Pesquisar neste blogue

domingo, 7 de novembro de 2010

Revelação do mistério do milagre do Sol

A noite do passado dia 23 de Outubro proporcionou-me curiosa vivência. Foi a última noite de Lua cheia, e, por volta das 23h., durante um passeio nocturno pelo campo na companhia da minha mulher e do meu cão, ao olhar para a Lua verifiquei que as nuvens na sua proximidade, nuvens baixas, tinham muito fraca densidade e quando passavam diante do disco lunar deixavam de se ver, por efeito da grande intensidade da luz reflectida. Por essa razão, embora as nuvens se interpusessem, a imagem da superfície do astro era surpreendentemente nítida. Como se de facto não houvesse nenhuma nebulosidade sobreposta. Mas em redor do planeta viam-se cúmulos mais densos, situados a muito maior altitude. Claro está que as nuvens mais afastadas e mais densas se deslocavam, em relação ao observador terrestre, mais lentamente. Foi então que se deu um primeiro efeito óptico. O observador ficava com a nítida sensação de que as nuvens mais visíveis estavam num plano superior ao da órbita do nosso satélite natural. Dito de outro modo, a lua parecia estar dentro da atmosfera terrestre! Era impressionante. As nuvens eram percepcionadas como estando a passar por traz do astro. Ilusão óptica muitíssimo curiosa. Mas a coisa não ficou por aqui. A dada altura, a Lua começou a agitar-se. Dava pequenos saltos, movendo-se de um lado para o outro com grande rapidez. Para cima, para baixo, para o lado, em constante oscilação, ziguezagueante. Parecia que o astro dançava no espaço sideral. Uma ilusão óptica muito divertida causada pelo movimento múltiplo de várias nuvens altas e de uma névoa mais baixa. Uma combinação de movimentos. Curiosa e atraente ilusão reforçada pelo facto de a luz intensa da Lua cheia, um pico de luar, tornar imperceptível a neblina no espaço do círculo lunar. Concentrando o olhar apenas na superfície iluminada do planeta parecia não existir nenhuma interferência de nebulosidade, tal era a nitidez com que se observavam as manchas dos mares lunares e as crateras. Quem me acompanhava pôde vivenciar exactamente a mesma ilusão ou erro perceptivo que se prolongou por pouco mais de dois minutos (tempo da minha observação, o que não significa que a duração total do efeito não tivesse sido maior). Foi então que pensei: se estivesse aqui um vasto conjunto de pessoas, era este o momento propício para lançar nova crença. Seria o milagre da Lua. Com alguma habilidade e talento persuasivo até talvez se conseguisse fundar uma nova religião.
Torno aqui pública esta vivência pessoal porque ela é muito mais do que um mero divertimento casual motivado por uma combinação de movimentos e consequentes ilusões ópticas. Ela é a revelação do mistério do pretenso milagre do Sol, em Fátima (Cova da Iria), no dia 13 de Outubro de 1917. O Sol oscilante, saltitante, ziguezagueante que milhares de pessoas dizem ter observado -- embora muitos dos presentes também afirmassem não terem observado nada de extraordinário nesse dia na Cova da Iria. Pretensos milagres do mesmo tipo foram relatados em outras partes do mundo, como por exemplo em Heroldsbach, na Alemanha, no ano de 1949. Com enorme probabilidade, o que se passou na Cova da Iria (e em outros locais) foi um efeito óptico, uma perturbação perceptiva, uma ilusão de óptica igual ou semelhante à que vivenciei no passado dia 23 de Outubro. Também eu vi um astro aos saltos. Um astro dançante ou ziguezagueante. No meu caso, foi a Lua; para os outros, foi o Sol. Só me faltou a companhia de uma multidão e o empurrão da fé, mesclada com a ignorância da astronomia, para poder ter embarcado numa fantástica experiência místico-religiosa. Inconvenientes do ser-se racionalista possuidor de alguma cultura científica. Não se pode ter tudo.

Aos interessados neste tipo de pretensos milagres, recomendo a leitura da interpretação do Prof.Auguste Meessen do Instituto de Física da Universidade Católica de Lovaina.

sábado, 6 de novembro de 2010

Espanto e indignação

Em dia de manifestação nacional dos trabalhadores da função pública, acção convocada pelos sindicatos, como forma de protesto contra as injustiças sociais e o agravamento das condições de vida resultantes da recente aprovação do que é, na opinião de quase todos, um mau Orçamento do Estado, neste dia de ampla manifestação popular, ligo o meu aparelho de televisão, ao meio-dia em ponto, para ver o noticiário da tarde. Sintonizo, aleatoriamente, o canal RTP-N. Canal público. Qual não é o meu espanto quando verifico que a notícia de abertura não incide sobre o assunto que nesta altura mais preocupa os cidadãos portugueses e que está na origem da manifestação organizada pelos sindicatos do sector da função pública. Mais espantado e estupefacto fico quando constato que a notícia de abertura é sobre a visita do Papa à região espanhola da Galiza. É esse o acontecimento que merece maior destaque de acordo com os critérios editoriais dos jornalistas que chefiam a redacção da RTP-N. A televisão pública do meu Portugal, Estado laico, dá mais relevo a uma visita oficial de um líder religioso, chefe de um Estado oligárquico, a Espanha do que ao sofrimento e à indignação dos nossos trabalhadores, bem como à grave situação social existente na pátria. Aproveite-se para dizer que a visita papal, tão acarinhada pelo editor televisivo, tem sido veementemente contestada por muitos cidadãos do país vizinho que se têm manifestado nas ruas de modo a denunciar, em altura de aguda crise económico-financeira, a irracionalidade dos avultados custos da visita de um oligarca que, para mais, bom será recordá-lo, é pessoa sobre a qual recaem fortes suspeitas (para mais não dizer) de ter sido cúmplice, por via de uma acção de encobrimento, de repugnantes crimes de abuso sexual e pedofilia praticados por altos dignitários da sua santa Igreja. É claro que com os anos que levo de permanência no planeta e nesta sociedade mundana, estas coisas já não me deviam surpreender. Aceito. Mas mesmo que não me espante, jamais abdicarei do meu direito à indignação e a expressá-la publicamente como forma de impedir a aceitação do inaceitável.
E é esta a comunicação social que todos nós temos de pagar?

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O fim da 2ª República?

Ou muito me engano, ou a nossa segunda República chegou ao fim. Esgotou-se. O momento é de mudança. O deplorável espectáculo parlamentar das últimas horas é disso acrescida demonstração. As irracionalidades, o despautério ético, a desvergonha multiplicam-se. O episódio da errata do Orçamento de Estado, dando conta de um erro tão grosseiro quanto caricato, foi um dos últimos episódios desta saga. O último, que traduz bem o decaimento ético da actividade política, foi o discurso propagandístico do ministro Augusto Santos Silva, em representação do Governo, no encerramento da sessão parlamentar para votação do Orçamento do Estado hoje ao fim da tarde, discurso esse em que chegou ao ponto de declarar que «a acção em prol da saúde financeira do Estado é uma marca do Governo». Será que ouvi bem?
Não se pode aguentar por muito tempo uma situação, como a actual, em que, com justificada razão, o cidadão deixou de ter a mínima confiança nos responsáveis pela governação, bem como pelas próprias instituições que deviam cuidar do país. Do governo aos tribunais, passando pelo parlamento, nada é credível. O cidadão comum olha para os responsáveis políticos com crescente desconfiança, sendo que para muitos, o termo político já é sinónimo de trafulha.
Pedro Passos Coelho, o líder político emergente, não mostra ter percebido que a realidade lhe está a oferecer de bandeja a grande oportunidade de se afirmar como estadista salvador, prestigiado, aglutinador de ampla base social de apoio. Parece que para isso só lhe falta uma coisa: as qualidades. E quais são elas? Que qualidades se exigem ao próximo primeiro-ministro? Classe, decência, elevação moral e intelectual, carisma, talento de líder. Neste momento crucial, já é secundário o ser de esquerda ou de direita; importante, sim, é ser-se de cima e não de baixo. É não pertencer ao grupo dos políticos eticamente indigentes. Isso, sim, é necessário. Urge que apareça alguém capaz de arrumar a casa semeando seriedade, conferindo dimensão ética à acção governativa. Estão criadas as condições para a materialização de um entendimento entre vários sectores políticos tendo em vista a execução de um programa sério de combate à irracionalidade do despesismo público, de incentivo ao aparelho produtivo nacional e de combate à pobreza. Mas, ao que parece, continuamos enleados numa velha dificuldade assinalada pela lucidez queirosiana: a falta de pessoal.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Hawking despede Deus

