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domingo, 30 de maio de 2010

Teixeira-Gomes, um convite à leitura

Há muito que sabemos ser hábito pátrio mal tratar os melhores filhos deste nosso torrão. O maltrato do olvido e da indiferença é talvez o pior, e se ele já não nos pode surpreender, deve sempre indignar-nos. Menos surpreendidos ficamos quando tal procedimento atinge autor herético, crítico da acção da Igreja. Que outra coisa se podia esperar no seio desta pátria tão longamente afectada pelo catolicismo e em que a Inquisição prosperou singularmente?
Teixeira-Gomes, figura maior de escritor e político da nossa primeira República foi particularmente vitimado. Quem o lê? Que referências lhe são feitas nos programas escolares? Que obras suas aparecem nas selectas literárias destinadas aos jovens estudantes do ensino secundário? Que eu saiba, nenhuma, e rarissimamente se encontra alma que revele algum tipo de familiaridade com a sua prosa. Tudo isto porque teve a audácia de ser lúcido em terra de obscurantismo religioso, neotomista e sebastianista, escrevendo coisas como esta: «Os frades prosperam e alastram, como a grama em terreno inculto, por esta população de jornaleiros famélicos, e proprietários opulentíssimos que vêem nos claustros os específicos respiradoiros da miséria oprimida. Para a gente rica não há ‘anjo da guarda’ que valha um frade na faina de a proteger contra as reivindicações do povo.» Assim denunciava o escritor as cumplicidades da Igreja com o poderio nas suas “Cartas sem moral nenhuma” – título bem indicativo da intensão de se opor ao espírito moralizador dominante e tradicional. Também aí se encontra esta estupenda acusação de uma ideia dominante: perante os horríveis sofrimentos e desumanidades manifestos na realidade mundana «a ideia de um ‘Ser Superior’ infinitamente poderoso e bom, ganha ali [nesse sofrimento e nessa miséria] foros de abominável escárnio.» Prosa insuportável para os poderes do tempo salazarento que condenou a obra de Teixeira-Gomes ao olvido e a vilipendiou.
Neste ano de comemorações do primeiro centenário da República talvez seja altura de chamar a atenção para a sua obra. Mas para isso torna-se indispensável e urgente que ela se encontre disponível. As velhas edições da Portugália (e outras) há muito que se encontram esgotadas. Foi por isso com grande satisfação que tomei conhecimento da iniciativa da Câmara Municipal de Portimão e da Imprensa Nacional de públicar as obras completas do escritor político. Uma óptima notícia. Estão o Município e a Editora estatal de parabéns pelo serviço que assim prestam à nossa cultura. Porém, algo incompreensivelmente, as edições da Imprensa Nacional continuam a ter uma péssima distribuição livreira. E, além disso, os processos de encomenda são, de uma forma geral, muito morosos.
Um dos responsáveis científicos pela preparação desta edição, o historiador Vítor Vladimiro, amigo e vizinho de longa data, teve a gentileza de me ofertar os dois primeiros volumes que aqui me apresso a divulgar. Nenhum português que se preze de ser homem ou mulher de cultura pode permitir-se ignorar a esplêndida prosa literária do Teixeira Gomes. Portanto, saúdo aqui o competente e abnegado esforço do Vítor Wladimiro Ferreira, do Urbano Tavares Rodrigues e da Helena Carvalhão Buescu, esperando que o projecto editorial se conclua com sucesso.
Aqui fica a referência bibliográfica para que os leitores/seguidores deste blog possam encontrar-se com Teixeira Gomes:

TEIXEIRA-GOMES, Manuel: Obras Completas, anotadas por Urbano Tavares Rodrigues, Helena Carvalhão Buescu e Vítor Wladimiro Ferreira, prefaciadas por Urbano Tavares Rodrigues, Volumes I e II, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Câmara Municipal de Portimão, Lisboa, 2009.

«Um dos produtos mais acabados e originais,
sem par ao nível do estilo, da literatura portuguesa de sempre.»

