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sábado, 27 de fevereiro de 2021

José Atalaya e Oeiras

  

Houve quem manifestasse estranheza pelo facto de o funeral do maestro José Atalaya ter decorrido no cemitério de Barcarena, no concelho de Oeiras, na passada quinta-feira (25-02-2021). Esse estranhar só pode derivar do desconhecimento da longa relação de José Atalaya com Oeiras e que aqui evoco de forma muito breve e resumida.

Foi em Paço de Arcos, vila do Município de Oeiras, nos recuados anos 40 do século passado, que o jovem José Atalaya viveu uma parte do acontecimento que por completo transformou a sua vida: o encontro com o compositor Luís de Freitas Branco, meu avô paterno. Esse encontro foi a causa da radical decisão de se dedicar à música, abandonando a engenharia que então cursava – e que curiosamente é hoje abraçada pelo seu filho Luís (homónimo do Mestre).

 Embora o início dessa decisiva relação pessoal tenha ocorrido no Alentejo, no Monte dos Perdigões, em Reguengos de Monsaraz (propriedade que no século XVI pertenceu a um ilustre antepassado do compositor, Frutuoso de Góis, meio-irmão do célebre humanista renascentista Damião de Góis), a verdade é que a relação que tão profundamente influiu na formação e na definição do rumo profissional de José Atalaya se prolongou e intensificou nesses arredores da capital onde Luís de Freitas Branco viveu nos últimos anos da sua vida, mais precisamente na “Vivenda Stuc”, em Paço de Arcos. Atalaya foi um dos mais assíduos participantes nos longos convívios que aí eram promovidos pelo anfitrião e que se traduziam, na prática, numa espécie de universidade informal que estimulou intelectualmente várias das principais figuras da cultura musical portuguesa de uma geração, como foi o caso de Joly Braga Santos ou o de Fernando Lopes-Graça. (Para mais informação sobre o funcionamento desse peculiar espaço de formação artístico-intelectual veja-se o meu livro Luís de Freitas Branco – O intelectual em Paço de Arcos, Mazu Press, 2019.)

Mais tarde, foi também em Oeiras, com o forte apoio do presidente da Câmara, já então Isaltino de Morais, que José Atalaya realizou durante longos anos os relevantes ciclos da “Música em Diálogo”, um dos seus importantes contributos para a divulgação da melhor música erudita e que foi também uma valiosa forma de apoio à carreira de vários artistas portugueses. Esta iniciativa, enriquecedora da vida cultural do município de Oeiras, e em que tive o gosto de participar múltiplas vezes a convite generoso do seu Autor, contou com o incondicional apoio da Câmara Municipal de Oeiras (CMO), corporalizado na actuação de profissionais muito competentes e habilitados, como Carlos Pinto, abnegado funcionário do sector da Cultura da CMO. Mas a esse amparo institucional adicionava-se um outro apoio, mais íntimo, mais constante, mais essencial que por isso se constituía como preciosíssima ajuda, mas pouco visível, ou até mesmo invisível aos olhos do público: a colaboração da Linda, mulher de José Atalaya. Na realidade, ela foi uma co-autora da “Música em Diálogo”. Facto que aqui quero realçar por considerar ser justo fazê-lo, mas também, e principalmente, por ser modelar exemplo da materialização de uma harmoniosa cumplicidade de interesses culturais e de paixões artísticas na qual se tecia, se consolidava e se expressava uma das mais bonitas relações conjugais que pude presenciar ao longo da vida. A linda relação do José com a Linda.

Os saudosos sábados de diálogos musicais em Oeiras foram o benefício cultural dessa invulgar cumplicidade conjugal agora por mim evocada como homenagem ao Amigo que partiu e como afectuosa reverência à Amiga enlutada.

Não tenho dúvida de que os munícipes de Oeiras estão agradecidos, e creio ter deixado aqui esclarecida a coerência da escolha do cemitério oeirense de Barcarena como local de realização do funeral do meu bom Amigo José Atalaya.

