Allen incorre está associado à já referida noção de recompensa: é a ideia que o filme acaba por fazer passar de que a fraude do sobrenatural, enquanto expressão do irracional, não passa, no fundo, de uma falsidade inofensiva. Se a velha viúva milionária fica feliz com as ilusões, mentiras, falsidades transmitidas pela médium e se a verdade só lhe podia causar tristeza, dor, desespero, então para quê a preocupação da denúncia da fraude? Se a ilusão é recompensadora, então tem, ao que tudo indica, algum efeito benéfico, não havendo razão para alarme nem se justificando a denúncia racionalista/céptica que até pode revelar-se inconveniente ao apagar a chama da recompensa. Claro que há ainda a vertente ético-jurídica do enriquecimento ilícito, da publicidade enganosa, da venda de gato por lebre, tudo aspectos menos relevantes para o nosso contexto analítico, que se pretende filosófico. Por isso os deixo de lado.

A primeira resposta para estas interrogações consiste em recordar uma regra ou princípio geral: o ser melhor ter-se conhecimento do que viver-se mergulhado na ignorância; verdadeiro e falso não têm a mesma cotação, seja no mercado do pensar ou no do agir. Este argumento chega a ser apresentado pelo personagem Stanley, o racionalista. Mas é insuficiente. O que se esconde por traz da crença no sobrenatural – isso a que costumo chamar irracionalidade à solta –, assim como as forças envolvidas nas prolixas acções da pseudociência constituem, no seu todo, um enorme perigo e uma seriíssima ameaça civilizacional. O que nas duas películas é simbolizado pelas figuras do Santo e da médium Sophie, é aquilo a que ao longo de anos tenho insistido em chamar cultura da confusão. A sua acção injecta confusão no corpo societal. Esse sistemático cultivo da confusão actua como um vírus causador de patologia. A confusão faz com que a sociedade adoeça. Daí que ela nunca seja inofensiva, benigna, nem mesmo mal menor. É sempre um perigo maior. Porque a confusão asfixia a liberdade e fertiliza a dependência.

Como escrevi num ensaio publicado há mais de dez anos, essas acções que injectam confusão favorecem «invariavelmente as ambiências propiciadoras da obediência e do consentimento». Significa isto que desempenham relevantíssima função político-ideológico-prática em prol dos poderes instituídos ou concorrendo para a edificação e afirmação de novos poderes obstrutores da autonomia e do esclarecimento.  

Sendo dois manifestos cinematográficos contra o por mim designado de irracional à solta, na sua tradicional associação com a crença no sobrenatural, as obras de Satyajit Ray e Woody Allen, com a inteligência que caracteriza o trabalho destes dois cineastas, não deixam de pôr em evidência certos limites da racionalidade, bem como também uma arrogância, uma soberba, uma inflexibilidade não infrequentemente presentes na atitude de intelectuais do tipo B. Ray fá-lo de forma mais subtil e exigente para o espectador, recorrendo a objectos, ao jogo de xadrez, aos livros, a ambientes interiores, etc.; Allen explicita, na figura de Stanley, um certo snobismo racionalista, acentuadamente British, a que o generoso talento de Colin Firth dá corpo.

Há múltiplos motivos para ir ao cinema ver estes dois filmes; e até há suficientes ingredientes justificativos de uma certa obrigatoriedade ou dever artístico-cultural de os conhecer. Mas quero acentuar outra razão para a dispensa de cuidada atenção a estas obras, razão porventura até mais relevante do que todas as outras, se bem que inseparável do valor estético: é que estas duas criações da sétima arte inserem-se de corpo inteiro no monumental projecto emancipador da Aufklärung, assumindo os autores a consciência da necessidade histórica e civilizacional de o concluir. O gesto cinematográfico é, nestes dois casos, um intencional investimento de esforço intelectual para, como diria essa personificação da Aufklärung chamada Ludwig Feuerbach, transformar os seres humanos fazendo-os passar da condição de crentes à de pensadores – caminhando da situação de dependência rumo à não-dependência. Assim se esculpe o Homem que é pessoa completa.

 

João Maria de Freitas-Branco

Outubro de 2014

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Exausto de tanta vilania


Já não há jornada em que sobre nós não se abata revoltante escândalo, abjecta indecência ou intolerável imoralidade. Tudo isso se banalizou -- o escândalo, a falta de decência, a imoralidade, a baixeza. E com isso, o ambiente pátrio devém cada vez mais insuportável para a pessoa de bem. O caso de hoje (dia 8 de Outubro) foi o do silenciamento do Baptista Bastos. Os novos poderes agora instalados no Diário de Notícias puseram fora do jornal uma das já poucas vozes livres e de límpida lucidez crítica presentes na nossa imprensa. Todas as quartas-feiras, na coluna que assinava, o Baptista Bastos não só incitava o leitor a pensar, como também, com seriedade, profundeza e generosa inteligência crítica, nos ajudava a pensar bem; a pensar melhor. Como se pode admitir o apagar de tão enriquecedora prosa?! A aguda crise civilizacional em que nos afundamos, entre outras coisas, caracteriza-se precisamente pela ascensão do homem-massa de que Ortega y Gasset nos falou; ser que não pensa, que aprecia a embriaguez, que execra o sério, o profundo, o difícil, o esforço, a nobreza do espírito racional e se compraz na superficialidade, na futilidade, no vazio, no irracional, no gosto pela cretinização, no culto dos prazeres imediatos associado a uma néscia infantilização.