Contrariando a medicina e seus doutos esculápios, o físico Stephen Hawking teima em estar vivo. Para ainda maior espanto, continua a ser um vivo intelectualmente activo. Prova dessa vitalidade é o livro recentemente publicado com o título The grand design, obra escrita em colaboração com um seu colega, o matemático Leonard Mlodinow. Ainda não existe tradução portuguesa, como é natural. Mas ela não tardará muito. O que tardou ainda menos foi a oposição religiosa ao texto do prestigiado cientista.
Neste início da segunda década do século XXI, tendo o homo sapiens já a venerável idade de dezenas de milhares de anos, a civilização, por ele edificada, mais de cinco mil, e sendo as também por ele criadas filosofia e ciência entidades culturais centenárias (até a jovem scienza nuova já leva quatrocentos anos de existência, o tempo passa…), Hawking vem-nos dizer algo que seria suposto já não passar de mera banalidade cimentada nas nossas cabeças pensantes: que o Universo não foi criado por nenhuma mente divina; não é obra de nenhum deus pessoal, como esse de que nos fala a Bíblia ou o Corão, mas sim o resultado de processos descritos pelas leis da física. O Universo é um efeito quântico. Além do mais, aproveite-se para o dizer, a ideia de uma mente operando de modo absolutamente misterioso e contrário a todos os indícios experimentais, a todos os dados cognitivos amealhados pelas neurociências, e, até mesmo, em contradição com as evidências, é algo que, entre gente cultivada, vai sendo cada vez menos suportável, se quisermos manter atitude de autêntica honestidade intelectual. (Recorde-se que à luz do conhecimento legado pelas neurociências, em particular nas últimas duas décadas, a hipótese de uma mente consciente funcionando à revelia de qualquer tipo de sistema neural é algo destituído de sentido. Ninguém no interior da comunidade científica põe em causa a correlação entre acontecimentos mentais e acontecimentos cerebrais. A polémica, que a há, e forte, situa-se a outro nível.)
Conclui-se, então, que na opinião de Hawking a hipótese de um deus pessoal demiúrgico não faz sentido. É simplesmente inútil à compreensão da história do universo, incluindo o problema da sua origem. Basta-nos o recurso a criações bem humanas como a mecânica quântica. Deus é uma hipótese descartável. Não deveríamos saber isto desde Laplace, pelo menos?
Bom, convenhamos que a conclusiva é bastante indigesta para quem organiza o seu sustento na base da ideia da reconfortante presença de um Criador divino. A coisa incomoda, é certo. Mas a inteligência crítica devia servir para superar a dificuldade, edificando comportamento adaptado às novas realidades cognitivas.
O que, entre pessoas cultivadas, devia ser já algo incontroverso, por efeito do conhecimento coligido, na prática verifica-se não o ser. O novo livro de Hawking logo incendiou espíritos apressados em vir a terreiro com o objectivo de atacar o cientista, desacreditar a sua tese, vilipendiar e lançar alerta aos rebanhos para que se protejam deste discurso satânico, diabolizador.
Embora já quase nada me espante nesta esfera comportamental, o apego à cultura da inteligência crítica não me permite ficar indiferente a certas afirmações. Daí que, sem possibilidade de autocontrolo, vi levantarem-se-me os cabelos no cimo da cabeça quando me chegaram ao conhecimento as públicas declarações do padre Manuel Morujão. Faço notar tratar-se de um alto responsável da Igreja: secretário da Conferência Episcopal Portuguesa e ex-membro do governo geral dos jesuítas em Roma. Diz-nos ele o seguinte a propósito da tese de Hawking: «trata-se de uma indevida ingerência da ciência no campo da teologia. […] um físico famoso deve evitar a tentação de destronar Deus do seu lugar, pretendendo impor os dogmas da ciência em território da religião… Dêmos a cada um o que lhe pertence. […] Ciência e religião devem ser como dois países independentes, no respeito mútuo das fronteiras e da autonomia recíproca» (entrevista concedida à revista FOCUS, nº570, 15/Setembro/2010, pp.122-125) .
Então a religião afirma que o Universo (realidade física) foi criado por Deus, que esse Deus, e ainda outros entes semidivinos, provocam milagres, ou seja, fenómenos que denegam as leis da física, e, perante estas afirmações, a ciência (neste particular a física), que por acaso se estriba numa coisa chamada racionalidade critico-dubitativa, deve permanecer em silêncio? Deve ficar indiferente a essa possibilidade de os sistemas que estuda funcionarem, afinal, em desacordo com as leis por si tão cuidadosa e rigorosamente enunciadas? Não tem direito a contra-argumentação crítica? Então o trabalho científico, que é a mais triunfante ferramenta antidogmática criada pelo homem, é que está a impor dogmas? Não nos ensina a história ter sido a ciência vitimada cronicamente pela imposição de dogmas religiosos? Não foi por isso que, com um lamentável (para já não dizer vergonhoso) atraso de centúrias, o penúltimo papa pediu desculpa a Galileu? Louvado seja deus! Haja um pouco de sensatez e de decoro intelectual.
Uma religiosidade refém da ideia vetusta -- obsoleta mesmo -- de um deus pessoal, ser interveniente nos aconteceres mundanos, como o deus de que nos fala o cristianismo e as outras religiões do Livro, deixou de ter futuro. Afirmar a existência de uma tal entidade passou a ser uma desonestidade intelectual – quando, note-se bem, esse afirmar se manifesta num espaço culturalmente bem informado. Já entrámos no tempo da religiosidade pós-divina; isto é, o de uma religiosidade sem deuses pessoais demiúrgicos. Será essa uma religiosidade cada vez mais racional e absolutamente compatível com a ciência.

Uma última nota crítica: pena que este último livro de Stephen Hawking seja obra demasiadamente ligeira, fazendo demasiadas concessões ao leitor não iniciado. O tema exigia maior profundidade e densidade. Qualidades não necessariamente incompatíveis com a intenção divulgadora.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Portugal em crise

Um imenso coro de alegados especialistas em política, em economia, em finanças vem a terreiro dizer fundamentalmente duas coisas: que o país está à beira do abismo em consequência da incapacidade governativa de quem tem governado ao longo dos últimos anos; e que o orçamento de Estado proposto pelo Governo é muito mau, não garantindo solução para a gravíssima crise financeira. Dito isto, as mesmas sumidades apressam-se a dizer que o PSD tem que aprovar o OE sob pena, acrescentam, de se passar do mau para o péssimo. O que nos vai salvar desse agravamento é, dizem os mesmos analistas, a aprovação de um péssimo orçamento e a consequente aplicação de medidas que ninguém acredita serem eficazes, para além de serem socialmente injustas. A irracionalidade continua à solta. Parte-se irracionalmente do pressuposto de que as medidas do PEC-3 são as únicas possíveis e de que, assim sendo, não há alternativa. A voz de quem apresenta alternativas concretas e contrapropostas orçamentais para a contenção da despesa pública é pura e simplesmente silenciada. Depois, multiplicam-se pressões, particularmente sobre a direcção do PSD, para que o mau OE seja aprovado. Por último, considera-se gravíssimo o risco de os actuais governantes incompetentes se irem embora. Então perante a incapacidade governativa do actual Governo não seria lógico desejar-se que ele desapareça, deixando de semear erros que arrastam o país para o abismo? A gravidade da situação parece aconselhar uma medida enérgica que nos salve da incompetência governativa do actual Governo: a criação de um Governo de salvação nacional que dê para o exterior uma imagem de credibilidade governativa, um governo suprapartidário. Nas últimas horas, foi da boca do fiscalista e vice-presidente do PSD Diogo Leite de Campos (a cuja família político-ideológica não pertenço) que ouvi comentário mais lúcido, com a acrescida vantagem do humor. Passo a citar: «Qual é a diferença entre ter este Governo ou estar a duodécimos – onde não pode aumentar impostos mas pode cortar despesa – quando os operadores internacionais já disseram que não acreditam nestas medidas? Não podemos estar reféns de um Governo incapaz que diz que, se não fizermos o que quer, foge. Então fujam!»

Nobel da Paz

Arrepio-me ao ver, neste meu país, pessoas e instituições com grandes responsabilidades políticas virem protestar contra a atribuição do Nobel da paz a um cidadão chinês, Liu Xiao Bo, que corajosamente trava um combate pela liberdade de expressão no seu país, em vez de se preocuparem, prioritariamente, em denunciar uma obscenidade política: a intolerável situação de desrespeito por direitos humanos elementares, como o da liberdade de expressão, naquele que é o Estado mais populoso do globo. Será que tais pessoas e instituições não se apercebem do descrédito em que caiem? É grave quando responsáveis políticos perdem autoridade moral.
Não me sinto em condições de avaliar se a atribuição é a mais justa. Não conheço suficientemente a pessoa em causa nem a acção por ela desenvolvida, e desconheço quem eram os outros candidatos ao prestigioso prémio. Mas tal em nada afecta o que antes ficou dito.
Liu Xiao Bo encontra-se preso por pensar e ter determinadas opiniões críticas. A sua mulher acabou de ser detida, proibida de falar, impedida de utilizar o seu telefone e o seu computador por ter dito o que pensa.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Damásio assume-se