Urbano Tavares Rodrigues

segunda-feira, 24 de maio de 2010

José Mourinho

No passado sábado, dia 22 de Maio, o nosso José Mourinho tornou-se um dos raros treinadores a vencer a Liga dos Campeões Europeus com dois clubes diferentes, consolidando assim a sua fama de “special one”. Se muito não erro, com esta nova vitória, Mourinho abriu caminho para devir uma figura lendária na história do jogo de futebol. Neste momento, julgo fazer sentido afirmar que ele criou um segundo catenaccio, a que talvez se possa chamar catenaccio paradoxal, uma vez que sendo defensivo, por definição, é também ofensivo. Um catenaccio ofensivo. Mas não é difícil imaginar que, num futuro próximo, ele ainda nos legue inovações tácticas mais notórias.
Mourinho é aqui chamado à colação porque constitui um útil e paradigmático exemplo de acção racional, embora no mundo da paixão pelo desporto-rei haja quem esteja convencido do contrário. O modelo de liderança causador do seu grande sucesso desportivo é eminentemente racional. Mesmo à distância, é fácil perceber tratar-se de alguém que continuamente pensa o jogo, analisando todas as suas componentes, incluindo as não puramente desportivas. Toda a sua acção enquanto treinador é acção pensada.
Na mesma altura em que Mourinho alcança esta vitória especial que lhe confere um novo estatuto (o de treinador recordista), surge nos escaparates das livrarias o livro Mourinho a descoberta guiada da autoria de Luís Lourenço, amigo pessoal do treinador. Nesta obra analisa-se o processo de criação e gestão de equipas de sucesso (equipas de alto rendimento, tanto no plano desportivo como empresarial). Luís Lourenço estuda o caso Mourinho e conclui estarmos perante um modelo de liderança aplicável a muitos outros domínios de actividade, nomeadamente, e desde logo, à esfera da gestão empresarial. Trata-se de um estudo interessante e bem fundamentado, em que se sente a saudável influência filosófica de Manuel Sérgio, professor de Mourinho no ISEF.
Porém, na página 99 do livro deparei com um parágrafo com o qual discordo em absoluto e que contradiz o antes afirmado nesse mesmo livro. Lê-se aí o seguinte: «Temos […] a descrição daquilo que Mourinho considera ser a sua forma estrutural de motivar os seus jogadores. Não é nada pensado, tudo é genuíno. Porque o que é decisivo no homem é o sentimento, a emoção, não o pensamento – é a partir do coração que a realidade se realiza e não a partir da razão.» É, digo agora eu, exactamente o contrário: tudo é pensado, tudo está sujeito a reflexão permanente, tudo é cuidadosamente analisado. Nesta infeliz passagem do seu interessante estudo Luís Lourenço deixa-se contaminar por um velho e persistente vício de pensamento que consiste em divorciar a razão da emoção. Trata-se de um erro tradicional. Defeito que, confesso, se vai tornando para mim cada vez mais insuportável. Um espírito racional não é pessoa destituída de paixões, incapaz de ter impulsos, reacções espontâneas ou variegados tipos de embriaguezes. Um ser humano cultivador da racionalidade, o homem clássico, possui, como qualquer outro, os impulsos naturais próprios da espécie. A diferença é que, para além desses, possui em grau inusual o instinto racional. Entre nós foi António Sérgio quem melhor disse esta verdade essencial teimosamente ignorada por quase todos neste torrão de poetas: «a Razão – dizia ele – é o instinto, a fé, o pre-conceito, da penetrabilidade das coisas pela lucidez mental.» É esse essencial instinto que encontramos bem vivo e activo no homem treinador José Mourinho, mesmo que possa não estar absolutamente consciente disso. Como inspiradamente dizia o mesmo Sérgio, o clássico «é uma fúria estruturada». Disso mesmo é Mourinho magnífico exemplo. Ele, treinador racionalista, é, por isso mesmo, por ser racionalista, é fúria estruturada. É isso o espírito racional, e não uma ausência inumana de emoções ou de paixões. Quanto tempo faltará ainda para que a generalidade das pessoas compreenda isto?
O parágrafo que acima citei, objecto da minha discordância no interior de uma prosa analítica que apreciei, é particularmente surpreendente porquanto denega o demonstrado em capítulos anteriores do livro. De forma consistente, bem informada, utilizando depoimentos do próprio treinador, Luís Lourenço põe em evidência o instinto racional (assim lhe chamo eu). Por exemplo, quando analisa detalhadamente o que se passou no Emirates Stadium, no dia 6 de Maio de 2007. O momento da primeira grande derrota de Mourinho com visibilidade internacional: o empate do Chelsea com o Arsenal e a consequente entrega do título de campeão de Inglaterra ao Manchester United (o Man Utd). É notório como Mourinho tinha essa hipótese cuidadosamente pensada. E no momento da derrota, como Lourenço mostra, ele começa a preparação para o próximo jogo (que era a final da Taça de Inglaterra, tendo como adversário o Man Utd.), evitando assim que os seus jogadores ficassem enleados no desânimo de uma derrota e superando ou minimizando de imediato prováveis danos psicológicos. «E aquilo que, em muitos casos, seria uma hora de silêncio, de baixar de braços, de desalento, transformou-se, afinal, numa celebração»(Lourenço, p.19). Aqui está a fúria estruturada em acção.
Outro esplêndido exemplo de racionalidade, de instinto racional, é-nos dado nas páginas 42, 43 e 44 em torno da forma como o treinador analisa a velocidade como factor do jogo. O discurso não pode ser mais racional: «[…] um jogador lento do ponto de vista tradicional é, afinal, um jogador rápido numa perspectiva complexa, porque se vai deslocar numa altura em que os outros não esperam, num momento correcto, num momento em que o companheiro com a bola precisa que ele se desloque. Desta forma, tudo isto é complexidade e o homem é um todo complexo no seu contexto. Por isso, trabalhar qualidades individualizadas e/ou descontextualizadas da complexidade do jogo é, para mim, um erro grave».
Em face do que aqui ficou dito, atrevo-me a sugerir ao autor que, numa eventual 2ª edição da obra, refaça o parágrafo da página 99 acima citado, apagando o que me parece ser uma incoerência.
Para quem goste de futebol, se interesse pelo fenómeno da liderança e da gestão de equipas de alto rendimento e, principalmente, para quem se interesse pelo case study José Mourinho recomendo a leitura deste último livro de Luís Lourenço acabado de publicar sob a chancela da Prime Books ( www.primebooks.pt ).

