Pesquisar neste blogue

domingo, 27 de janeiro de 2019

O CASO DO DIVÓRCIO


Partilho aqui no blog um lúcido texto do Frederico Lourenço colocado hoje no Facebook. Trata-se de uma muito esclarecedora reflexão pessoal. Bem demonstrativa da insustentabilidade do discurso oficial da Igreja, ou seja, do dogmatismo católico institucionalizado. É esta, também, uma forma de agradecer ao amigo Frederico o seu esforço de dilucidação.

PALAVRAS «DITAS» POR JESUS: O CASO DO DIVÓRCIO (Evangelho de Marcos)

Muitas pessoas me escreveram a propósito do texto que publiquei sobre a questão de quem comunga na missa «por sua conta e risco», ou seja, sem estar, do ponto de vista da Igreja Católica, em condições legítimas para comungar. Como o caso de que falei envolvia um divorciado muito especial para mim (o meu pai) e a minha própria situação de homossexual casado com um homem, o teor de muitas mensagens andou à volta da ideia de que «Jesus nunca disse que a confissão era obrigatória» ou, até, «Jesus nunca disse que os divorciados não podiam comungar».

Esta vontade que muitas pessoas têm de sustentar a sua própria atitude em relação ao catolicismo (ou outra forma de cristianismo) com base naquilo que Jesus «disse» é algo com que me solidarizo, porque pessoalmente o que me chama e interessa no cristianismo não é o artifício teológico-dogmático da ortodoxia eclesiástica, mas sim algo que se resume muito simplesmente a uma só palavra: Jesus. Também sou alguém que, como afirmou um católico que me escreveu há dias, dá mais valor ao que «Jesus disse» do que àquilo que «a igreja diz».

Agora: como saber o que Jesus disse? Um problema complexo que confronta quem prefere seguir Jesus a seguir a igreja é, de facto, conseguir chegar àquilo que Jesus terá realmente dito. Trata-se de uma problemática fascinante no âmbito do estudo histórico-analítico do Novo Testamento – e digo «histórico-analítico» pela razão simples de que, do ponto de vista da Fé, todas as palavras colocadas pelos evangelistas na boca de Jesus são, sem mais problemas, palavras de Jesus.

No entanto, do ponto de vista histórico-analítico, a situação não é assim tão simples. Para dar uma ideia daquilo em que consiste esta problemática, vou partilhar convosco algumas reflexões (esta é a primeira) sobre as palavras ditas por Jesus acerca do divórcio nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. E refiro estes três evangelhos porque, no Evangelho de João, Jesus não profere uma única palavra acerca do divórcio. É um tema ausente desse mais espiritual dos quatro evangelhos. Se na Bíblia existisse apenas o Evangelho de João, não havia motivo para os cristãos não se divorciarem. (Bom, haveria a considerar o que escreve Paulo em 1 Coríntios 7:12-16 - mas Paulo é necessariamente outra conversa...)

Nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas, Jesus fala, de facto, no divórcio – ou é provocado, por fariseus que o querem apanhar em falso, a falar sobre esse tema. As palavras que Jesus profere a propósito do divórcio são, no entanto, diferentes nos três evangelhos em que ele fala de divórcio. Além de diferentes, levantam o problema de, em parte, serem palavras que o Jesus real, o homem de Nazaré, não pode ter dito. São palavras que lhe foram postas na boca por cristãos que precisavam que ele as tivesse dito. Pois a probabilidade histórica de que ele as tivesse dito é incerta.

Comecemos pelo evangelho tido pelo estudo universitário do Novo Testamento como o mais antigo dos quatro: o Evangelho de Marcos. Estamos no capítulo 10:2-12. O episódio divide-se em dois momentos: primeiro, uns fariseus perguntam a Jesus, «pondo-o à prova», se é lícito ao homem divorciar-se da mulher. Jesus responde com uma pergunta: «o que vos preceituou Moisés?» E eles dão a resposta de que Moisés preceituou que o marido podia redigir um documento de repúdio e divorciar-se da mulher.

Portanto, aquilo em que consiste a armadilha dos fariseus é colocarem Jesus numa situação em que ele vai ser obrigado a ou tomar partido a favor de um preceito legitimado pelo judaísmo ou ir escandalosamente contra aquilo que o judaísmo permite e preceitua – um pouco à semelhança das armadilhas lançadas a Jesus em relação ao sábado (e podemos comparar, no apócrifo Evangelho de Tomé, a pergunta dos discípulos sobre a obrigatoriedade da circuncisão).

Em relação ao divórcio, a resposta de Jesus vai no sentido de contrariar o que o judaísmo permite. A razão da permissibilidade do divórcio na lei de Moisés – diz Jesus – é a «sklêrokardía» (σκληροκαρδία) do homem, isto é, o «coração esclerosado», o «coração duro» do homem. Ele está a referir-se ao marido que, na sua dureza de coração, se divorcia da mulher para casar com outra (o que está certamente aqui implícito é o problema de não haver filhos no casamento, por esterilidade; a questão do divórcio por adultério só é explícita no evangelho de Mateus), deixando a divorciada numa situação de desamparo e de vulnerabilidade. O que Jesus diz tem que ver com a sociedade judaica da sua época. E Jesus fala contra o divórcio aqui por compaixão para com o drama da mulher preterida.

