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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Dúvidas em torno da renúncia de um Papa



A população católica – cada vez mais reduzida nos países com elevados índices de escolaridade – foi surpreendida pela resignação do Papa Bento XVI. Pondo de parte as amargas razões de saúde que estiveram na base da decisão papal, parece-me a mim, cidadão laico, tratar-se, em princípio, de uma boa notícia, por representar a saída de alguém que, no exercício de um cargo de poder, se opôs ao progresso civilizacional, bem como à modernização da Igreja. A apreciável erudição do teólogo Ratzinger sempre se traduziu em pensamento e acção de acentuado conservadorismo reaccionário. Algo que adquire particular gravidade quando, aproveitando-se da crença de muitos seres humanos, quarta a mais intima e privada liberdade das pessoas, estabelecendo, por exemplo, quais são os comportamentos sexuais virtuosos e os pecaminosos.

Para uma mente critico-racionalista e céptica, como a minha, causa espanto a desconsideração pela alegada omnisciência divina exibida pelos crentes católicos. Admitindo estes como verdade inquestionável que no conclave os cardeais eleitores escolhem o Papa em função de uma directa inspiração do espírito santo, como não estranhar o lapso de previsão? Como pôde escapar a um omnisciente a antevisão de que iriam faltar ao eleito Ratzinger as energias físicas e psíquicas requeridas para o cabal cumprimento da missão papal de representação terrena do próprio divino espírito inspirador? Como se justifica o divino lapso? E tendo-se tornado Papa «por vontade de Deus»,tal como afirmou o próprio sumo Pontífice logo após a sua eleição em Abril de 2005, como ousa agora o ainda Bispo de Roma contrariar essa suma vontade omnipotente? Como pode o humilde servidor contrariar assim a vontade do seu divino Senhor? Falou com o seu Deus antes de resignar, obtendo permissão para o gesto, responderão alguns. Muito bem. Mas então, se resignou também «por vontade de Deus», ou com o seu sapientíssimo agrément, como se justifica que os católicos que tenho escutado nas últimas horas falem invariavelmente de coragem, afirmando, como D, José Policarpo, tratar-se de «um acto extraordinariamente corajoso»? Que coragem, se a decisão foi tomada em sintonia com a vontade divina? Desculpem, mas tenho por hábito reservar o nobre substantivo para qualificar outro tipo de gestos, em que há clara exibição de grande firmeza de ânimo perante enormes perigos, riscos, sofrimentos, etc. Tendo a aquiescência, a concordância, a fiança de um ser omnisciente e, para mais, omnipotente, não vejo que coragem é requerida para avançar… Ou será que me está curta a inteligência?

Recorde-se que, na Europa, no coração da civilização moderna, um Estado como o Vaticano, Estado eclesiástico, não democrático, só pode “justificar-se” com base no suposto da crença religiosa num Deus pessoal demiúrgico, omnipotente, omnisciente, infinitamente bom e misericordioso.

Continuando a colocar-me na posição do crente católico, também não chego a entender as intervenções públicas de vários prelados da Igreja ao longo das últimas horas, discutindo quem deve ser o sucessor, se deve ser “de esquerda” ou “de direita” -- terminologia utilizada por um padre num telejornal. Mas se a escolha vai ser ditada pela vontade de Deus, porquê então tanta preocupação política? Por que temem uns que o sucessor de Bento XVI seja outro conservador e outros que possa ser um progressista que ponha fim a medievalismos como o da subalternização da mulher, o celibato, a condenação da homossexualidade, a proibição do uso de contraceptivos, a estigmatização do divórcio, o impedir da legalização da interrupção voluntária da gravidez ou da prática da eutanásia? Caramba! Não haverá em tudo isto despudorado excesso de contradição, de incoerência, de confusão e, pasme-se, de falta desbragada de Fé católica?

Não será o espectáculo a que temos assistido nos vários órgãos de comunicação desde a hora do anúncio público da resignação papal algo que, dado o contexto religioso, se pode baptizar de “salada de tretas”?

3 comentários:

  1. João Maria, não posso deixar de manifestar a minha concordância com o teu ponto de vista. Afinal, isto é mesmo uma treta! Que se vá este papa e os Povos do mundo não precisam de outro. Papistas de mais já nós temos e de sobra!

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  2. Há quem tenha outra visão... concordando com a sua, não posso deixar de dar atenção a outras...

    "Ratzinger é um pastor derrotado e coerente que, farto de lutar, retira-se para a clausura antes de ser devorado pelos abutres [da cúria de João Paulo II,] ávidos de riqueza, poder e imunidade." - Miguel Mora, in El País


    "As vestes e o rosto tão sujos da tua Igreja Igreja assustam-nos, mas somos nós mesmos que as sujamos" - Ratzinger, em 2005, antes de ser eleito (talvez dirigindo-se a João Paulo II)

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    1. Obrigado pelo comentário. A minha visão em nada contradiz a de Miguel Mora -- pelo menos no conteúdo do parágrafo citado. Acredito que Ratzinger parta para escapar aos abutres. Coisa que João Paulo I parece não ter logrado realizar. Mas se Ratzinger tentou combater a corrupção interna, não creio que tenha tido o mesmo empenho no combate ao reaccionarismo ideológico no seio da sua Igreja.

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