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quinta-feira, 14 de março de 2013

Eleição papal: um convite à meditação


Eleição papal: um convite à meditação

Sumo Pontífice ou sumo decaimento da honestidade intelectual e da elevação civilizatória?

Fará sentido que um ateu se preocupe com o que está a acontecer na Igreja Católica(IC) e com os destinos do Vaticano? Não deverá permanecer indiferente a tais aconteceres, incluindo a escolha papal? Deverá regozijar-se com o espectáculo de definhamento da Igreja? A minha resposta a estas duas últimas interrogativas é Não. Do mesmo modo que a não pertença a uma Nação não legitima a atitude de indiferença face a uma ditadura que a flagele, servida por deficientes morais no governo; isto por mais distante que seja essa Nação, como no caso da Coreia do Norte. Qualquer pessoa de bem deseja que os países, as instituições, as elites do poder sejam mostra de elevação, de crescimento civilizatório, de salubridade ético-política, de banimento daquilo a que Kant chamou menoridade. 

A sucessão de acontecimentos no Vaticano é de inequívoca relevância para qualquer cidadão praticante, ou seja, para todo o sujeito intelectualmente desperto, inteligentemente motivado a permanecer em estado de vigília cívica. Os acontecimentos fornecem generosa colecção de conteúdos de reflexão/problematização, favorecendo a construção fundamentada de respostas esclarecidas e esclarecedoras.

Uma primeira conclusiva que parece entrar por fim na esfera das evidências pode enunciar-se assim: a religião não melhora as pessoas, não aperfeiçoa o ser humano. A Cúria, composta, em teoria, pelos homens de mais densa fé religiosa, é afinal uma montra de horrores – vícios, abusos, traições, assédios morais, ou, para tudo dizer com católica terminologia, é uma montra barroca repleta de pecados – de grandes pecados (pedofilia, fraude, negócio de armas).

Outra coisa que desejo ver entrar no domínio da evidência, apagando persistente engano, é a conclusão de que nem todas as opiniões merecem consideração. Muito pelo contrário: opiniões há, e não poucas, que não merecem o menor respeito, nem no plano intelectual nem no plano moral.

O caso em apreço é exuberantemente exemplificativo. Eis o ponto essencial a que pretendo chegar.

Em cada momento histórico, os seres esclarecidos estão munidos de um conjunto de ferramentas imateriais; têm, digamos assim, um kit básico da mente esclarecida. Ora acontece que hoje o pensamento e a acção da IC colidem frontalmente com esse equipamento. A contradição ganhou foros de aberração. E mesmo para quem, como eu, está ciente da infinitude da estupidez humana não deixa de ser incomodativo observar o gigantismo de certas falácias, incongruências, cegueiras. Vejamos: os cardeais são vistos na azáfama do manobrismo político, do jogo de influências, da luta dos lóbis (mais ou menos gays). Mas do mesmo passo todos eles, sem excepção, declaram que “é o Espírito Santo que vai decidir quem é o novo Papa”. Pode isto merecer consideração? Então os Srs. Cardeais insultam o Senhor de forma tão descarada? Se é verdadeira a divina intervenção do Espírito Santo na escolha papal, porquê então a azáfama? Porquê tanta preocupação terrena, tanto jogo político de bastidores, tanto afã no arquitectar de influências, tanto manobrismo de fazer inveja a qualquer partido político? Como podem os cardeais ser tão descrentes da influência divina? Como podem estar tão despidos de fé? Não ficam os católicos horrorizados com essa nudez herética? Ao cabo de contas, verifica-se que os máximos responsáveis da IC, entre os quais está o próximo sumo Pontífice, acreditam tanto no influir do divino Espírito Santo quanto eu, céptico ateu crítico-racionalista. Mas há mais. Imagine-se que a partir de hoje se estabelecia que Portugal passava a ser um Estado religioso, como os há com fartura no mundo islâmico. Imagine-se que as mulheres lusas ficavam proibidas de votar e de exercer o cargo de Presidente da República, primeiro-ministro, ministro, etc. Que diriam as nossas católicas? Como reagiriam? Será que se resignavam, advogando a docilidade de rebanho? Ficariam passivamente indiferentes a essa escabrosa injustiça, quando a nobre ideia de Igualdade, pilar civilizacional, triunfou há mais de duzentos anos? Não posso nem quero acreditar que assim fosse. Porém, assim é quando em vez de Portugal se fala do Vaticano.