Para sustentar o seu ponto de vista contra os fariseus, Jesus socorre-se da própria Escritura judaica e profere duas citações do livro de Génesis: «macho e fêmea os fez» (1:27) e «serão os dois uma só carne» (2:24).

Para o estudioso moderno da Bíblia, estas duas citações fazem parte de duas secções incompatíveis entre si do livro de Génesis: Génesis 1 e Génesis 2. A primeira citação de Jesus pressupõe que Deus criou homem e mulher de uma só vez: a raça humana começou logo com os dois géneros (é essa a visão de Génesis 1). Em Génesis 2, Deus cria primeiro Adão – e depois cria a mulher como «afterthought» secundário, a partir da costela de Adão. Homem e mulher não parecem ser a mesma entidade ontológica em Génesis 1 como são em Génesis 2.

Seja como for, a chave da declaração pública acerca do divórcio na passagem de Marcos é a frase bombástica de Jesus (tão bombástica como «o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado»): trata-se de «o que Deus uniu não separe o ser humano».

No segundo momento da discussão sobre o divórcio em Marcos, Jesus está em casa com os discípulos, que, decerto ainda zonzos depois da bomba que ouviram, o interrogam de novo sobre o assunto. Aos discípulos, Jesus diz o seguinte: «quem se divorciar da sua mulher e casar com outra, comete adultério em relação a ela; e se ela, tendo-se divorciado do marido, casar com outro, comete adultério» (Marcos 10:11-12).

O enfoque das palavras de Jesus é diferente na declaração pública e na declaração privada. Na primeira, ele condena somente o divórcio, deixando implícito o seu entendimento de que o divórcio constitui uma crueldade do marido em relação à mulher; na segunda, o enfoque da condenação de Jesus está no re-casamento, descrevendo-o como adultério.

Das duas declarações – a pública e a privada – a que tem mais probabilidade histórica de ter sido dita pelo Jesus real é a pública.

A declaração privada, tal como a lemos em Marcos, o evangelho mais antigo, contém palavras que Jesus não pode ter dito. A dúvida levanta-se sobretudo em relação à noção impensável na sociedade em que Jesus vivia de que uma mulher se pudesse divorciar do seu marido. Isso era permitido às mulheres em Roma, mas não à mulheres da sociedade judaica de Jesus. Não podem ser palavras ditas por Jesus: por conseguinte, mesmo no mais antigo dos evangelhos, estamos a ler palavras postas na boca dele que ele não disse. São palavras que eram necessárias a cristãos posteriores em Roma e noutros locais do império, mas não podem ser palavras ditas por Jesus.

Por outro lado, as palavras ditas em privado aos discípulos sobre o divórcio no Evangelho de Marcos têm pequenas e grandes oscilações nos muitos manuscritos que nos transmitem este evangelho. Nos manuscritos do século IV (Codex Sinaiticus, Codex Vaticanus e outros), as palavras de Jesus são as que apresentei acima: «quem se divorciar da sua mulher e casar com outra, comete adultério em relação a ela; e se ela, tendo-se divorciado do marido, casar com outro, comete adultério» (Marcos 10:11-12).

No entanto, existe um manuscrito do século V que nos dá a ler as palavras sob esta forma: «se uma mulher se divorciar do marido dela e casar com outro, comete adultério; e se um homem se divorciar da mulher, comete adultério».

As palavras de Jesus, tal como nos são transmitidas por este manuscrito do século V, destacam em primeiro lugar a mulher que se divorcia do marido e casa com outro (e põem o homem em segundo lugar, ao contrário dos manuscritos do século IV). Além do mais, as palavras registadas nesse manuscrito dizem-nos esta coisa extraordinária: o homem, pelo mero facto de se divorciar da mulher, já é por esse motivo um adúltero. Sinceramente, não me parece que era isso que o Jesus histórico quis dizer.

Resumindo: as palavras ditas por Jesus aos fariseus («o que Deus uniu não separe o ser humano») têm a marca do tipo de declaração bombástica e provocatória, marca essa que é o timbre de asserções de Jesus que poderão eventualmente ser autênticas. A razão da condenação do divórcio prende-se com a preocupação de Jesus em proteger o elo mais fraco no casamento tal como era entendido até ao século XX: a mulher. Quanto às palavras ditas por Jesus aos discípulos em Marcos 10:11-12, estão feridas de diferentes graus de improbabilidade. Além da oscilação textual nos manuscritos, não é plausível que Marcos 10:12 corresponda a algo que Jesus realmente tenha dito; são palavras que lhe foram postas na boca por Marcos.

Na imagem do evangelista Marcos que veem na fotografia (tirada pelo meu marido André na Basílica de São Pedro), vemos o evangelista segurando uma pena que, segundo se diz, mede mais de 2 metros! É uma pena bem alta – talvez necessária a quem, em várias passagens do seu texto, escreveu aquilo a que se pode chamar em inglês «a tall story».

Frederico Loureço, Facebook, 27 de Janeiro de 2019

Sem comentários:

Enviar um comentário