domingo, 23 de maio de 2010

Professora na Playboy

O recente episódio mediático da professora de Mirandela nas páginas da Playboy é um bom indicador do deficit de racionalidade no nosso tecido societal.
O poder político local, a Câmara municipal de Mirandela, foi lesto na decisão de afastar a professora do seu lugar de trabalho, agindo, supostamente, em defesa dos superiores interesses das inocentes meninas e meninos que frequentam a escola pública da região, mas não se lhe topou a menor preocupação relativamente ao facto, agora comprovadíssimo, de as crianças de Mirandela terem fácil acesso a uma revista sexual-erótica destinada a pessoas adultas. Não será isso o preocupante? No entanto, nem a Câmara, nem os jornalistas, nem os comentadores de serviço disso falam. Não menos estranho é o facto de ninguém ter aludido ao nível de competência profissional (pedagógica) da senhora professora que posou seminua para a Playboy e que por isso foi imediatamente afastada.
De notar o facto de não ter havido ninguém a rotular de pornográfica a referida revista, nem o nu fotográfico nela exibido, e de também um significativo número de vozes se ter feito ouvir em defesa da liberdade individual. Sintoma de recuo do Portugal ajesuitado, provinciano e obscurantista?

sexta-feira, 21 de maio de 2010

E o Homem criou a vida

Ontem, quinta-feira, dia 20 de Maio de 2010, a ciência legou-nos mais uma extraordinária capacidade: a de criar vida. Algo que a ingenuidade humana, misturada e guarnecida com a nossa não menos prolixa imaginação, sempre supôs ser atributo exclusivo de deuses. O ter o homem adquirido um tal poder – mesmo não sendo a primeira vez que exibe capacidade antes só atribuída a divindades imaginadas – fazia-nos acreditar que iria ser esse o acontecimento eleito por todos os editores de telejornais como tema de abertura. Mas não. Se bem vi, não houve um único bloco noticioso nos nossos quatro canais de televisão que tivesse começado com esta extraordinária notícia. Omissão quase tão assombrosa como o próprio feito científico. O que parecia ser indiscutível afinal não é. Os editores de serviço consideraram haver notícias muito mais relevantes do que essa da criação de DNA sintético. Dispenso-me de dar exemplos. São demasiado chocantes e desanimadores. Para contrariar esta irrazoabilidade que tão fortemente ofende, aqui vai o essencial da espantosa notícia: uma equipa de cientistas liderada por Craig Venter (que já há dez anos tinha adquirido notoriedade mundial com a apresentação do Mapa do Genoma Humano) transplantou para uma célula hospedeira um “software genético”, daí resultando uma célula sintética. Foram utilizadas como hospedeiras as células da bactéria Mycoplasma capricolum. Nelas foi introduzido o genoma sintético. Após apenas algumas replicações celulares estamos perante novas células, onde já não há vestígio da estrutura da M. capricolum. Nasce assim a primeira forma de vida artificial, uma bactéria sintética. Algo que não deixará de ter profundas implicações filosóficas, para além dos efeitos de natureza científica e tecnológica. Para mais informação, leia-se o artigo acabado de publicar na prestigiada revista Science.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Crentes e não crentes