Chega-nos novo livro de António Damásio, com título, a meu ver, bem mais feliz na edição americana do que na versão portuguesa que funciona como uma espécie de “segundo original” (passe o paradoxo). Isto malgré a pessoana titulação presente na edição com a dupla chancela da Temas e Debates/Círculo Leitores: O livro da consciência. Em inglês o título é: Self comes to mind. O termo “self”, inexistente nas línguas latinas, cria desde logo dificuldades de tradução que a associação com “come to” em nada vem facilitar. Uma exigida translação rigorosa, literal, acabaria sempre por não resultar, a vários níveis -- incluindo o do marketing editorial. Mas ambas as titulações são da responsabilidade do próprio autor. Nesta obra versando temática verdadeiramente fascinante – a questão de saber como é que se arquitecta a mente consciente, como é que emerge, na base de um processo construtivo, aquilo a que o autor chama o eu autobiográfico – Damásio, consciente da fase de vida em que está, exibindo invejável currículo científico e sabedor da notoriedade internacional de que goza, decidiu assumir-se inequivocamente como pensador/cientista materialista ateu. Sempre tive a sensação de que o autor do Erro de Descartes não estava ciente da dimensão do temor causado pelas fogueiras, inquisitorialmente ateadas, na alma do Filósofo que criticava. No entanto, também nunca duvidei que, embora liberto do risco directo da proximidade desse lume inquisitorial, o nosso prestigiado neurocientista não estava imune aos medos causados pelas neo-fogueiras, destituídas de lume, é certo, mas nem por isso menos destruidoras da pessoa humana. São elas, entre outras, os cortes de financiamento, o desemprego, a marginalização, a ostracização. Bem consciente desses perigos que tão gravemente podiam lesar a sua nobre labuta, António Damásio conseguiu gerir habilmente o seu discurso em relação a questões particularmente sensíveis no plano filosófico, ideológico e religioso. Nisso, nesse cuidado, não deixou de estar em sintonia com Descartes. Mas agora, pela primeira vez em obra com grande visibilidade (mediática e não só), assume ele clara e inequívoca posição face ao central e clássico problema da relação mente/corpo, mental/neural ou, no uso de terminologia mais clássica e tradicional, o problema da relação do espiritual com o material. Questão que não se pode separar de um outro eterno, e não menos exasperante, quebra-cabeças. Refiro-me ao problema, também ele fundamental, da causalidade descendente. Ou seja, a dificuldade de entender como é que partindo do nível dito superior da pura espiritualidade, o dos estados mentais, se pode descer por uma escada de causa-efeito até o patamar do comportamento. Como é que o espiritual pode influir no material? Como pode um estado mental causar um efeito sobre o funcionamento de um sistema material (um órgão, uma perna, a boca, etc.) influenciando os actos comportamentais práticos (constitutivos da acção prática concreta)? Descartes debateu-se com estas tremendas problemáticas ao longo de toda uma vida, optando, se muito não erro, pela ambiguidade. Uma prodigiosa ambiguidade teorética. Encenou intelectualmente uma resposta dualista para ambas as questões, resposta em que no fundo, ao que estou em crer, não acreditava. Hipótese minha, necessariamente muito discutível, e, como se sabe, não aceite por Damásio que por isso mesmo tomou a iniciativa de pôr em evidência aquilo a que chamou «o erro de Descartes», mas que no meu ensaio Cérebro, mente e paixões da alma (Universidade de Évora, 2000) tive o atrevimento de sugerir ser mais «o erro de Damásio». Seja como for, Damásio sente-se desde há muito em rotura com Descartes e atraído por Espinosa. Quanto a este, naturalmente -- acrescento eu. A inclinação em direcção ao monismo, em detrimento da resposta dualista, foi desde muito cedo clara no discurso do neurocientista. O que há agora de novo, se bem observo, é a clara assunção de um monismo materialista em que se reconhece um caminho facilitador da superação do «exasperante problema da causalidade descendente». Vejamos quão preclaro é o texto que agora nos chegou sobre a forma de livro no concernente ao enunciado de uma resposta final para os dois grandes problemas evocados.
No último dos apêndices que encerram a obra agora dada à estampa pode ler-se o seguinte:

«A perspectiva adoptada neste livro engloba uma hipótese que não é universalmente apreciada, e muito menos aceite – ou seja, a ideia de que os estados mentais e os estados cerebrais são, no seu essencial, equivalentes.» (p. 383 da edição portuguesa).

Saltando do fim para o princípio, deparamos com os seguintes parágrafos:

«A observação da consciência a partir da nossa posição actual […] é responsável por uma distorção compreensível mas perturbante dos estudos sobre a mente e a consciência. Observada do alto […] parece um fenómeno de natureza diferente do dos tecidos e funções biológicas do organismo que a alberga. […] O encararmos a mente como um fenómeno não-físico, isolado da biologia que a cria e mantém, é responsável pela colocação da mente fora das leis da física, uma discriminação à qual outros fenómenos cerebrais geralmente não estão sujeitos. […].
A nossa intuição diz-nos que a efémera e volátil mente carece de ex-tenção física. Penso que essa intuição é falsa, e que deve ser atribuída às limitações do eu desarmado. Não vejo motivo para que essa intuição mereça mais crédito do que anteriores intuições evidentes e poderosas, como por exemplo a noção pré-coperniciana do que acontece com o Sol e com a Terra, ou mesmo a noção de que a mente residia no coração. As coisas nem sempre são o que parecem.» (pp.31 e 32, ed. cit.).

Terrível heresia a que estas passagens exalam. Sectores como os que ainda há poucas horas desavergonhadamente contestaram a justa atribuição do prémio Nobel a Richard Edwards não vão perdoar a António Damásio. Mas, como ele próprio sabe, já não têm poder para o “queimar”, e muito menos conseguem impedir o avanço do conhecimento científico. Pena que o grande Descartes não tenha podido usufruir da mesma imunidade.

[Referências bibliográficas: DAMÁSIO, António: O livro da consciência, Temas e Debates / Círculo de Leitores, Lisboa, 2010.
BRANCO, J.M.de Freitas: "Cérebro, mente e paixões da alma", em Seminário sobre o Cartesianismo, Universidade de Évora, Évora, 2000.]

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

República desgovernada

A Nação comemora o primeiro centenário da República sob a séria ameaça de falência do Estado Português, ao mesmo tempo que a acção governativa provoca um misto de descrença, estupefacção, indignação e revolta. No essencial, a coisa pode resumir-se assim: no seio de uma família numerosa chega-se à conclusão que os recursos financeiros são insuficientes para sustentar o estilo de vida presente e que, portanto, emergiu uma situação de grave crise económico-financeira exigente de urgentes medidas tendentes a reduzir as despesas. A mãe e o pai dessa família, assumindo a condição de chefes do grupo, primeiros responsáveis pelo governo do lar ameaçado, decidem então manter o projecto de compra de um terceiro automóvel de luxo, assim como o hábito de jantar fora várias vezes por semana em faustosos restaurantes e de pernoitar em hotéis estrelados, mas, conscientes da crise, acordam em reduzir drasticamente as despesas de alimentação, saúde e educação dos filhos menores, bem como os gastos com os avós reformados e enfermos. Tomadas estas “corajosas” decisões, os país apreçam-se a anuncia-las à parentela, apresentando-as solenemente como única alternativa à iminente catástrofe financeira, como única solução possível. Apelam por fim à compreensão de todos, ao sentido de responsabilidade e ao espírito de sacrifício dos membros da família. Quanto a um consistente programa de acção para gerar riqueza com base no trabalho produtivo, nada disseram, ao que consta, os chefes da afectada família.
Eis a imoralidade governativa à solta. Eis a desvergonha de quem está refém de inconfessáveis interesses.
À luz da ética, da moral, da justiça social as medidas anunciadas pelo Governo são completamente irracionais. Mas à luz dos interesses do poderio são bem racionais e intencionais.
É este o despautério político que os comentadores de serviço deviam denunciar, mostrando que a solução apresentada pelo Governo não só não é a única possível, como também não é nem a mais justa nem a mais eficaz. Pior. Não chega a ser, no fundamental, uma verdadeira solução. Estranha-se (ou talvez não) que a comunicação social, em particular as televisões, ignore por completo os economistas que apontam alternativas, que propõem outros caminhos, outros desenlaces. Faz-se prevalecer a ideia, falsa, de que existe um consenso cientificamente fundamentado em torno do conteúdo das medidas governamentais.
Do Brasil chegam-nos sinais importantes para o bom pensar da nossa situação presente. Amealho alguns: a extrema relevância da qualidade humana de quem ostenta a vara do mando; ou seja, o valor da presença de seres humanos de categoria no topo da governação. (Os dois últimos presidentes da República Federal do Brasil chamavam-se Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva.) A demonstração de que o combate à pobreza não é incompatível com a diminuição da dívida do Estado. (Entre 1995 e 2010 a dívida foi reduzida para menos de metade – de 26 mil milhões de dólares para 11 mil milhões – e 24 milhões de pessoas deixaram de ser pobres.) O facto de o Brasil ter passado, num período de apenas década e meia, de país do terceiro mundo para o grupo dos países mais desenvolvidos do mundo (nos últimos tempos o crescimento foi de 7%).
Talvez estes sinais nos possam ajudar a estruturar uma acção indignada de transformação da nossa realidade política. O 5 de Outubro, para mais em comemoração de centenário, é um momento propício para pensar a mudança.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Saramago

José Saramago

"Creo que en la sociedad actual nos falta filosofía. Filosofía como espacio, lugar, método de reflexión, que puede no tener un objetivo concreto, como la ciencia, que avanza para satisfacer objetivos. Nos falta reflexión, pensar, necesitamos el trabajo de pensar, y me parece que, sin ideas, no vamos a ninguna parte."
Foram estas as últimas palavras que a Fundação José Saramago publicou no blog cuaderno.josesaramago.org, onde nos últimos dois anos foi possível acompanhar os textos escritos pelo Nobel da Literatura 1998.
José Saramago despediu-se aos 87 anos, deixando mais de 30 obras publicadas ao longo de 63 anos de carreira.