É admissível que uma religião possua um Estado? Como aceitar com tranquilidade, sem sobressalto ético-político-cultural, a existência no coração da Europa de um Estado religioso, decorridos que estão mais de duas centúrias desde o triunfo da Revolução Americana e da Francesa que nos legaram a noção de Estado de direito democrático, precioso fruto do esforço de alguns dos melhores espíritos do Iluminismo? Vêm então evocar “a figura de Deus”, o deus cristão – que, convirá recordar, é um dos cerca de 2 mil deuses demiúrgicos recenseados, tendo todos em comum o facto reconhecido de nunca ter sido provada a presença de nenhum deles – colocando a sua existência como Verdade absoluta, coisa que, se transposta para fora do espaço puramente religioso e ai aceitada, uma só vez que seja, escancara de imediato a porta ao irracionalismo caótico. Tudo passa a ser intelectualmente permitido. Se não é exigida verificação racional, se o que nem sequer é asserção objectiva (por ausência de provas) for aceite como verdade absoluta universal, então eu quando for dar uma aula, fazer uma conferência ou botar palavra em letra de forma posso dispensar o esforço do estudo sério e abraçar o atraente e vantajoso facilitismo da pura imaginação à solta. Poderei então apregoar descobertas fantásticas, evocando conversas com uma fada empoleirada no pinheiro do meu jardim ou com o extraterrestre que veio tomar o pequeno-almoço a minha casa, estacionando o disco voador à minha porta, ou até uma cavalgada com as renas do Pai Natal.

Como é que esta avalanche múltipla de desonestidade intelectual desavergonhada não gera vagas de indignação do tamanho das do tão em voga canhão da nossa costa oceânica, vagas apropriadamente nazarenas? Como pode esta imensa colecção de despautérios não gerar movimentos de católicos indignados? Como se pode tolerar tanto arcaísmo intelectual, tanto anacronismo político-social, tantos maus tratos infligidos aos valores civilizacionais, tanta presença de deficientes morais e intelectuais no poder?

Desejoso de ver a IC expurgada de pecados, deposito aqui os meus mais sinceros votos de que o novo Papa e a Cúria renovada consigam edificar uma religiosidade genuína, despida de bullshits, para usar o termo que o filósofo americano Harry Frankfurt trouxe para o léxico filosófico. Uma religiosidade favorecedora da elevação, da honestidade intelectual e da matura acção civilizatória. É este o franco e são desejo deste confesso ateu religioso.

João Maria de Freitas Branco (filósofo)

Artigo de opinião, jornal “Público”, edição de 13 de Março de 2013, p.47.

6 comentários:

  1. Excelente reflexão Professor. Levanta uma série de questões que, não só ninguém responde, como evita sequer falar delas. É um rol de incongruências que desmascaram a farsa em que muitos estão,infelizmente, mergulhados.

    Parabéns pelo texto, e aceite um grande abraço de saudade deste seu aluno.

    Rui Barbosa

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  2. Muito Bom! Superlativamente escrito! Já tinha lido no Público. Ainda há coisas boas a acontecer, como este artigo.

    Muitos Parabéns!

    Os melhores cumprimentos,

    Luísa Almeida ,Lisboa

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    Respostas
    1. Muito obrigado. É reconfortante saber que conto com leitoras e leitores inteligentes. Cumprimentos.

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  3. António Gomes Marques16 de março de 2013 às 16:07

    Caro João Maria, querido amigo

    Quando fazes a primeira interrogação e, a seguir a todas as interrogações com que começas o artigo, respondes com um Não, não posso deixar de te dizer que eu, ateu como tu (é mais uma em que sou teu companheiro!), diria Sim. De facto, preocupo-me e muito com esta organização política, de poder incomensurável e que lhe tem permitido continuar sem condenação pelos crimes cometidos -cinco séculos de espionagem e crimes do Vaticano, de que nos faz a história o Eric Fratini (A Santa Aliança), acção do Banco do Vaticano (que acção teve esta instituição na renúncia do anterior Papa, o mais insignificante dos exemplos da acção do banco?), a lavagem a que se está a assistir da convivência do actual Papa com a ditadura dos Generais argentinos-, por tudo isto e muito mais que não cabe num simples comentário, não posso deixar de reafirmar que faz todo o sentido que nós nos preocupemos.
    Recebe o abraço amigo do
    António

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  4. Caro António,
    Obrigado pelo comentário, sempre pertinente. Mas olha que o meu "Não" é o teu "Sim". É o não devemos permanecer indiferentes, alheados desses aconteceres. Abraço grande.

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