Depois da estada em território nacional do Sr. Joseph Ratzinger e do deplorável comportamento do Estado Português, violando princípios básicos do laicismo consignados na Constituição, e também em face do histerismo católico exibido pela generalidade dos órgãos de comunicação social (privados e públicos), talvez convenha recordar, ou dar a conhecer, que a religiosidade estribada na crença em um deus pessoal e associada às principais instituições da fé, como a Igreja Católica Apostólica Romana, tem cada vez menos aderentes. Contrariamente ao que o histerismo da comunicação social faz crer, nunca na história da humanidade houve tantos ateus. Há locais em que o seu número cresce de dia para dia. Em vários dos principais países desta nossa Europa a maioria da população já não acredita em deuses pessoais, omnipotentes e omniscientes. É, por exemplo, o caso da Suécia, da Dinamarca ou da República Checa. Quanto maior o nível de informação e conhecimento menor é a crença. Como escreveu Phil Zuckerman num ensaio publicado em 2007, «Between 500 million and 750 million humans currently do not believe in God. […] High levels of organic atheism are strongly correlated with high levels of societal health, such as low poverty rates and strong gender equality. In many societies atheism is growing» («Entre 500 milhões e 750 milhões de seres humanos não acreditam actualmente em Deus. […] Os níveis elevados de ateísmo orgânico correlacionam-se fortemente com níveis elevados de saúde social, como taxas de pobreza baixas e forte igualdade sexual. O ateísmo está em crescimento em muitas sociedades»). A fé em divindades pessoais só continua a prosperar em regiões do Planeta com níveis baixos de escolaridade, em que o conhecimento científico é pouco e mal divulgado. Algo que devia merecer atenção reflexiva e crítica. Na maior parte do continente africano ou na Ásia o ateísmo não tem expressão. Acontece, porém, ser precisamente nessas regiões que se assiste presentemente a um significativo crescimento demográfico, enquanto nos países com maior cultura científica há uma estagnação demográfica ou até mesmo, em alguns casos, um decréscimo. Em consequência deste facto, verifica-se haver, a nível global, um aumento do número de seres humanos que declaram sentir o apelo do transcendente. Mas até mesmo em regiões com índices de cultura científica mais baixos, em países como a Índia, a China, o Paquistão e em Estados religiosos islâmicos, tem-se verificado um decréscimo da influência das principais instituições religiosas.
Para mais informação, recomenda-se a leitura do ensaio que aqui foi citado: Phil Zuckerman, “Atheism - contemporary numbers and patterns”, em Michael Martin (Ed.): The Cambridge companion to atheism, Cambridge University Press, Cambridge, 2007, pp.47-65. Esta obra acaba de ser editada em língua portuguesa: Edições70, colecção “O saber da Filosofia”. Tradução de Desidério Murcho. Título da edição portuguesa. Um mundo sem Deus. Ensaios sobre o ateísmo.

domingo, 16 de maio de 2010

Publicação

Foi publicado no último número da revista Vértice o ensaio "Darwin-Marx: reflexos darwínicos no pensamento marxista" da autoria de J.M. de Freitas Branco. Encontra-se à venda nas principais livrarias.
Ref.: Vértice, nº149, Novembro/Dezembro de 2009, pp.77-124.

Nota

Por dificuldades técnico-informáticas os textos ensaísticos publicados neste blog não incluem as notas de rodapé.
RACIONALIDADE
confusão e anticonfusão