Irracionalismo pátrio

Uma das maiores irracionalidades lusitanas é a incompletude. Ela está incrustada no quotidiano da nossa sociedade nacional. Eduardo Lourenço definiu Portugal como sendo «o país dos eternos recomeços». Uma pátria onde se esboçam gestos nunca concluídos, em que se ama a superfície e se teme o aprofundamento. Num bom artigo publicado no Expresso Clara Ferreira Alves tem a coragem (porque hoje se correm sérios riscos quando se opina contra o poderio) de alertar para isto a que chamo irracionalismo pátrio. Escreve ela:
«Não admira que num país assim emerjam cavalgaduras, que chegam ao topo, dizendo ter formação, que nunca adquiriram, (Olá! camaradas Sócrates...Olá! Armando Vara...), que usem dinheiros públicos (fortunas escandalosas) para se promoverem pessoalmente face a um público acrítico, burro e embrutecido. […] A justiça portuguesa não é apenas cega. É surda, muda, coxa e marreca.
Portugal tem um défice de responsabilidade civil, criminal e moral muito maior do que o seu défice financeiro, e nenhum português se preocupa com isso, apesar de pagar os custos da morosidade, do secretismo, do encobrimento, do compadrio e da corrupção.
Os portugueses, na sua infinita e pacata desordem existencial, acham tudo "normal" e encolhem os ombros.
Por uma vez gostava que em Portugal alguma coisa tivesse um fim, ponto final, assunto arrumado.
Não se fala mais nisso. Vivemos no país mais inconclusivo do mundo, em permanente agitação sobre tudo e sem concluir nada.
Nunca saberemos a verdade sobre o caso Casa Pia, nem saberemos quem eram as redes e os "senhores importantes" que abusaram, abusam e abusarão de crianças em Portugal, sejam rapazes ou raparigas, visto que os abusos sobre meninas ficaram sempre na sombra.
Existe em Portugal uma camada subterrânea de segredos e injustiças, de protecções e lavagens, de corporações e famílias, de eminências e reputações, de dinheiros e negociações que impede a escavação da verdade.
Este é o maior fracasso da democracia portuguesa
Clara Ferreira Alves - "Expresso"

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Política irracional

À luz do mais elementar humanismo, da racionalidade política e do bom senso só se pode desejar que no Médio Oriente Israel e a Palestina possam existir como Estados livres e independentes, mantendo saudável relação de vizinhança pacífica. A história das últimas décadas ensina não haver solução militar para o conflito israelo-palestiniano. É uma evidência. Por isso, o que se está a passar é ainda mais escandaloso e revoltante. O bloqueio ilegítimo e ilegal, por ser completamente desrespeitador das regras internacionais estabelecidas pelas Nações Unidas, é um terrível exemplo da irracionalidade de uma política estatal. É urgente derrotar esse tipo de políticas. Um colunista israelita, contrariando audazmente a irracionalidade do governo do seu país, escreveu: «Nós [israelitas] não estamos mais defendendo Israel. Nós estamos agora defendendo o bloqueio (a Gaza). O bloqueio por si só está a tornar-se o Vietname de Israel.» Estes cidadãos israelitas lúcidos, portadores de soluções políticas racionais e humanistas, têm que ser apoiados por nós, pelos nossos gritos de indignação. A impunidade de Israel não pode continuar. Fere os interesses de todos os Estados democráticos.
Convido os seguidores e leitores deste blog a assinarem a petição contra o ataque à frota humanitária e exigindo o fim do bloqueio ilegal a Gaza.
Assinar em
http://cdn.avaaz.org/po/gaza_flotilla_3/?vl

Mourinho filósofo

Surgiu recentemente no Facebook um movimento de opinião propondo o nome de José Mourinho para o lugar de Primeiro-Ministro. Depois da grande vitória na Liga dos Campeões (a que aqui se fez imediata referência) houve quem considerasse ser este bem-sucedido treinador de futebol o cidadão português mais competente para assumir a liderança política da Nação, de modo a libertar-nos de incompetências várias e correlacionados insucessos nacionais.
Embora sendo uma brincadeira bem-humorada, a proposta não deixa de conter uma ideia política séria e profunda, que por isso mesmo talvez mereça ser objecto de reflexão.
Quem ler o bom livro de Luís Lourenço a que já aqui fiz referência (v. “José Mourinho”), um estudo dedicado à análise do modelo de liderança do afamado treinador, perceberá de imediato que um traço essencial desse modelo é o anti-dirigismo, ou a não imposição. Isto é, o modelo de Mourinho é, de alguma maneira, de natureza filosófica. É critico-dubitativo e não impositivo. Como diz o sábio “mister” «Para mim liderar não é mandar, para mim liderar é guiar.» E acrescenta: «Quando tu mandas, tu castras. […] eu quero desenvolver capacidades quer ao nível individual quer ao nível colectivo.» Parece um filósofo a falar; uma espécie de António Sérgio treinador. Eu, enquanto profissional da filosofia que me prezo de ser, e imbuído do meu velho antidogmatismo sergiano, sempre assim concebi a liderança, em geral, seja ela desportiva ou outra. Em qualquer caso, toda a liderança é, em si mesma, fenómeno político. Este modelo é, por isso mesmo, a antítese do modelo de liderança do actual primeiro-ministro de Portugal. E logo este é que se chama Sócrates. Que desconcerto! Bem tinha razão o nosso Poeta ao fazer notar o desconcerto do mundo.
Com os olhos postos na acção política, e não no futebol, António Sérgio dizia sabiamente: «a boa política […] é uma arte de emancipar os homens; e estou na crença de que o grande político – como o grande pedagogo – é aquele que com a máxima simplicidade e humildade trabalha constantemente por se tornar dispensável; que é o que treina o povo para se governar a si mesmo, com o mínimo de intervenção de quaisquer políticos.» (Cartas do Terceiro homem, XIV).
Repare-se bem na expressiva imagem do político que é treinador de povos; não há só treinadores de futebol ou de outros jogos, há também treinadores de povos, sendo que alguns princípios de actuação parecem ter validade universal.
Mourinho treinador de futebol, inconscientemente (ou talvez não, porque foi discípulo de outro Sérgio, o Manuel), reproduz essa sagesse sergiana ao declarar enfaticamente e de modo muitíssimo acertado que o que faz falta, como dizia o cantor da nossa resistência, é «criar condições, em vez de dar ordens, e usar o poder de autoridade para conferir poder aos outros». Também esta, uma bonita forma de dizer. Lourenço, no livro de onde retiro as citações de Mourinho, mostra como esta visão da liderança sintoniza com a do cientista e pensador Fritjof Capra para quem a «liderança é facilitar o processo de emergência e, ao fazê-lo, promover a criatividade». Pessoalmente, como sabem os que têm tido a generosidade de me ler, sempre insisti neste ponto. Veja-se o que escrevi em Pensar a democracia (Editorial Inquérito, 1994, p.121):
O novo paradigma de uma política complexa deverá colocar o acento tónico na livre criatividade do sujeito singular, bem como na sua intervenção autónoma nos destinos individuais e colectivos. De onde releva a importância da educação/formação do sujeito cidadão em cuja base a autonomia deverá (e poderá) tender a sobrevalorizar-se em detrimento da dependência. Se não erro, só por esta via de enriquecimento das condições de possibilidade do exercício da criatividade livre se pode alcançar o nível da autêntica participação. Espaço para a génese de sistema político participado e não preponderantemente representativo, como acontece com as actuais democracias.
Partimos de uma brincadeira relacionada com o sucesso de um treinador de futebol, considerámos o perfil do modelo de liderança desportiva desse mesmo treinador, e isso conduziu-nos a uma questão profunda no espaço da filosofia social e política, ajudando-nos a pensar um aspecto capital na nossa realidade hodierna.
Como nos diz Luís Lourenço, em forma de conclusão sobre o modelo de liderança que se propôs analisar, tudo vai desembocar na mesma ideia central: «a de que a liderança eficaz facilita e fomenta a consciência individual – a sede da criatividade» (em Mourinho – a descoberta guiada, Prime Books, p.63).
Há aqui profunda matéria de reflexão filosófico-política. Pense o leitor nisto, porque é coisa útil e actualíssima. Mas pense bem.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Changeux em Lisboa

Uma grande figura da ciência e da cultura, o francês Jean-Pierre Changeux, um pioneiro da biologia molecular, discípulo predilecto de Jacques Monod, e um dos maiores neurocientistas, fez uma conferência em Lisboa no início desta semana. Centrou a sua atenção na hipótese que tem vindo a desenvolver de criação de uma neurociência da pessoa humana. Algo que permita explicar, num quadro de objectividade, coisas admiravelmente misteriosas como a universalidade do imperativo moral no ser humano, ser esse que, como sabemos, se caracteriza também, e ao mesmo tempo, pela variedade cultural que exibe e cultiva. Esperava-se – ou pelo menos esperava eu, contaminado por idiossincrático optimismo – que o Auditório 2 da Fundação Gulbenkian tivesse sido pequeno para albergar estudantes universitários de várias áreas, com destaque para as de biologia, medicina, psicologia e filosofia, ávidos de escutar directamente uma figura maior da ciência contemporânea e (coisa que não acontece com todos os cientistas de nomeada) verdadeiro homem de cultura universal – recorde-se que Changeux é também um especialista em pintura seiscentista e setecentista francesa, tendo dedicado especial atenção à fundamentação neurológica da experiência estética (Raison et plaisir). A realidade revelou-se outra. Os estudantes não se sentiram motivados a aparecer. Era mais notória a presença de profs. Não creio que tenham estado mais de 70 pessoas na sala. É certo que Changeux é um mau comunicador, e ao tornar-se menos jovem essa incompetência manifesta-se por vezes ao nível elementar da própria dicção. Mas não deixa de ser triste ver o auditório com tantas cadeiras vazias, significando que muitos jovens estudantes universitários perderam uma oportunidade rara de estar em directo contacto com uma grande personalidade. Estas oportunidades nunca se devem perder, porque são sempre enriquecedoras e ajudam a semear entusiasmos – essencial elemento da pedagogia.
Aproveito para recomendar a leitura do último livro de Changeux, obra em que ele reúne os conteúdos dos cursos que leccionou no Collège de France. Como ele próprio revela, «j’ai écrit ce livre à partir de la matière de mes trente années d’enseignement au Collège de France». Aqui fica a referência bibliográfica:
CHANGEUX, Jean-Pierre: Du Vrai, du Beau, du Bien – Une nouvelle approche neuronale, Editions Odile Jacob, Paris, 2008. (Preço em França: aproximadamente 28 Euros.)

