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quinta-feira, 14 de março de 2019

Um exemplo de dedicação à Cultura


Perdi mais um Amigo: o actor e encenador Armando Caldas. Faleceu hoje, dia 13 de Março. Recebi a triste notícia já ao fim do dia. Em sua memória, tomo a iniciativa de colocar aqui um texto que sobre ele escrevi em 2012 e que foi publicado no livro "Teatro, como quem respira", editado em 2013.

 

TEXTO

 
Armando Caldas

Um exemplo de dedicação à Cultura

 

A mais recuada memória que guardo do Armando data de um tempo salazarento em que na nossa Pátria – achacada de neotomismo ajesuitado, de fascismo provinciano, de tacanhez preconceituosa, de embriaguezes românticas – se promoviam analfabetismos de vária feição, incluindo o artístico-cultural, com o consciente propósito ideológico de injectar dependências no cidadão comum que se desejava submisso, resignado, passivo em face do poderio e seus inconfessáveis interesses. Precisando a datação dessa primeira memoração, situo-a no final da década se sessenta ou no início dos anos setenta do já passado século “dos extremos”, como lhe chamou Hobsbawm, quando, no despontar da chamada Primavera marcelista, me chegou a notícia da criação, em Algés, do “1ºActo - Clube de Teatro”, essa influente iniciativa cultural, mas também ostensiva e valentemente política, que reuniu alguma da nossa melhor gente, parte do nosso escol, contando com a participação de alguns dos mais lúcidos espíritos que povoavam o Reino cadaveroso, incluindo um amigo comum que por esse então nem eu nem o Armando (nem mesmo ele próprio) sonhávamos ir tornar-se, décadas mais tarde, o primeiro Nobel da possante literatura lusíada, o nosso saudoso José Saramago.
A fundação do 1ºActo teve, nessa época, e num plano mais pessoal, directa influência na minha vida, por ter sido factor no moldar da minha acção cívica, incentivando-me a ter o atrevido gesto de, em 1972/73, e imbuído do mesmo espírito de resistência, criar um pequeno grupo de teatro amador, também ele sedeado no conselho de Oeiras: o Grupo de Teatro Intervenção, integrado na estrutura institucional do Grupo Académico – associação cultural de jovens estudantes fundada em 1970 e com forte implantação no meio estudantil dos concelhos de Oeiras, Cascais e Cintra (nessa altura servidos por uma única macro escola, o Liceu Nacional de Oeiras, hoje Escola Secundária Sebastião e Silva). É isto revelador de que só pelo facto de existir, o 1º Acto já era significativo factor de alteração da ambiência cultural, abrindo espaço para iniciativas congéneres. Concorreu assim, de forma indirecta, para que pudessem germinar outros projectos interventivos. Legado geralmente não considerado mas efectivo e, por isso mesmo, também merecedor de reconhecimento.
Trago à colação estes aconteceres por estarem eles intimamente ligados à origem da minha relação pessoal com o Armando Caldas. Ainda agora, sempre que falo deste Amigo, ou nele penso, algo nas profundezas subconscientes da minha psique amarra a pessoa à imagem mental daquela tão louvável obra cultural. Reflectindo sobre a perenidade dessa instintiva associação mental, concluo ser ela bem natural e até lógica. Como diria o poeta, «há sempre alguém que diz Não», e o nosso Armando Caldas tem sido, ao longo da vida, alguém que, inequívoca e incessantemente tem sabido dizer Não à anticultura, à indigência artística, à mentalidade reaccionária, bem como às variegadas formas de injustiça social que invariavelmente lhe estão associadas. Foi nas trincheiras desse combate que nos encontrámos, animados por ideais comuns, tendo-se construído aí uma amizade que perdura.