Nos parágrafos inaugurais (na Einleitung) da obra capital do filósofo Ludwig Feuerbach, intitulada Das Wesen des Christentums (A essência do cristianismo), a atenção é centrada na diferença essencial entre Homem e animal – ou, como hoje se preferiria: entre o ser humano e os animais. Diferença essa em que, na opinião do filósofo, radica a religião. Partindo da constatação do que parece ser uma simples evidência - a não existência de religião entre os animais («die Tiere haben keine Religion») -, o autor abre caminho à reflexão sobre a essência do homem em geral (das Wesen des Menschen im allgemeinen) através da seguinte interrogativa: qual é a diferença essencial (wesentliche Unterschied) entre o homem e o animal? ( ). E logo responde: «a consciência; mas a consciência em sentido estrito». O ser humano, ao invés do animal, tem uma vida dupla: exterior e interior. No quadro desta complexificação protagonizada pelo humano é na vertente da vida interior que se desenvolve a consciência da sua própria essência. Ele é um ser consciente de si mesmo. Recuperando a clássica definição do pensar enunciada por Platão, o autor da A essência do cristianismo, põe em evidência a qualidade de ser que “fala consigo mesmo”. «O homem é para si ao mesmo tempo eu e tu»( ).
Sendo o homem o único ser consciente da sua própria essência é também ele, e só ele, no quadro da vida conhecida, que, por estar também destinado à contemplação e não apenas à acção, pode interrogar-se sobre o que é a essência do homem. Levantada esta nova interrogativa, Feuerbach responde dizendo ser ela «a razão (Vernunft), a vontade, o coração» ( ).
Interessa-nos reter aqui o primeiro dos três elementos constitutivos do género homem: die Vernunft, a razão. Ela não é algo que o ser humano possui ou adquire; é uma faculdade ou princípio constitutivo da essência do homem, do género, «da humanidade propriamente dita no homem» ( ).
Afastando-nos do espaço do filosofar feuerbachiano, e deixando de lado algumas especificidades, encontramos aqui uma concepção que ao longo dos tempos reuniu amplo consenso: a caracterização do ser humano como único animal racional. Mesmo após o advento da psicologia das profundidades, com a demonstração do peso percentual do não racional no funcionamento da psique humana, a ideia popular de homem = animal racional prevaleceu até os dias de hoje. (Muito embora esta definição contenha auto-negação por efeito do transbordante narcisismo de natureza não exclusivamente racional que consigo arrasta.)
A subtil diferenciação entre aisthesis (sensação) e uma consciência psíquica que se projecta para além do dado sensitivo imediato já se faz sentir nos poemas homéricos, mas é aos filósofos que cabe o mérito da sua problematização. A verdade, a verdadeira natureza das coisas, não se dá no imediato. No dizer aforístico de Heraclito, a verdade gosta de ocultar-se ( ). Requer por isso o esforço racionalizador. Somos remetidos para o complexo significado de termos como noesis e logos. A razão (logos) é a faculdade de compreender e de estabelecer relações intelectuais, mas também, com Platão, o relato verdadeiro. No Fédon ( ) o termo logos, significando relato – a capacidade de relatar o saber adquirido -, surge associado ao verdadeiro conhecimento (episteme); ou seja, a capacidade de relatar é apresentada como caractrística própria do conhecimento (dimensão gnosiológica). Platão traça uma oposição entre mythos e logos atribuindo a este último o significado de relato racional e verdadeiro ( ).
Mas em rigor que significa ser racional? Qual é a condição necessária para haver racionalidade – no pensar, no discurso, na acção?
Esse traço do seu perfil na ausência do qual se dá a desfiguração consiste nisso a que estimo chamar passo apoiado, em oposição a passo em falso – isto recorrendo a uma analogia com o andar. Cada vez que movo uma perna tenho que estar apoiado na outra, sabendo ao mesmo tempo para onde a vou mover. Para existir racionalidade, para se poder falar de pensamento ou discurso racional, é condição necessária a existência de fundamentação: só posso avançar para nova asserção desde que a/ou as anteriores estejam bem fundadas, ou então constituam uma evidência imediata (verdade axiomática, em sentido clássico) ou resultem de convenção pré-estabelecida. Regressando à nossa analogia com o caminhar físico, diríamos: só caminho bem se ao dar novo passo tiver antes bem firmada a perna que protagonizou o passo anterior.