Quando, em conversa pessoal, referi a Jean-Pierre Changeux a importância que um dos seus livros tinha tido na feitura de um dos meus -- o meu trabalho sobre a dialéctica objectiva no quadro das ciências da natureza (Dialéctica, ciência e natureza, Editorial Caminho, 1990) --, respondeu-me com um delicioso sorriso amplo e cristalino de menino contente, deixando-me, também a mim, satisfeito.

domingo, 30 de maio de 2010

Teixeira-Gomes, um convite à leitura

Há muito que sabemos ser hábito pátrio mal tratar os melhores filhos deste nosso torrão. O maltrato do olvido e da indiferença é talvez o pior, e se ele já não nos pode surpreender, deve sempre indignar-nos. Menos surpreendidos ficamos quando tal procedimento atinge autor herético, crítico da acção da Igreja. Que outra coisa se podia esperar no seio desta pátria tão longamente afectada pelo catolicismo e em que a Inquisição prosperou singularmente?
Teixeira-Gomes, figura maior de escritor e político da nossa primeira República foi particularmente vitimado. Quem o lê? Que referências lhe são feitas nos programas escolares? Que obras suas aparecem nas selectas literárias destinadas aos jovens estudantes do ensino secundário? Que eu saiba, nenhuma, e rarissimamente se encontra alma que revele algum tipo de familiaridade com a sua prosa. Tudo isto porque teve a audácia de ser lúcido em terra de obscurantismo religioso, neotomista e sebastianista, escrevendo coisas como esta: «Os frades prosperam e alastram, como a grama em terreno inculto, por esta população de jornaleiros famélicos, e proprietários opulentíssimos que vêem nos claustros os específicos respiradoiros da miséria oprimida. Para a gente rica não há ‘anjo da guarda’ que valha um frade na faina de a proteger contra as reivindicações do povo.» Assim denunciava o escritor as cumplicidades da Igreja com o poderio nas suas “Cartas sem moral nenhuma” – título bem indicativo da intensão de se opor ao espírito moralizador dominante e tradicional. Também aí se encontra esta estupenda acusação de uma ideia dominante: perante os horríveis sofrimentos e desumanidades manifestos na realidade mundana «a ideia de um ‘Ser Superior’ infinitamente poderoso e bom, ganha ali [nesse sofrimento e nessa miséria] foros de abominável escárnio.» Prosa insuportável para os poderes do tempo salazarento que condenou a obra de Teixeira-Gomes ao olvido e a vilipendiou.
Neste ano de comemorações do primeiro centenário da República talvez seja altura de chamar a atenção para a sua obra. Mas para isso torna-se indispensável e urgente que ela se encontre disponível. As velhas edições da Portugália (e outras) há muito que se encontram esgotadas. Foi por isso com grande satisfação que tomei conhecimento da iniciativa da Câmara Municipal de Portimão e da Imprensa Nacional de públicar as obras completas do escritor político. Uma óptima notícia. Estão o Município e a Editora estatal de parabéns pelo serviço que assim prestam à nossa cultura. Porém, algo incompreensivelmente, as edições da Imprensa Nacional continuam a ter uma péssima distribuição livreira. E, além disso, os processos de encomenda são, de uma forma geral, muito morosos.
Um dos responsáveis científicos pela preparação desta edição, o historiador Vítor Vladimiro, amigo e vizinho de longa data, teve a gentileza de me ofertar os dois primeiros volumes que aqui me apresso a divulgar. Nenhum português que se preze de ser homem ou mulher de cultura pode permitir-se ignorar a esplêndida prosa literária do Teixeira Gomes. Portanto, saúdo aqui o competente e abnegado esforço do Vítor Wladimiro Ferreira, do Urbano Tavares Rodrigues e da Helena Carvalhão Buescu, esperando que o projecto editorial se conclua com sucesso.
Aqui fica a referência bibliográfica para que os leitores/seguidores deste blog possam encontrar-se com Teixeira Gomes:

TEIXEIRA-GOMES, Manuel: Obras Completas, anotadas por Urbano Tavares Rodrigues, Helena Carvalhão Buescu e Vítor Wladimiro Ferreira, prefaciadas por Urbano Tavares Rodrigues, Volumes I e II, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Câmara Municipal de Portimão, Lisboa, 2009.

«Um dos produtos mais acabados e originais,
sem par ao nível do estilo, da literatura portuguesa de sempre.»

Urbano Tavares Rodrigues

segunda-feira, 24 de maio de 2010

José Mourinho

No passado sábado, dia 22 de Maio, o nosso José Mourinho tornou-se um dos raros treinadores a vencer a Liga dos Campeões Europeus com dois clubes diferentes, consolidando assim a sua fama de “special one”. Se muito não erro, com esta nova vitória, Mourinho abriu caminho para devir uma figura lendária na história do jogo de futebol. Neste momento, julgo fazer sentido afirmar que ele criou um segundo catenaccio, a que talvez se possa chamar catenaccio paradoxal, uma vez que sendo defensivo, por definição, é também ofensivo. Um catenaccio ofensivo. Mas não é difícil imaginar que, num futuro próximo, ele ainda nos legue inovações tácticas mais notórias.
Mourinho é aqui chamado à colação porque constitui um útil e paradigmático exemplo de acção racional, embora no mundo da paixão pelo desporto-rei haja quem esteja convencido do contrário. O modelo de liderança causador do seu grande sucesso desportivo é eminentemente racional. Mesmo à distância, é fácil perceber tratar-se de alguém que continuamente pensa o jogo, analisando todas as suas componentes, incluindo as não puramente desportivas. Toda a sua acção enquanto treinador é acção pensada.
Na mesma altura em que Mourinho alcança esta vitória especial que lhe confere um novo estatuto (o de treinador recordista), surge nos escaparates das livrarias o livro Mourinho a descoberta guiada da autoria de Luís Lourenço, amigo pessoal do treinador. Nesta obra analisa-se o processo de criação e gestão de equipas de sucesso (equipas de alto rendimento, tanto no plano desportivo como empresarial). Luís Lourenço estuda o caso Mourinho e conclui estarmos perante um modelo de liderança aplicável a muitos outros domínios de actividade, nomeadamente, e desde logo, à esfera da gestão empresarial. Trata-se de um estudo interessante e bem fundamentado, em que se sente a saudável influência filosófica de Manuel Sérgio, professor de Mourinho no ISEF.
Porém, na página 99 do livro deparei com um parágrafo com o qual discordo em absoluto e que contradiz o antes afirmado nesse mesmo livro. Lê-se aí o seguinte: «Temos […] a descrição daquilo que Mourinho considera ser a sua forma estrutural de motivar os seus jogadores. Não é nada pensado, tudo é genuíno. Porque o que é decisivo no homem é o sentimento, a emoção, não o pensamento – é a partir do coração que a realidade se realiza e não a partir da razão.» É, digo agora eu, exactamente o contrário: tudo é pensado, tudo está sujeito a reflexão permanente, tudo é cuidadosamente analisado. Nesta infeliz passagem do seu interessante estudo Luís Lourenço deixa-se contaminar por um velho e persistente vício de pensamento que consiste em divorciar a razão da emoção. Trata-se de um erro tradicional. Defeito que, confesso, se vai tornando para mim cada vez mais insuportável. Um espírito racional não é pessoa destituída de paixões, incapaz de ter impulsos, reacções espontâneas ou variegados tipos de embriaguezes. Um ser humano cultivador da racionalidade, o homem clássico, possui, como qualquer outro, os impulsos naturais próprios da espécie. A diferença é que, para além desses, possui em grau inusual o instinto racional. Entre nós foi António Sérgio quem melhor disse esta verdade essencial teimosamente ignorada por quase todos neste torrão de poetas: «a Razão – dizia ele – é o instinto, a fé, o pre-conceito, da penetrabilidade das coisas pela lucidez mental.» É esse essencial instinto que encontramos bem vivo e activo no homem treinador José Mourinho, mesmo que possa não estar absolutamente consciente disso. Como inspiradamente dizia o mesmo Sérgio, o clássico «é uma fúria estruturada». Disso mesmo é Mourinho magnífico exemplo. Ele, treinador racionalista, é, por isso mesmo, por ser racionalista, é fúria estruturada. É isso o espírito racional, e não uma ausência inumana de emoções ou de paixões. Quanto tempo faltará ainda para que a generalidade das pessoas compreenda isto?
O parágrafo que acima citei, objecto da minha discordância no interior de uma prosa analítica que apreciei, é particularmente surpreendente porquanto denega o demonstrado em capítulos anteriores do livro. De forma consistente, bem informada, utilizando depoimentos do próprio treinador, Luís Lourenço põe em evidência o instinto racional (assim lhe chamo eu). Por exemplo, quando analisa detalhadamente o que se passou no Emirates Stadium, no dia 6 de Maio de 2007. O momento da primeira grande derrota de Mourinho com visibilidade internacional: o empate do Chelsea com o Arsenal e a consequente entrega do título de campeão de Inglaterra ao Manchester United (o Man Utd). É notório como Mourinho tinha essa hipótese cuidadosamente pensada. E no momento da derrota, como Lourenço mostra, ele começa a preparação para o próximo jogo (que era a final da Taça de Inglaterra, tendo como adversário o Man Utd.), evitando assim que os seus jogadores ficassem enleados no desânimo de uma derrota e superando ou minimizando de imediato prováveis danos psicológicos. «E aquilo que, em muitos casos, seria uma hora de silêncio, de baixar de braços, de desalento, transformou-se, afinal, numa celebração»(Lourenço, p.19). Aqui está a fúria estruturada em acção.
Outro esplêndido exemplo de racionalidade, de instinto racional, é-nos dado nas páginas 42, 43 e 44 em torno da forma como o treinador analisa a velocidade como factor do jogo. O discurso não pode ser mais racional: «[…] um jogador lento do ponto de vista tradicional é, afinal, um jogador rápido numa perspectiva complexa, porque se vai deslocar numa altura em que os outros não esperam, num momento correcto, num momento em que o companheiro com a bola precisa que ele se desloque. Desta forma, tudo isto é complexidade e o homem é um todo complexo no seu contexto. Por isso, trabalhar qualidades individualizadas e/ou descontextualizadas da complexidade do jogo é, para mim, um erro grave».
Em face do que aqui ficou dito, atrevo-me a sugerir ao autor que, numa eventual 2ª edição da obra, refaça o parágrafo da página 99 acima citado, apagando o que me parece ser uma incoerência.
Para quem goste de futebol, se interesse pelo fenómeno da liderança e da gestão de equipas de alto rendimento e, principalmente, para quem se interesse pelo case study José Mourinho recomendo a leitura deste último livro de Luís Lourenço acabado de publicar sob a chancela da Prime Books ( www.primebooks.pt ).

