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quinta-feira, 26 de junho de 2014

ABSTENÇÃO OU O RETORNO DO MAL


ABSTENÇÃO OU O RETORNO DO MAL

Em busca de um significado profundo como resposta crítica a um colunista

 

O acto eleitoral europeu do passado dia 25 de Maio foi o último grande acontecimento de uma alarmante sequência de factos demonstrativos dos agigantados perigos que sobre nós pairam. Só a título de exemplo, recordo que um partido alemão (note-se bem) que em campanha eleitoral apregoou que “a Europa é um continente branco” e colou cartazes onde se lê “dá-lhes gás” passou a estar representado no Parlamento Europeu, tal como o Jobbik húngaro, o Aurora Dourada, da Grécia, ou a triunfante Frente Nacional francesa, unidos em torno dos mesmos ideais.

Quem tenha o salutar hábito de aprender com a história, libertando-se de limitações pretéritas, mais atormentado estará, pois sabe, como Albert Camus – esse paradigma do pensamento autónomo – «que o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca». Nietzscheanamente inspirado, o filósofo contemporâneo Rob Riemen fala do «eterno retorno do fascismo».

Afigura-se-me já assaz exuberante o processo de reanimação dos agentes daquilo a que Hannah Arendt começou por chamar mal radical, e a que depois, em esforçado gesto autocrítico (gesto, por sinal, pouco atendido pelos seus leitores), preferiu designar como mal extremo, esse, sim, compatível com a banalidade por ela conceptualizada a partir da figura do oficial nazi Adolf Eichmann.

Mas vejo agora que me iludo na suposição dessa exuberância. A visibilidade que julgava existir parece afinal não ser assim tão visível, tão efectiva. Isso exponencia o meu estado de séria apreensão. Uma evidência, paradoxalmente, pode não ser vista. Por cá, p.e., não é verdade que, depois de o governo PSD/CDS ter posto em marcha uma política descaradamente imoral -- de traição de promessas, de mentira, de pilhagem, de agiotagem, de injustiça social, de desavergonhada submissão aos interesses do capital financeiro e da especulação –, não é verdade que cerca de 28% dos votantes apoiaram a Aliança Portugal? Não pretendo rotular os nossos governantes de nazis, mas a política austoritária transporta em si o mal, abrindo caminho à sua radicalização, podendo extremá-lo.

Mas há coisa ainda mais grave, e isso me motiva a escrever. Porque os 28% talvez tenham explicação atenuadora no défice de cultura política, nos efeitos da sempre presente demagogia ou até, talvez, no puro masoquismo; havendo, além disso, o peso dos sofisticadíssimos mecanismos de construção das ideias comuns (do pensamento dominante), complexo esforço de arquitectura ideológica.

Qual é essa gravidade maior? Colho exemplo dela nas páginas de um jornal de referência: o PÚBLICO.

Um respeitável colunista desse jornal, João Miguel Tavares (JMT), pessoa da nova geração que regularmente exibe inteligência, cultura e bom senso, veio declarar que a monumental abstenção eleitoral registada nada tem de preocupante. E explica: «Não votar […] significa invariavelmente que vivemos numa sociedade pacificada, em que nada de realmente fundamental se joga em cada eleição. Não ir votar é um gesto típico de uma democracia consolidada, em que nos podemos dar ao luxo de deixar nas mãos dos outros a decisão do voto»(PÚBLICO, edição de 27/5/14).

Confesso que estas afirmações me põem os cabelos em pé. Democracia consolidada?! Esta democracia esvaziada de Povo? Onde está a solidez quando já nem sequer há democracia plena? Por mera coincidência, na mesma edição do PÚBLICO saiu artigo de minha lavra em que enuncio o problema do quórum das eleições. Deixo por isso de lado essa questão. O que hoje aqui me traz é, porventura, um problema de ainda maior grandeza e centralidade: o da dificuldade de assimilação/consciencialização do retorno do mal, tratado por Hannah Arendt, mesmo quando nos situamos na esfera exclusiva das elites – espaço que se supõe abonado de cultura, de conhecimento político, informação, inteligência. A gravidade da questão é imensa, convocando a mais cuidada atenção.

Diante do mesmo fenómeno (a abstenção) vê JMT o que eu não vejo e não vê o que eu vejo. O que a ele tranquiliza, a mim apoquenta.

Terá JMT lido o que o lúcido Thomas Mann escreveu na antevéspera do culminar de um mal extremo nunca antes (nem depois) visto na história da humanidade? Não existirá alguma alarmante semelhança entre o que se passou nesses anos 30 do século dos extremos e o insinuante processo de reestruturação da barbárie a que agora quotidianamente vamos assistindo? A minha já imensa preocupação expande-se mais ainda perante o facto de uma mente temperada de generosa inteligência e politicamente cultivada poder não conseguir ver o essencial, inibindo assim a acção preventiva contra o retorno da peste. Não ver, no caso vertente, que por traz da abstenção está o triunfo da mentalidade kitsch, o primado da superficialidade, a cultivação sistemática da superficialidade, da alegria pateta, a tão em voga idiotice do “temos que ser positivos”, o alheamento da seriedade do viver, o permanente resvalar para o hábito de não pensar (a lacuna de Eichmann), de não se deter nas coisas essenciais, profundas, o apego ao soft e ao efémero, o vício da embriaguez, no grave sentido atribuído por Thomas Mann ao termo, espécie de adição psiquiátrica individual e colectiva que concorre para «libertar o Eu do pensamento, da verdade da moral e da razão». É este o despautério em que estamos e que dia a dia se agrava, semeando horror.

A abstenção não é um mero facto político conjuntural. O seu significado fundamental vai muito para além da imediatez política. Ela é um dos sintomas deste decaimento que gera uma sociedade deficiente. E o que é uma sociedade deficiente? É uma sociedade apoucada de civilização! A compreensão profunda desta minha noção radica nas páginas mais esquecidas da obra do grande Charles Darwin, como aqui e em outros lados tenho insistido em revelar. Portanto, a abstenção não é coisa simples; não pode ser tratada como mero fait-divers. A meu ver, e se muito não erro, o primeiro defeito do comentário que aqui critico reside em não avistar esta complexidade mais profunda que acabo de sucintamente referir, constrangido pelos limites de espaço.

Estarei a ser demasiado alarmista? Estarei enleado em medos ilusórios? Padecerei de alucinações políticas, maleita aliás historicamente nada infrequente? Preferia poder admitir ser meu o defeito e estar a verdade do lado da “tranquilidade” advogada no escrito que critico; mas, despido de vaidade ou de qualquer orgulho presunçoso, receio bem que a verdade esteja mais do lado de cá: o dos meus medos alegadamente ilusórios. Uma coisa tenho como certa, e nisso espero que JMT esteja concordante: é que, como escreveu Edmund Burke nos recuados mas iluminados anos Setecentos, «tudo o que é necessário para o triunfo do mal é que os homens de bem nada façam».

João Maria de Freitas-Branco

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