A circunstância concreta em que conheci pessoalmente o Armando, iniciando um trabalho de mútua colaboração, ocorreu em momento histórico maior: o do derrube da Ditadura e do despoletar do PREC. Deliciosos tempos de criatividade colectiva de uma Nação ávida de mudança. Ambos sabíamos que o combate que tínhamos abraçado, o da transformação da sociedade humana, associado à semeadura de Cultura e Arte, era labor infindável – tal como o semear agrícola, essa infinita acção cíclica do cultivo da terra. Com o “25 de Abril” o corpo societal metamorfoseara-se profundamente, as condições passaram a ser outras, mas como Ingmar Bergman nos disse em estética linguagem cinematográfica o ovo da serpente é perene e o combate tem que ser continuado. Em certa medida, a sociedade democratizada pelos ventos de Abril até convocava renovado afã, impunha a abertura de novas trincheiras, gerando, nessa medida, maior responsabilidade cívica. É nessa singular conjuntura histórica que, na minha qualidade de jovem presidente de uma associação cultural, o já citado Grupo Académico (em que tive a minha primeira experiência dirigente), tomei a iniciativa de organizar, no salão/teatro do Instituto Pr.António de Oliveira (em Caxias), uma sessão de Canto Livre que reuniu numerosíssimo público e que contou com a participação de vários artistas do chamado “canto de intervenção” antes amordaçado pela censura. Esse tipo de realização, tão típico dessa época revolucionária, exigia a presença de competente apresentador, elemento condicionante de toda a dinâmica do espectáculo e, consequentemente, do seu desejável sucesso. Foi para mim fácil decidir endereçar ao Armando Caldas o convite para assumir essa importante função. Quem melhor do que ele para o fazer? E foi assim que verdadeiramente nos conhecemos, em momento de activo combate pela liberdade, pelo livre cultivo do gosto artístico e, em geral, em prole da transformação progressista da realidade social.
Há, na acção cultural de Armando Caldas, algo a que atribuo especial importância e que, por essa razão, não posso nem quero deixar de aqui enfatizar. Refiro-me à coerência de uma atitude pautada pelo espírito de independência e pela fidelidade a uma Weltanschauung; atitude sustentadora de uma acção cívico-cultural em que nunca houve cedências à avassaladora moda da cultura light, ou àquilo a que também tenho chamado a cultura zapping, com o seu horror ao aprofundamento, ao racional, ao rigor, à seriedade intelectual. Tendência corrosiva da autêntica Cultura. Elemento, a meu ver, impeditivo da edificação de uma verdadeira tradição de Alta Cultura, suporte indispensável do progresso civilizacional. Neste tempo presente em que se tem visto triunfar a mentalidade do light, em que no viver societal o apelo ao superficial, ao ligeiro, ao soft, ao comercial, ao popularucho se tornou constante e até mesmo exuberante, o Intervalo Grupo de Teatro, sob a lúcida direcção do Armando Caldas, tem sido vivo exemplo de não-abdicação intelectual, de recusa de cedência ideológica a uma medíocre corrente dominante, mostrando, do mesmo passo, como o sucesso popular é natural efeito da boa vulgarização das grandes criações artísticas. A dignidade de produções, a que tive o prazer de assistir, como as de A Gaivota de Tchekhov, de D. Quixote, de O Tinteiro de Carlos Muñiz, bem como a regular presença em cartaz de peças com a assinatura dos maiores dramaturgos (Shakespeare, Molière, Beaumarchais, Tchekhov) são a demonstração clara da possibilidade de coabitação do sucesso popular com a erudição e de como se deve criar o bom gosto artístico. Um exemplo que adquire ainda maior relevância em momento histórico particularmente grave, como é este nosso agora, em que valores civilizacionais basilares se vêm ameaçados, incluindo o da elevação cultural, e em que ressurge uma agressiva política governativa anticultura. Bastaria o perfil dessa atitude/acção que agora procurei pôr em evidência para atestar da justeza da homenagem consubstanciada neste volume. Parabéns Armando, e obrigado.


João Maria de Freitas Branco

Caxias, 4 de Novembro de 2012

 

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