Paradigma deste procedimento são os livros de Euclides, obra que em meu modesto entender devia constituir leitura obrigatória nas escolas de formação geral. Retenhamos como exemplo o seguinte enunciado: se são iguais dois ângulos alternos-internos determinados em duas rectas por uma secante, as rectas são paralelas. Para que esta asserção possa ser aceite como válida é requerida, antes de mais, uma total transparência terminológica: uma clara determinação do significado das várias noções envolvidas; ou seja, tem de estar definido com rigor o que se entende por “recta”, “secante”, “ângulo”, etc. Posto isto, tendo presente o Axioma de Euclides ( ) e o seu corolário segundo o qual se duas rectas são paralelas, toda a recta que intersecta uma intersecta a outra, somos colocados perante nova evidência, a saber: só existem duas possibilidades: as rectas ou são paralelas ou concorrentes. Se admitirmos esta última, entra-se em contradição com a hipótese. Chega-se a uma impossibilidade. Fica então demonstrada a asserção inicial (enunciado de um teorema). Como este exemplo mostra, na construção do pensamento/discurso racional (na esfera da autêntica racionalidade) toda a asserção requer concomitante fundamentação; sem esta a relevância daquela é diminuta.
À racionalidade corresponde, portanto, uma permanente transparência e controlo de procedimentos. A acção racional supõe o conhecimento preciso de duas coisas: o que estou a fazer e o que vou fazer. Temos então uma espécie de sistema de coordenadas cartesianas da racionalidade, em que o eixo dos x é “o que estou a fazer” e o dos y “o que vou fazer”. Sendo que também aqui se pode falar de par ordenado, significando que lhe está inerente a ideia de ordem, ou seja, um antecede o outro.
O procedimento racional confere confiança, segurança, alguma certeza. São efeitos da sua eficácia. Da sua estupenda nobreza, a que não é alheia a deslumbrante dimensão estética do passo racional. Mas essa sua inegável grandeza é, por efeito das próprias qualidades que encerra, portadora de grandíssimo risco. Um risco tanto maior quanto menor for a consciência da sua presença; e a história demonstra-nos quão diminuto tem sido o grau de consciência.
Em que consiste esse risco?
Reside no facto de a consistência do discurso racional poder gerar intolerância, arrogância intelectual, descriminação, dogmatismo, ou seja, limitação da liberdade; assim como também tentação monopolizadora.
Regressemos ao modelo euclidiano. Se perante as asserções bem fundadas e os enunciados demonstrados alguém se lembrar de levantar a voz para propor novas hipóteses ou soluções (acolher outras dimensões, considerar outro espaço, etc.), a tentação de silenciar essa voz diferente será provavelmente forte. Com a agravante de se estribar em sólida argumentação lógica aparentemente legitimadora da intervenção censória, negadora de liberdade. A segurança e a certeza acima referidas conferem a esse diferente, visto pelos olhos do racionalista confiante, a forte aparência de manifestação explícita da estupidez, da ignorância arrogante, da idiotice.
Ergue-se assim, e por efeito das mais nobres intenções e convicções, uma razão dogmática capaz de engendrar monstros. Um racionalismo narcísico que absolutiza o seu valor. Estabelece-se assim a perigosíssima, bem como abusiva, identificação do racional com o verdadeiro, da racionalidade (que neste caso é racionalização) com a veracidade. Este tipo de racionalidade dogmática, intolerante, arrogante - a que devemos chamar racionalização por oposição a razão - pode tornar-se tão nociva quanto o mais desbragado irracionalismo. Por outro lado, a tentação monopolizadora que acima referi consiste em supor que tudo é racionalizável, ignorando ser boa parte do mais importante, pelo menos por enquanto, pertença da esfera do não racionalizável (o amor, os afectos, os gostos estéticos ou outros). A razão, ao contrário da racionalização, permanece aberta (lógica aberta). Por isso aceita a presença do não racional. Olvida-se com demasiada frequência que o irracional pode estar, e esteve múltiplas vezes, entruzado com a racionalização. Aquilo a que Luckács justamente chamou die Zerstörung der Vernunft (a destruição da razão), apresentada como fundamento imaterial do nazismo, favoreceu o ocultar da efectiva racionalização viabilizadora de Auschwitz – desse investimento de racionalidade (de lógica) sem o qual tais monstruosidades jamais teriam sido exequíveis.
Engendra-se assim a monumental ilusão de que a razão não coabita com o erro; de que o procedimento racional, lógico, inibe em absoluto a falsificação, o discurso mistificador, erradicando o erro. Se assim fosse, a história da ciência não estaria, como de facto está, crivada de exemplos de hipóteses falsas, de teorias erradas, de concepções falaciosas. É que também há erros racionais - e até erros monumentais. Foi racionalmente que Aristóteles estabeleceu os princípios da sua física, declarando a imobilidade da Terra, e que Ptolomeu edificou o seu sistema geocêntrico. O próprio estudo analítico de certas patologias da mente é revelador de como o comportamento mais alucinado se reveste por vezes da mais sólida lógica sustentadora de surpreendentes racionalizações, como acontece nos estados paranóicos. É o que em psicologia se designa de pensamento paralógico, isto é, a manifestação de um raciocínio perfeitamente lógico assente em postulados falsos. O rótulo de anormalidade