João Maria de Freitas Branco
Caxias, 27 de Fevereiro de 2021

 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Homenagem a José Atalaya


Acabo de tomar conhecimento, com quatro dias de atraso, da morte de um Amigo: o maestro José Atalaya, com quem privei desde a minha meninice, principalmente no âmbito das actividades desenvolvidas pela Juventude Musical Portuguesa (JMP) e na Emissora Nacional (na boa companhia de Pedro do Prado e João da Câmara). Mais tarde, trabalhámos juntos em vários projectos, de que destaco o programa radiofónico “Música e Ideias” de que fomos autores (transmitido na Antena2), assim como também as numerosas iniciativas artístico-culturais integradas nos ciclos “Música em Diálogo” (produzidos pela Câmara Municipal de Oeiras) e as realizações integradas na programação do “Ginásio Ópera”. 

José Atalaya foi discípulo do meu avô, o compositor Luís de Freitas Branco, que considerava ter siso o seu pai musical/intelectual e de quem continuamente falava com grande carinho e admiração. O Mestre chegou a orquestrar uma peça do Discípulo, gesto demonstrativo do apreço pelo jovem Atalaya. Tive o gosto de organizar, através do “Ginásio Ópera”, um concerto onde se pôde escutar aquela que penso ter sido a última execução pública da obra na versão orquestrada por Luís de Freitas Branco, obra inspirada em “As mãos e os Frutos” de Eugénio de Andrade. Teve lugar na Igreja da Cartuxa, em Caxias, sob a direcção do maestro Nuno Dario à frente da Orquestra Clássica do Ginásio Ópera (há registo filmado).

 
No meu livro “Luís de Freitas Branco – O intelectual em Paço de Arcos” (ensaio filosófico-biográfico, Mazu Press, 2019) relato a activa participação de José Atalaya nas tertúlias organizadas em casa do compositor. Lamentavelmente, nesta nossa sociedade da comunicação constata-se que, na prática real quotidiana, nem sempre é fácil comunicar. Essa paradoxal dificuldade que por vezes ocorre impediu o desejado ofertar da obra ao Amigo agora desaparecido e até a recepção atempada da triste notícia do seu falecimento ocorrido no passado dia 19. Ficarão sempre vivas as boas memórias de um longo tempo de convivência.

João Maria de Freitas Branco
Caxias, 23 de Fevereiro de 2021

 

 

 

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Em homenagem às Mulheres

 

Pretendo dar a conhecer um imerecidamente olvidado escrito feminista, muito actual, que por inteiro traduz o meu próprio pensamento sobre as injustas desigualdades que vitimaram e vitimam os seres humanos do sexo feminino.

Como o ideário feminista é aqui servido por notável forma literária, não me atrevo a traduzir, preferindo deixar intocado o estupendo francês original (sendo o eventual recurso à tradução do Dr.Google, ou outro, liberdade deixada ao leitor amigo). 

Eis o texto que julgo merecedor da vossa boa atenção:

«Bienheureux es-tu, lecteur, si tu n’es point de ce sexe qu’un interdit de tous les biens, le privant de la liberté : oui même, qu’on interdit encore à peu près de toutes les vertus, lui soustrayant les charges, les offices et fonction publiques ; en un mot, lui retranchant le pouvoir, en la modération duquel la plupart des vertus se forment, afin de lui constituer pour seule félicité, pour vertus souveraines et seules, l’ignorance, la servitude et la faculté de faire le sot si ce jeu lui plaît.»  

Abunda o hábito de se considerar que certas ideias e atitudes em voga neste nosso presente são manifestações de uma originalidade absoluta e, por isso, apenas representativas da nossa época. No entanto, esta actualíssima e moderníssima declaração feminista não é da autoria de nenhuma militante do movimento Me Too, nem foi redigida hoje, nem ontem, nem na semana passada no rescaldo de alguma renovado acometimento machista. Não. Trata-se de texto escrito e publicado por uma mulher na primeira metade do século XVII, mais precisamente no ano de 1626. Marie de Gournay é o nome da autora que por ironia do destino só é conhecida por ter conhecido um ser humano do sexo masculino; ou melhor, por ter sido amiga de um homem célebre: Michel Eyquem de Montaigne.

 

NOTA

Referência bibliográfica: Marie de Gournay, “Grif des dames”, em Égalité des hommes et des femmes et autres textes, Gallimard, Paris, 2018. (Por opção do editor, a língua foi modernizada em favor do melhor entendimento por parte do leitor actual.)

João Maria de Freitas Branco
8 de Fevereiro de 2021