domingo, 23 de maio de 2010

Professora na Playboy

O recente episódio mediático da professora de Mirandela nas páginas da Playboy é um bom indicador do deficit de racionalidade no nosso tecido societal.
O poder político local, a Câmara municipal de Mirandela, foi lesto na decisão de afastar a professora do seu lugar de trabalho, agindo, supostamente, em defesa dos superiores interesses das inocentes meninas e meninos que frequentam a escola pública da região, mas não se lhe topou a menor preocupação relativamente ao facto, agora comprovadíssimo, de as crianças de Mirandela terem fácil acesso a uma revista sexual-erótica destinada a pessoas adultas. Não será isso o preocupante? No entanto, nem a Câmara, nem os jornalistas, nem os comentadores de serviço disso falam. Não menos estranho é o facto de ninguém ter aludido ao nível de competência profissional (pedagógica) da senhora professora que posou seminua para a Playboy e que por isso foi imediatamente afastada.
De notar o facto de não ter havido ninguém a rotular de pornográfica a referida revista, nem o nu fotográfico nela exibido, e de também um significativo número de vozes se ter feito ouvir em defesa da liberdade individual. Sintoma de recuo do Portugal ajesuitado, provinciano e obscurantista?

sexta-feira, 21 de maio de 2010

E o Homem criou a vida

Ontem, quinta-feira, dia 20 de Maio de 2010, a ciência legou-nos mais uma extraordinária capacidade: a de criar vida. Algo que a ingenuidade humana, misturada e guarnecida com a nossa não menos prolixa imaginação, sempre supôs ser atributo exclusivo de deuses. O ter o homem adquirido um tal poder – mesmo não sendo a primeira vez que exibe capacidade antes só atribuída a divindades imaginadas – fazia-nos acreditar que iria ser esse o acontecimento eleito por todos os editores de telejornais como tema de abertura. Mas não. Se bem vi, não houve um único bloco noticioso nos nossos quatro canais de televisão que tivesse começado com esta extraordinária notícia. Omissão quase tão assombrosa como o próprio feito científico. O que parecia ser indiscutível afinal não é. Os editores de serviço consideraram haver notícias muito mais relevantes do que essa da criação de DNA sintético. Dispenso-me de dar exemplos. São demasiado chocantes e desanimadores. Para contrariar esta irrazoabilidade que tão fortemente ofende, aqui vai o essencial da espantosa notícia: uma equipa de cientistas liderada por Craig Venter (que já há dez anos tinha adquirido notoriedade mundial com a apresentação do Mapa do Genoma Humano) transplantou para uma célula hospedeira um “software genético”, daí resultando uma célula sintética. Foram utilizadas como hospedeiras as células da bactéria Mycoplasma capricolum. Nelas foi introduzido o genoma sintético. Após apenas algumas replicações celulares estamos perante novas células, onde já não há vestígio da estrutura da M. capricolum. Nasce assim a primeira forma de vida artificial, uma bactéria sintética. Algo que não deixará de ter profundas implicações filosóficas, para além dos efeitos de natureza científica e tecnológica. Para mais informação, leia-se o artigo acabado de publicar na prestigiada revista Science.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Crentes e não crentes

Depois da estada em território nacional do Sr. Joseph Ratzinger e do deplorável comportamento do Estado Português, violando princípios básicos do laicismo consignados na Constituição, e também em face do histerismo católico exibido pela generalidade dos órgãos de comunicação social (privados e públicos), talvez convenha recordar, ou dar a conhecer, que a religiosidade estribada na crença em um deus pessoal e associada às principais instituições da fé, como a Igreja Católica Apostólica Romana, tem cada vez menos aderentes. Contrariamente ao que o histerismo da comunicação social faz crer, nunca na história da humanidade houve tantos ateus. Há locais em que o seu número cresce de dia para dia. Em vários dos principais países desta nossa Europa a maioria da população já não acredita em deuses pessoais, omnipotentes e omniscientes. É, por exemplo, o caso da Suécia, da Dinamarca ou da República Checa. Quanto maior o nível de informação e conhecimento menor é a crença. Como escreveu Phil Zuckerman num ensaio publicado em 2007, «Between 500 million and 750 million humans currently do not believe in God. […] High levels of organic atheism are strongly correlated with high levels of societal health, such as low poverty rates and strong gender equality. In many societies atheism is growing» («Entre 500 milhões e 750 milhões de seres humanos não acreditam actualmente em Deus. […] Os níveis elevados de ateísmo orgânico correlacionam-se fortemente com níveis elevados de saúde social, como taxas de pobreza baixas e forte igualdade sexual. O ateísmo está em crescimento em muitas sociedades»). A fé em divindades pessoais só continua a prosperar em regiões do Planeta com níveis baixos de escolaridade, em que o conhecimento científico é pouco e mal divulgado. Algo que devia merecer atenção reflexiva e crítica. Na maior parte do continente africano ou na Ásia o ateísmo não tem expressão. Acontece, porém, ser precisamente nessas regiões que se assiste presentemente a um significativo crescimento demográfico, enquanto nos países com maior cultura científica há uma estagnação demográfica ou até mesmo, em alguns casos, um decréscimo. Em consequência deste facto, verifica-se haver, a nível global, um aumento do número de seres humanos que declaram sentir o apelo do transcendente. Mas até mesmo em regiões com índices de cultura científica mais baixos, em países como a Índia, a China, o Paquistão e em Estados religiosos islâmicos, tem-se verificado um decréscimo da influência das principais instituições religiosas.
Para mais informação, recomenda-se a leitura do ensaio que aqui foi citado: Phil Zuckerman, “Atheism - contemporary numbers and patterns”, em Michael Martin (Ed.): The Cambridge companion to atheism, Cambridge University Press, Cambridge, 2007, pp.47-65. Esta obra acaba de ser editada em língua portuguesa: Edições70, colecção “O saber da Filosofia”. Tradução de Desidério Murcho. Título da edição portuguesa. Um mundo sem Deus. Ensaios sobre o ateísmo.

domingo, 16 de maio de 2010

Publicação

Foi publicado no último número da revista Vértice o ensaio "Darwin-Marx: reflexos darwínicos no pensamento marxista" da autoria de J.M. de Freitas Branco. Encontra-se à venda nas principais livrarias.
Ref.: Vértice, nº149, Novembro/Dezembro de 2009, pp.77-124.