atribuído a estes casos produz o efeito de isolamento, levando-nos a supor que tais procedimentos são pertença exclusiva de espaços psiquiátricos situados à margem da normalidade. Esvai-se assim a vontade de verificar em que medida este patológico invade o terreno da chamada normalidade, aí marcando presença significativa. Se formos capazes de escapar ao efeito de isolamento e soubermos perscrutar certos indicadores, verificaremos, talvez com espanto, a assídua presença em solo de normalidade de procedimentos ou hábitos intelectuais similares aos antes observados na esfera da patologia psíquica, mas que em rigor, tecnicamente, não podem ser classificados como sintoma de comportamento perturbado ou como agente patológico. Mas não representam eles indício de desfalecimento da racionalidade, de gangrena do logos? Não será, por exemplo, essa perturbadora proximidade que sentimos quando, no seu esforço de condução de um programa de Aufklärung, Feuerbach se ergue contra a christliche Mythologie (mitologia cristã) dizendo que ela «aceita como facto qualquer conto de fadas da história»? Ou quando revela que ela «faz da razão um joguete de um materialismo religioso fantástico» ()? Ou ainda quando referindo-se à filosofia especulativa da religião declara que ela «transforma as imagens da religião nos seus próprios pensamentos» ()? Kant, por seu turno, falava dos casos em que a razão se curva sob o jugo de leis exteriores, outras que não aquelas «que ela a si mesma dá», originando a perda da liberdade de pensar ().
Há alucinações e ilusões racionalizadas.
A racionalidade não é coisa homogénea, indiferenciada, singular. Não é simples, mas sim complexa. Desde logo porque não há uma lógica única. Quando, por exemplo, se refere a racionalidade científica não se esgota aí todo o pensamento racional, senão que apenas uma parte dele; parcela fundamental, é certo, mas ainda assim uma parcela. O pensamento selvagem, para utilizar o designativo de Levi-Strauss ou a descrição mítica ou ainda o próprio agir prático do caçador-recolector integram estruturas lógicas, envolvendo por isso processos de racionalização. Só que opera fazendo intervir na sua própria base elementos não racionais nem racionalizáveis – fantasias, enfabulações, evocações oniricas – ou então falsas suposições, postulados errados. Voltamos a pressentir a proximidade do modos vivendi da mente perturbada.
A necessidade de superação do risco aqui enunciado, esse que em vez de promover a liberdade abre caminho a uma potencial imposição de limitações, convoca uma racionalidade de novo tipo: a razão crítico-dialéctica; essa que se autocontempla desconfiando sempre da sua “perfeição”; que endereça a si própria um olhar céptico. Sabedora da historicidade essencial do seu ser, ela já não se concebe como definitiva, nem monopolizadora. É uma razão, uma racionalidade, autocrítica que se compreende como processo, como momento de um devir, e que por isso mesmo logra escapar a defeitos pretéritos. Por isso é, por natureza, liberdade: coíbe-se de desrespeitar os direitos do espírito. É esse o logos que serve a teoria impedindo a degradação doutrinária que Edgar Morin. Na sua autenticidade, esse logos (razão assente numa lógica aberta) trava permanente e intensa luta não só contra o irracional mas também, ao mesmo tempo, e de modo não menos prioritário, contra a racionalização (estribada numa lógica fechada).
O paupérrimo maniqueísmo, fruto de eternas tentações simplificadoras, exibido por demasiados militantes da razão – melhor seria dizer militantes da racionalização -, maniquísmo que consiste em opor a razão endeusada (fonte única de todo o bem) ao irracional diabolizado (agente de todo o mal), é caso típico da racionalização obstrutora da razão, conducente ao ponto em que, fazendo uso de linguagem kantiana, a liberdade é confiscada ao pensamento.
Na história da civilização, desde as suas fases primevas até a época contemporânea, há um imaterial sempre presente e em torno do qual se desenvolve, com alternado grau de intensidade, uma complexa e subtil conflictualidade/oposição que trespassa toda a civilização. A esse imaterial latente no corpo societal chamo confusão. A conflitualidade/oposição que em seu torno se gera deixa rasto ao longo de toda a história e é de carácter essencial dado ser em grandíssima medida factor condicionante do estado de saúde geral do corpo civilizacional, na dupla vertente da acção material e imaterial.
Todo o pensamento , bem como todos os sistemas ideológico-práticos e os ideários dele derivados, pode classificar-se de acordo com a divisão em dois grandes grupos: o da confusão e o da anti-confusão. Aquele está associado à dependência, à ocultação, ao irracionalismo e à limitação, enquanto este está associado à autonomia, à não-dependência, ao esclarecimento, à razão (diferenciada da racionalização) e à liberdade.
