Começo por inserir aqui um curto texto redigido e publicado
nas redes sociais horas antes da votação do OE na Assembleia da República, em
Outubro de 2021, votação que conduziu à queda do Governo do PS. Faço-o com o
único propósito de recordar qual foi a posição que assumi nessa altura, de modo
a enquadrar o escrito mais longo que agora torno público pela primeira vez.
Situação política – reflexão antevendo uma crise pós-votação
do OE
Falta pouco tempo para ser votado o Orçamento do Estado.
Tudo indica que não vai ser aprovado. Lamento que as esquerdas nacionais não
consigam entender-se, arquitectando um acordo, mesmo que mínimo. Num momento
histórico em que a Democracia está particularmente fragilizada e ameaçada. As
direitas (do centro direita à extrema direita) rejubilam. Facto significativo.
Será que o chumbo do OE torna inevitável a queda do Governo? Não há outras
alternativas? O Presidente da República tem que dissolver a Assembleia da
República? Não pode ser dado um prazo para o Governo poder apresentar um novo
OE? Não há espaço para mais negociações? A antecipação das eleições é
obrigatória? Na óptica das esquerdas que se antevê de positivo? Que alternativas?
[Facebook, Outubro de 2021]
Situação política – uma reflexão pré-eleitoral
O desmoronamento da geringonça não pôde deixar de me
entristecer. É sentimento que brota de modo espontâneo em espaço mental ideologicamente
estruturado a partir dos princípios/valores do que se convencionou designar
Esquerda. A geringonça, com todas as suas limitações e contradições internas,
revelou-se eficaz na concretização de um gesto político urgente: o de reverter
medidas indecentes – as do “austeritarismo” neoliberal, penalizadoras dos cidadãos
menos favorecidos, bem como dos humilhados e ofendidos (totalizando a grande
maioria da população).
Ao ser criada, em 2015, a geringonça injectou decência no
enfermo corpo da política nacional. E na conjuntura actual, com o presente
quadro político-partidário e numa óptica de esquerda, não vejo solução
governativa satisfatória que dispense um certo nível de entendimento entre os
protagonistas da geringonça. Considerando o voto popular expresso em eleições
honestas (que confere ao PS uma representação parlamentar significativamente
superior à soma das representações dos partidos à sua esquerda), como se pode
concretizar uma governação de esquerda sem acordos com o PS? Ou, como alguns
parecem desejar, contra o PS? Ou seja, podemos reformular a pergunta: como se
pode, neste nosso presente, levar a cabo uma política de esquerda sem uma
qualquer forma de unidade entre PS/PCP/BE?
Em política, quando se toma uma decisão e se faz uma escolha
é porque existe a convicção de que essa preferência conduz a uma melhoria da
situação, a um objectivo que corresponde aos interesses do decisor. Assim
sendo, o PCP e o BE, com o seu voto de reprovação do OE, e perante a anunciada
(e muito discutível) inclinação do Presidente da República, sabiam estar a
provocar a dissolução da Assembleia da República e a consequente queda do
Governo e convocação de eleições legislativas antecipadas. Assim sendo, é
porque consideram haver benefícios neste caminho. Quais são? O que vai facilitar
uma solução governativa de esquerda? O resultado eleitoral, com substancial
reforço da representação parlamentar dos dois partidos, BE e PCP? Uma perda de
influência do PS gerando nova correlação de forças na frente de esquerda,
proporcionando uma nova geringonça em que o BE e o PCP passem a ter maior poder
negocial? A hipótese real de alterar as condições de negociação do OE abrindo
caminho à feitura de um orçamento mais à esquerda (maiores aumentos salariais,
aumento do valor das pensões, redução do preço da electricidade e dos
combustíveis, reforço do financiamento da educação, do SNS, da Cultura, etc.)?
A hipótese real de garantir a urgente revisão da legislação do trabalho? Será
que antevêem, de forma fundamentada, uma expressiva ou estrondosa derrota
eleitoral das direitas? A exclusão democrática da extrema-direita,
retirando-lhe o assento no hemiciclo? Quais são, em resumo, na opinião do BE e
do PCP as consequências positivas do chumbo do OE? Não nos foi dito. Continuo à
espera de uma enumeração clara dos objectivos que se considera irem ser
alcançados pela esquerda através do acto eleitoral do próximo Domingo, causado
pelo chumbo do OE.
No entanto, há já uma primeira consequência da votação do
Orçamento do Estado no passado dia 27 de Outubro. É bem clara e constitui mais
um motivo de júbilo para as direitas (em especial para a extrema-direita); e
renovado motivo de tristeza pessoal. Basta libertar o nosso olhar na paisagem
opinativa do Facebook ou do Twitter. Aí está ela, bem evidente na sua
factualidade: os membros das várias famílias de esquerda (com ou sem filiação
partidária) estão engalfinhados desde o final do mês de Outubro do ano passado.
Mais ainda: os próprios membros da mesma família política -- seja ela a “comunista”,
a “bloquista”, a “socialista” ou a dos “independentes de esquerda” (socorro-me
das aspas para contornar certas ambiguidades denominativas) -- estão desavindos,
abespinhados uns contra os outros. No estado de crescente irritabilidade em que
quase todos estão, olvidam os adversários, gastando munições argumentativas contra
quem com eles coabita no espaço global das esquerdas. Nem se coíbem de lançar
mão de vitupérios, insultos, acusações pouco educadas. No Facebook, uma
conhecida antifascista disse que ia votar no PS e isso logo originou, segundo
disse, que várias pessoas da área da CDU lhe tivessem virado as costas, o que
em linguagem hodierna se traduz no gesto virtual de se “desamigar”. Os que, à
esquerda, revelam não irem votar no PS, mas sim no PCP ou no BE, vêem-se mal tratados
por sujeitos do Partido Socialista. O voto é livre, desde que votem no meu
partido. Não é novo, mas continua a ser lamentável.
O próximo governo vai ter a importantíssima incumbência de
gerir a chamada “bazuca” (mais de 17 mil milhões de Euros) e não é inverosímil
que à elite dominante de Bruxelas não agrade que forças anticapitalistas (como
o PCP e o BE) tenham voz activa na distribuição de tão suculento bolo. De um
ponto de vista de esquerda, só haverá vitória eleitoral no próximo Domingo se o
resultado da votação nacional garantir duas coisas: 1) a continuidade de uma
maioria de esquerda no Parlamento; 2) o reforço da esquerda à esquerda do PS (a
esquerda anticapitalista). Nessa medida, o voto no PCP (CDU), no BE, no Livre é,
no mínimo, tão útil como o voto no PS, se este mantiver a opção de entendimento
à esquerda, não ceder às eventuais pressões externas e não tiver uma deriva
direitista, semelhante a outras de que guardamos triste memória.
Votem bem!
João Maria de Freitas Branco
28 de Janeiro de 2022