Nota

Por dificuldades técnico-informáticas os textos ensaísticos publicados neste blog não incluem as notas de rodapé.
RACIONALIDADE
confusão e anticonfusão


Nos parágrafos inaugurais (na Einleitung) da obra capital do filósofo Ludwig Feuerbach, intitulada Das Wesen des Christentums (A essência do cristianismo), a atenção é centrada na diferença essencial entre Homem e animal – ou, como hoje se preferiria: entre o ser humano e os animais. Diferença essa em que, na opinião do filósofo, radica a religião. Partindo da constatação do que parece ser uma simples evidência - a não existência de religião entre os animais («die Tiere haben keine Religion») -, o autor abre caminho à reflexão sobre a essência do homem em geral (das Wesen des Menschen im allgemeinen) através da seguinte interrogativa: qual é a diferença essencial (wesentliche Unterschied) entre o homem e o animal? ( ). E logo responde: «a consciência; mas a consciência em sentido estrito». O ser humano, ao invés do animal, tem uma vida dupla: exterior e interior. No quadro desta complexificação protagonizada pelo humano é na vertente da vida interior que se desenvolve a consciência da sua própria essência. Ele é um ser consciente de si mesmo. Recuperando a clássica definição do pensar enunciada por Platão, o autor da A essência do cristianismo, põe em evidência a qualidade de ser que “fala consigo mesmo”. «O homem é para si ao mesmo tempo eu e tu»( ).
Sendo o homem o único ser consciente da sua própria essência é também ele, e só ele, no quadro da vida conhecida, que, por estar também destinado à contemplação e não apenas à acção, pode interrogar-se sobre o que é a essência do homem. Levantada esta nova interrogativa, Feuerbach responde dizendo ser ela «a razão (Vernunft), a vontade, o coração» ( ).
Interessa-nos reter aqui o primeiro dos três elementos constitutivos do género homem: die Vernunft, a razão. Ela não é algo que o ser humano possui ou adquire; é uma faculdade ou princípio constitutivo da essência do homem, do género, «da humanidade propriamente dita no homem» ( ).
Afastando-nos do espaço do filosofar feuerbachiano, e deixando de lado algumas especificidades, encontramos aqui uma concepção que ao longo dos tempos reuniu amplo consenso: a caracterização do ser humano como único animal racional. Mesmo após o advento da psicologia das profundidades, com a demonstração do peso percentual do não racional no funcionamento da psique humana, a ideia popular de homem = animal racional prevaleceu até os dias de hoje. (Muito embora esta definição contenha auto-negação por efeito do transbordante narcisismo de natureza não exclusivamente racional que consigo arrasta.)
A subtil diferenciação entre aisthesis (sensação) e uma consciência psíquica que se projecta para além do dado sensitivo imediato já se faz sentir nos poemas homéricos, mas é aos filósofos que cabe o mérito da sua problematização. A verdade, a verdadeira natureza das coisas, não se dá no imediato. No dizer aforístico de Heraclito, a verdade gosta de ocultar-se ( ). Requer por isso o esforço racionalizador. Somos remetidos para o complexo significado de termos como noesis e logos. A razão (logos) é a faculdade de compreender e de estabelecer relações intelectuais, mas também, com Platão, o relato verdadeiro. No Fédon ( ) o termo logos, significando relato – a capacidade de relatar o saber adquirido -, surge associado ao verdadeiro conhecimento (episteme); ou seja, a capacidade de relatar é apresentada como caractrística própria do conhecimento (dimensão gnosiológica). Platão traça uma oposição entre mythos e logos atribuindo a este último o significado de relato racional e verdadeiro ( ).
Mas em rigor que significa ser racional? Qual é a condição necessária para haver racionalidade – no pensar, no discurso, na acção?
Esse traço do seu perfil na ausência do qual se dá a desfiguração consiste nisso a que estimo chamar passo apoiado, em oposição a passo em falso – isto recorrendo a uma analogia com o andar. Cada vez que movo uma perna tenho que estar apoiado na outra, sabendo ao mesmo tempo para onde a vou mover. Para existir racionalidade, para se poder falar de pensamento ou discurso racional, é condição necessária a existência de fundamentação: só posso avançar para nova asserção desde que a/ou as anteriores estejam bem fundadas, ou então constituam uma evidência imediata (verdade axiomática, em sentido clássico) ou resultem de convenção pré-estabelecida. Regressando à nossa analogia com o caminhar físico, diríamos: só caminho bem se ao dar novo passo tiver antes bem firmada a perna que protagonizou o passo anterior.
Paradigma deste procedimento são os livros de Euclides, obra que em meu modesto entender devia constituir leitura obrigatória nas escolas de formação geral. Retenhamos como exemplo o seguinte enunciado: se são iguais dois ângulos alternos-internos determinados em duas rectas por uma secante, as rectas são paralelas. Para que esta asserção possa ser aceite como válida é requerida, antes de mais, uma total transparência terminológica: uma clara determinação do significado das várias noções envolvidas; ou seja, tem de estar definido com rigor o que se entende por “recta”, “secante”, “ângulo”, etc. Posto isto, tendo presente o Axioma de Euclides ( ) e o seu corolário segundo o qual se duas rectas são paralelas, toda a recta que intersecta uma intersecta a outra, somos colocados perante nova evidência, a saber: só existem duas possibilidades: as rectas ou são paralelas ou concorrentes. Se admitirmos esta última, entra-se em contradição com a hipótese. Chega-se a uma impossibilidade. Fica então demonstrada a asserção inicial (enunciado de um teorema). Como este exemplo mostra, na construção do pensamento/discurso racional (na esfera da autêntica racionalidade) toda a asserção requer concomitante fundamentação; sem esta a relevância daquela é diminuta.
À racionalidade corresponde, portanto, uma permanente transparência e controlo de procedimentos. A acção racional supõe o conhecimento preciso de duas coisas: o que estou a fazer e o que vou fazer. Temos então uma espécie de sistema de coordenadas cartesianas da racionalidade, em que o eixo dos x é “o que estou a fazer” e o dos y “o que vou fazer”. Sendo que também aqui se pode falar de par ordenado, significando que lhe está inerente a ideia de ordem, ou seja, um antecede o outro.
O procedimento racional confere confiança, segurança, alguma certeza. São efeitos da sua eficácia. Da sua estupenda nobreza, a que não é alheia a deslumbrante dimensão estética do passo racional. Mas essa sua inegável grandeza é, por efeito das próprias qualidades que encerra, portadora de grandíssimo risco. Um risco tanto maior quanto menor for a consciência da sua presença; e a história demonstra-nos quão diminuto tem sido o grau de consciência.
Em que consiste esse risco?
Reside no facto de a consistência do discurso racional poder gerar intolerância, arrogância intelectual, descriminação, dogmatismo, ou seja, limitação da liberdade; assim como também tentação monopolizadora.
Regressemos ao modelo euclidiano. Se perante as asserções bem fundadas e os enunciados demonstrados alguém se lembrar de levantar a voz para propor novas hipóteses ou soluções (acolher outras dimensões, considerar outro espaço, etc.), a tentação de silenciar essa voz diferente será provavelmente forte. Com a agravante de se estribar em sólida argumentação lógica aparentemente legitimadora da intervenção censória, negadora de liberdade. A segurança e a certeza acima referidas conferem a esse diferente, visto pelos olhos do racionalista confiante, a forte aparência de manifestação explícita da estupidez, da ignorância arrogante, da idiotice.
Ergue-se assim, e por efeito das mais nobres intenções e convicções, uma razão dogmática capaz de engendrar monstros. Um racionalismo narcísico que absolutiza o seu valor. Estabelece-se assim a perigosíssima, bem como abusiva, identificação do racional com o verdadeiro, da racionalidade (que neste caso é racionalização) com a veracidade. Este tipo de racionalidade dogmática, intolerante, arrogante - a que devemos chamar racionalização por oposição a razão - pode tornar-se tão nociva quanto o mais desbragado irracionalismo. Por outro lado, a tentação monopolizadora que acima referi consiste em supor que tudo é racionalizável, ignorando ser boa parte do mais importante, pelo menos por enquanto, pertença da esfera do não racionalizável (o amor, os afectos, os gostos estéticos ou outros). A razão, ao contrário da racionalização, permanece aberta (lógica aberta). Por isso aceita a presença do não racional. Olvida-se com demasiada frequência que o irracional pode estar, e esteve múltiplas vezes, entruzado com a racionalização. Aquilo a que Luckács justamente chamou die Zerstörung der Vernunft (a destruição da razão), apresentada como fundamento imaterial do nazismo, favoreceu o ocultar da efectiva racionalização viabilizadora de Auschwitz – desse investimento de racionalidade (de lógica) sem o qual tais monstruosidades jamais teriam sido exequíveis.