A presença do Baptista Bastos nas páginas do DN era um antídoto contra este decaimento cultural e civilizacional.

No seu último artigo, intitulado “Ponto final”, Baptista Bastos despede-se dos leitores dizendo: «Fui posto fora, mas não das palavras. Vou com elas, velhas amantes, para aonde haja um jornal que as queira e admita a indignação e a cólera como elementos de afecto, e sinais de esperança, de coragem e de tenacidade.» Vai, vai depressa, meu bom Amigo, na companhia dessas magníficas amantes tuas (nossas), para lugar aonde possas rapidamente voltar ao convívio com os leitores agora deixados órfãos e acarinhar mais ainda as amantes no continuado esforço do espalhar de luz. Não pares!

Exausto de tanta vilania mas jamais rendido, aqui expresso a minha activa indignação face à mediocridade indecente da decisão agora tomada pela gentalha que parece ter tomado conta do Diário de Notícias e endereço afectuoso abraço de solidariedade ao BB.

João Maria de Freitas-Branco

Caxias, 8 de Outubro de 2014

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O DEUS DE HAWKING


A realidade prática demonstra à exaustão que sempre que um cientista utiliza a palavra “deus” se gera imediata confusão. Aparece logo um enxame de crentes a declarar que se fulano (o cientista a, b ou c) falou de deus é porque, evidentemente, acredita na existência de deus, sendo que cada um dos opinantes dá de barato que esse deus é o seu, ou seja, só pode ser aquele em que ele acredita e nenhum outro dos mais de dois mil deuses criadores historicamente recenseados. Invariavelmente nenhuma justificação é dada para essa curiosa convicção, embora seja fácil concluir ser essa automática identificação da divindade natural resultado facto (quase sempre ignorado) de, no quadro das modernas religiões monoteístas, os crentes serem refinados ateus em relação à hipotética existência de todos os outros deuses, os associados a religiões que não professam. A forma como ao longo de décadas o pobre Einstein tem sido constantemente violentado e arrebanhado como homem cheio de fé cristã, como pessoa crente na existência do deus do catolicismo é o mais paradigmático exemplo de como a palavra “deus” na boca ou na pena de um cientista prestigiado semeia confusão e abre caminho a interpretações abusivas e deturpadoras do significado das asserções produzidas. Conhecedor desses tradicionais maus tratos, e antes que a morte o leve, Stephen Hawking resolveu pôr travão às falsas interpretações do seu pensar.

Então, para definitivo esclarecimento do que pensa Stephen Hawking sobre os deuses criadores temos agora a sua mais recente entrevista. Útil esclarecimento, uma vez que algumas mentes menos abonadas de inteligência não entenderam o que o cientista quis dizer ao referir, numa das suas obras, "a mente de Deus". Aqui fica, na versão castelhana original, a resposta do notabilizado cientista contemporâneo à habitual pergunta sobre a existência de deus:

«En el pasado, antes de que entendiéramos la ciencia, era lógico creer que Dios creó el Universo. Pero ahora la ciencia ofrece una explicación más convincente. Lo que quise decir cuando dije que conoceríamos 'la mente de Dios' era que comprenderíamos todo lo que Dios sería capaz de comprender si acaso existiera. Pero no hay ningún Dios. Soy ateo. La religión cree en los milagros, pero éstos no son compatibles con la ciencia».

Muito claro. No entanto, por uma questão de rigor, considero que o ateísmo enraizado no autêntico espírito científico não deve produzir asserções como "não há nenhum Deus" -- a usada por Stephen Hawking na citada entrevista concedida ao El Mundo e publicada na edição de 21 de Setembro deste conhecido jornal espanhol (entrevista logo traduzida para português e também publicada entre nós, na edição do semanário Expresso do passado dia 27 de Setembro). Um ateu não é um crente na não existência de deuses demiúrgicos. Para o ateu, não se trata de uma questão de crença. Deixo aqui este reparo crítico à linguagem utilizada pelo prestigiado cientista, sem que isso fira a concordância (a minha afinidade) com o essencial do conteúdo discursivo. E já que aqui estou, adiciono um outro reparo crítico: desta feita ao comentário de Carlos Fiolhais à referida entrevista (publicado no Expresso online). Diz ele que «hoje sabemos que no início do Big Bang há uma transição da não-existência para a existência. Passa-se do nada para o ser.» Para além da falta de rigor ou fundamento científico, esta afirmação peca também pelo facto de ser um perigoso convite à confusão, quando exactamente o que temos de combater é a manifestação da cultura da confusão, sermos agentes da anti-confusão. Há muitos, muitos anos atrás um grande grego chamado Aristóteles deu esclarecedora (e talvez definitiva) resposta a esta questão: do nada só pode surgir o nada.

João Maria de Freitas-Branco

Caxias, 6 de Outubro de 2014