De modo mais ou menos consciente, mais ou menos intencional e voluntário, com contornos mais explícitos ou menos explícitos, o pensamento, nas suas várias manifestações, assim como a acção prática que o materializa tende sempre, em última instância, para um ou outro destes dois pólos opostos: ora concorre para aumentar o grau de confusão latente no espaço societal, cultivando mistério, espalhando nebelina; ora, pelo contrário, serve o esclarecimento, dissipa a neblina, reduz o grau de confusão latente, agindo como força dilucidativo-emancipadora.
É tão indispensável quanto urgente entender que a semeadura da confusão – o amor à neblina, as obscuridades deletérias, a adoração do mistério, um certo culto judaico-cristão do que é fraco –, essa semeadura, nunca é inócua: ela serve como sempre serviu, de modo objectivo, a germinação de dependências. Favorece invariavelmente as ambiências propiciadoras da obediência e do consentimento. Cumpre assim importantíssima função politico-ideológico-prática em benefício do poder ou poderes dominantes instituídos. Razão pela qual o maior investimento seja hoje o investimento em confusão. Um investimento materializado e patenteado a todos os níveis: na acção dos media, no vasto mercado do irracional, na instigação metódica de medos causadores da obsessão da segurança, no jogo da inversão de valores, no complexo mecenato apoiante da acção do “intelectual reconhecido” ou “tecnocrata” (Chomsky) ( ), na vasta utilização do cinema e das artes do espectáculo em geral, no recurso à droga, no subtil mas fortíssimo incentivo ao ligeiro e ao superficial (a apologia da vida soft) associado ao cultivo do prazer leigt do consumo desenfreado.
Numa forma enunciativa que a muitos soará familiar direi, com ênfase, que a história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas centradas na confusão. Essa confusão, ora acarinhada ora digladiada, expressa as oposições esclarecimento/ocultação, autonomia/dependência.
No tempo presente, como em todas as épocas de acentuado declínio, em que a confusão se agiganta, assiste-se à formação de importantes vagas de irracionalismo. A questão central volta a ser a da confutação dos ideários ou dos procedimentos dadores de confusão. Reedita-se a urgência de travar novo grande combate em prol da razão emancipadora – a razão humana que aspira sempre à liberdade, como bem dizia Kant. Combate contra os nefastos efeitos do crescente ruído da confusão oriunda do pensamento ocultador, das nebulosidades deletérias, bem como das práticas e dos procedimentos que daí derivam.
Como diria o grande Espinosa, urge oferecer resistência aos sistemas ideológico-práticos da obediência, assim como contrariar o manufacturing consent, o fabrico de consentimento, de que já nos recuados anos 20 da passada centúria Walter Lippmann nos falava em tom denunciador, mas que agora exuberantemente se exibe nos media perante o nosso olhar incrédulo ( ).
Na sociedade tal como a conhecemos a conflitualidade em torno da confusão nunca se extingue, dada a função que desempenha na gestão dos poderes. Importa perceber que essa permanência, essa qualidade de ocorrência inextinguível, se deve não apenas às incontornáveis limitações de natureza gnosiológica (a impossibilidade de erradicar a dúvida através da absoluta omnisciência), senão que também a esse outro factor sempre desatendido mas não menos relevante: a função desempenha na gestão dos poderes; mas a referida conflitualidade continuamente gerada em torno da confusão conhece, no entanto, níveis de intensidade variáveis. Na fase hodierna voltamos a viver um momento de aguda conflitualidade entre a razão e o irracional, entre o gesto dilucidativo e o gesto obscurantista que derrama confusão. Gesto que é complexo, pois muito embora seja frequentemente intencional também não deixa de estar, em muitos casos, associado à actuação bem intencionada. Mas face à inaudita presença de perigos globais que põem em causa a possibilidade de sobrevivência da Humanidade, o actual confronto adquire dimensão inédita: pela primeira vez ele pode ser o último.
O único instrumento fundamental ao nosso dispor para dar resposta satisfatória aos desafios é a razão renovada, expurgada de algumas limitações pretéritas; uma razão não dogmática, crítico-dialéctica em que esse procedimento crítico aparece vinculado à demanda de fundamento. A prioridade não é nova, mas é instante: atenuar a dependência, promovendo a saída do homem da sua menoridade – isso que Kant disse ser a Aufklärung ( ).
Toda a possibilidade de autêntico progresso repousa aí.
Iniciámos este escrito na companhia do filósofo Ludwig Feuerbach; pois encerremo-lo também na boa companhia intelectual desse mesmo Ludwig que E.Bloch considerava ser a personificação da Aufklärung («Feuerbach ist Aufklärung»)( ):
«Transformar [os homens] [...] de crentes em pensadores, de suplicantes em operários, de candidatos ao além em estudantes do aquém [...], [transformar] em homens completos» ( ).

João Maria de Freitas Branco
Setembro de 2002