Engendra-se assim a monumental ilusão de que a razão não coabita com o erro; de que o procedimento racional, lógico, inibe em absoluto a falsificação, o discurso mistificador, erradicando o erro. Se assim fosse, a história da ciência não estaria, como de facto está, crivada de exemplos de hipóteses falsas, de teorias erradas, de concepções falaciosas. É que também há erros racionais - e até erros monumentais. Foi racionalmente que Aristóteles estabeleceu os princípios da sua física, declarando a imobilidade da Terra, e que Ptolomeu edificou o seu sistema geocêntrico. O próprio estudo analítico de certas patologias da mente é revelador de como o comportamento mais alucinado se reveste por vezes da mais sólida lógica sustentadora de surpreendentes racionalizações, como acontece nos estados paranóicos. É o que em psicologia se designa de pensamento paralógico, isto é, a manifestação de um raciocínio perfeitamente lógico assente em postulados falsos. O rótulo de anormalidade atribuído a estes casos produz o efeito de isolamento, levando-nos a supor que tais procedimentos são pertença exclusiva de espaços psiquiátricos situados à margem da normalidade. Esvai-se assim a vontade de verificar em que medida este patológico invade o terreno da chamada normalidade, aí marcando presença significativa. Se formos capazes de escapar ao efeito de isolamento e soubermos perscrutar certos indicadores, verificaremos, talvez com espanto, a assídua presença em solo de normalidade de procedimentos ou hábitos intelectuais similares aos antes observados na esfera da patologia psíquica, mas que em rigor, tecnicamente, não podem ser classificados como sintoma de comportamento perturbado ou como agente patológico. Mas não representam eles indício de desfalecimento da racionalidade, de gangrena do logos? Não será, por exemplo, essa perturbadora proximidade que sentimos quando, no seu esforço de condução de um programa de Aufklärung, Feuerbach se ergue contra a christliche Mythologie (mitologia cristã) dizendo que ela «aceita como facto qualquer conto de fadas da história»? Ou quando revela que ela «faz da razão um joguete de um materialismo religioso fantástico» ()? Ou ainda quando referindo-se à filosofia especulativa da religião declara que ela «transforma as imagens da religião nos seus próprios pensamentos» ()? Kant, por seu turno, falava dos casos em que a razão se curva sob o jugo de leis exteriores, outras que não aquelas «que ela a si mesma dá», originando a perda da liberdade de pensar ().
Há alucinações e ilusões racionalizadas.
A racionalidade não é coisa homogénea, indiferenciada, singular. Não é simples, mas sim complexa. Desde logo porque não há uma lógica única. Quando, por exemplo, se refere a racionalidade científica não se esgota aí todo o pensamento racional, senão que apenas uma parte dele; parcela fundamental, é certo, mas ainda assim uma parcela. O pensamento selvagem, para utilizar o designativo de Levi-Strauss ou a descrição mítica ou ainda o próprio agir prático do caçador-recolector integram estruturas lógicas, envolvendo por isso processos de racionalização. Só que opera fazendo intervir na sua própria base elementos não racionais nem racionalizáveis – fantasias, enfabulações, evocações oniricas – ou então falsas suposições, postulados errados. Voltamos a pressentir a proximidade do modos vivendi da mente perturbada.
A necessidade de superação do risco aqui enunciado, esse que em vez de promover a liberdade abre caminho a uma potencial imposição de limitações, convoca uma racionalidade de novo tipo: a razão crítico-dialéctica; essa que se autocontempla desconfiando sempre da sua “perfeição”; que endereça a si própria um olhar céptico. Sabedora da historicidade essencial do seu ser, ela já não se concebe como definitiva, nem monopolizadora. É uma razão, uma racionalidade, autocrítica que se compreende como processo, como momento de um devir, e que por isso mesmo logra escapar a defeitos pretéritos. Por isso é, por natureza, liberdade: coíbe-se de desrespeitar os direitos do espírito. É esse o logos que serve a teoria impedindo a degradação doutrinária que Edgar Morin. Na sua autenticidade, esse logos (razão assente numa lógica aberta) trava permanente e intensa luta não só contra o irracional mas também, ao mesmo tempo, e de modo não menos prioritário, contra a racionalização (estribada numa lógica fechada).
O paupérrimo maniqueísmo, fruto de eternas tentações simplificadoras, exibido por demasiados militantes da razão – melhor seria dizer militantes da racionalização -, maniquísmo que consiste em opor a razão endeusada (fonte única de todo o bem) ao irracional diabolizado (agente de todo o mal), é caso típico da racionalização obstrutora da razão, conducente ao ponto em que, fazendo uso de linguagem kantiana, a liberdade é confiscada ao pensamento.
Na história da civilização, desde as suas fases primevas até a época contemporânea, há um imaterial sempre presente e em torno do qual se desenvolve, com alternado grau de intensidade, uma complexa e subtil conflictualidade/oposição que trespassa toda a civilização. A esse imaterial latente no corpo societal chamo confusão. A conflitualidade/oposição que em seu torno se gera deixa rasto ao longo de toda a história e é de carácter essencial dado ser em grandíssima medida factor condicionante do estado de saúde geral do corpo civilizacional, na dupla vertente da acção material e imaterial.
Todo o pensamento , bem como todos os sistemas ideológico-práticos e os ideários dele derivados, pode classificar-se de acordo com a divisão em dois grandes grupos: o da confusão e o da anti-confusão. Aquele está associado à dependência, à ocultação, ao irracionalismo e à limitação, enquanto este está associado à autonomia, à não-dependência, ao esclarecimento, à razão (diferenciada da racionalização) e à liberdade.
De modo mais ou menos consciente, mais ou menos intencional e voluntário, com contornos mais explícitos ou menos explícitos, o pensamento, nas suas várias manifestações, assim como a acção prática que o materializa tende sempre, em última instância, para um ou outro destes dois pólos opostos: ora concorre para aumentar o grau de confusão latente no espaço societal, cultivando mistério, espalhando nebelina; ora, pelo contrário, serve o esclarecimento, dissipa a neblina, reduz o grau de confusão latente, agindo como força dilucidativo-emancipadora.
É tão indispensável quanto urgente entender que a semeadura da confusão – o amor à neblina, as obscuridades deletérias, a adoração do mistério, um certo culto judaico-cristão do que é fraco –, essa semeadura, nunca é inócua: ela serve como sempre serviu, de modo objectivo, a germinação de dependências. Favorece invariavelmente as ambiências propiciadoras da obediência e do consentimento. Cumpre assim importantíssima função politico-ideológico-prática em benefício do poder ou poderes dominantes instituídos. Razão pela qual o maior investimento seja hoje o investimento em confusão. Um investimento materializado e patenteado a todos os níveis: na acção dos media, no vasto mercado do irracional, na instigação metódica de medos causadores da obsessão da segurança, no jogo da inversão de valores, no complexo mecenato apoiante da acção do “intelectual reconhecido” ou “tecnocrata” (Chomsky) ( ), na vasta utilização do cinema e das artes do espectáculo em geral, no recurso à droga, no subtil mas fortíssimo incentivo ao ligeiro e ao superficial (a apologia da vida soft) associado ao cultivo do prazer leigt do consumo desenfreado.
Numa forma enunciativa que a muitos soará familiar direi, com ênfase, que a história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas centradas na confusão. Essa confusão, ora acarinhada ora digladiada, expressa as oposições esclarecimento/ocultação, autonomia/dependência.
No tempo presente, como em todas as épocas de acentuado declínio, em que a confusão se agiganta, assiste-se à formação de importantes vagas de irracionalismo. A questão central volta a ser a da confutação dos ideários ou dos procedimentos dadores de confusão. Reedita-se a urgência de travar novo grande combate em prol da razão emancipadora – a razão humana que aspira sempre à liberdade, como bem dizia Kant. Combate contra os nefastos efeitos do crescente ruído da confusão oriunda do pensamento ocultador, das nebulosidades deletérias, bem como das práticas e dos procedimentos que daí derivam.
Como diria o grande Espinosa, urge oferecer resistência aos sistemas ideológico-práticos da obediência, assim como contrariar o manufacturing consent, o fabrico de consentimento, de que já nos recuados anos 20 da passada centúria Walter Lippmann nos falava em tom denunciador, mas que agora exuberantemente se exibe nos media perante o nosso olhar incrédulo ( ).
Na sociedade tal como a conhecemos a conflitualidade em torno da confusão nunca se extingue, dada a função que desempenha na gestão dos poderes. Importa perceber que essa permanência, essa qualidade de ocorrência inextinguível, se deve não apenas às incontornáveis limitações de natureza gnosiológica (a impossibilidade de erradicar a dúvida através da absoluta omnisciência), senão que também a esse outro factor sempre desatendido mas não menos relevante: a função desempenha na gestão dos poderes; mas a referida conflitualidade continuamente gerada em torno da confusão conhece, no entanto, níveis de intensidade variáveis. Na fase hodierna voltamos a viver um momento de aguda conflitualidade entre a razão e o irracional, entre o gesto dilucidativo e o gesto obscurantista que derrama confusão. Gesto que é complexo, pois muito embora seja frequentemente intencional também não deixa de estar, em muitos casos, associado à actuação bem intencionada. Mas face à inaudita presença de perigos globais que põem em causa a possibilidade de sobrevivência da Humanidade, o actual confronto adquire dimensão inédita: pela primeira vez ele pode ser o último.
O único instrumento fundamental ao nosso dispor para dar resposta satisfatória aos desafios é a razão renovada, expurgada de algumas limitações pretéritas; uma razão não dogmática, crítico-dialéctica em que esse procedimento crítico aparece vinculado à demanda de fundamento. A prioridade não é nova, mas é instante: atenuar a dependência, promovendo a saída do homem da sua menoridade – isso que Kant disse ser a Aufklärung ( ).
Toda a possibilidade de autêntico progresso repousa aí.
Iniciámos este escrito na companhia do filósofo Ludwig Feuerbach; pois encerremo-lo também na boa companhia intelectual desse mesmo Ludwig que E.Bloch considerava ser a personificação da Aufklärung («Feuerbach ist Aufklärung»)( ):
«Transformar [os homens] [...] de crentes em pensadores, de suplicantes em operários, de candidatos ao além em estudantes do aquém [...], [transformar] em homens completos» ( ).

João Maria de Freitas Branco
Setembro de 2002