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domingo, 24 de abril de 2011

Reflexões pascais de um ateu

Dedico este textozinho aos meus Amigos católicos para quem o dia de hoje (Domingo de Páscoa) tem significado muito especial ou até mesmo transcendente; se bem que, mesmo excluindo os incomodativos ateus como o aqui escrevente, para muitos milhões de seres humanos esta data seja absolutamente insignificante, um dia igual a tantos outros. Destituído de significado por ser outra a sua crença. Aí reside o magno problema de filosofia da religião que aqui me traz à reflexão dedicada.
A verdade é que nem estes meus Amigos, nem nenhum outro crente de humana forma, nem nenhuma instituição religiosa, nem nenhum teólogo do meu conhecimento conseguiu até hoje dar resposta intelectualmente satisfatória à questão de saber, por exemplo, por que razão a “verdade” pascal é mais autêntica (mais verdadeira) do que as “verdades” das outras religiões, ou do que a constatável indiferença perante a Páscoa exibida por milhões de outros crentes espalhados pelo Planeta. Ou seja, enunciando a questão de modo mais geral e universal, como é que face à importância, e imponência, das diferenças entre as várias religiões se pode fundamentar a validade de uma em detrimento das outras? Como posso legitimamente, no respeito pelos mais elementares princípios da honestidade intelectual (incluindo, claro está, o respeito pela lógica), manter a minha crença católica na ressurreição de Cristo, estribada na suposta existência de um deus pessoal encarnado em Jesus de Nazaré, quando até mesmo no quadro do teísmo ocidental, considerando tão só as três principais religiões deste nosso lado da Terra, logo encontramos diferença inconciliável no modo de conceber a divindade? Para o islamismo ou para o judaísmo a trindade e o deus metamorfoseado em humano de forma absolutamente única não é aceite como verdade. Se saltarmos para o universo das religiões afastadas da concepção teísta da “realidade última”, como o budismo ou o hinduísmo, as contradições/oposições são ainda mais cavadas. Estas concepções religiosas perfilhadas, cada uma delas, por milhões de crentes não podem ser todas verdadeiras, uma vez que se negam ou excluem mutuamente. Por exemplo, crer num absoluto impessoal é algo profundamente diferente do que conceber a realidade última como sendo uma entidade pessoal (deus pessoal). Qual o critério intelectualmente respeitável na base do qual podemos apurar a veracidade de uma concepção em desfavor das outras? Qual o critério de verdade religiosa?
Formulo a pergunta ainda de outra forma, porventura mais radical: tendo sido proclamada a existência de mais de dois mil deuses demiúrgicos ao longo da história da civilização humana, todos eles com significativo número de seguidores, o que é que legitima que o meu Deus seja o único existente, o único verdadeiro, o único digno de veneração, ou, pelo menos, o mais perfeito, o maior, o melhor? Que falta aos outros dois mil e tal para que eu, dedicado membro de uma determinada religião, descreia da sua existência comportando-me afinal, em relação a esses outros deuses, como se fosse um convicto ateu?
Uma resposta forte, durante longo tempo dominante, para este magno problema da diferença religiosa (pluralidade das concepções religiosas) foi aquilo que a filosofia da religião denominou de exclusivismo dogmático ou dogmatismo exclusivista, posição lapidarmente exemplificada pelo texto do Concílio de Florença (século XV): «Ninguém que permaneça fora da Igreja Católica […] pode participar na vida eterna; [os que não pertencem à Igreja Católica] irão para o “fogo eterno que foi preparado para o diabo e os seus anjos”.» A verdade é assim decretada e imposta de acordo com o princípio da autoridade. Dadas as óbvias dificuldades com que esbarra este tipo de argumentário em pleno século XXI (e felizmente já desde há bastante tempo), vários teólogos e filósofos da religião têm buscado argumentos mais razoáveis, menos primários e menos sectários. Disso são exemplo nobre os bons esforços do grande teólogo germano-americano Johannes Paul Tillich, autor da celebrada Teologia sistemática, ou, mais recentemente, do filósofo cristão John Hick. O primeiro fala do “ser-em-si” e o segundo do “real em si” referindo-se à realidade divina última a partir da qual procuram fundamentar uma resposta pluralista (não dogmática) para o problema da diferença. No caso do pluralismo religioso de Hick todas as religiões são consideradas igualmente verdadeiras e, portanto, legítimas porque em todas elas se manifesta a realidade divina última ou real em si. O que importa, na óptica deste filósofo, é verificar a presença universal (em todas as tradições religiosas) da passagem ou transformação da centragem em si para a centragem no divino, protagonizada pelo crente em busca do caminho para a salvação. É comum o recurso à analogia do elefante descrito por cegos para clarificar esta ideia central. Mas como pode Hick ou quem quer que seja demonstrar por esta via que o crente católico ao afirmar ter a experiência do amor infinito de Cristo (divindade pessoal) está, de facto, a experienciar a mesma realidade (dita última) que o crente hindu ao afirmar, por sua vez, vivenciar a infinitude de Brama (absoluto impessoal)? Onde está a demonstração ou a explicação razoável de que se trata de modos diferentes de experimentar a mesma realidade última?
O próprio John Hick assume honestamente a fragilidade da sua argumentação ao responder que de facto não sabe se se trata do experienciar da mesma realidade divina última, acrescentado que o seu pluralismo religioso não passa de uma hipótese (a terminologia é dele). Se, digo eu agora, aceitamos a hipótese de o real em si, a realidade divina última, possuir propriedades absolutamente contraditórias (patenteadas, por exemplo, no caso da experiência de Cristo anteposta à experiência de Brama em crentes de duas tradições religiosas distintas) estamos a arriscar claramente a simples rejeição da nossa bela teoria pluralista por vício ou defeito de elementar incoerência. Se opto por legitimar a incoerência nego toda a lógica, inviabilizo o pensar regrado (racional), deixo a irracionalidade à solta, decreto a nulidade dos abnegados esforços da filosofia, da ciência, da instrução/educação e da própria teologia; escancaro a porta à mais absoluta fantasia e arbitrariedade, declarando alegremente que tudo é falso e verdadeiro ao mesmo tempo, sendo por isso vão qualquer esforço ordenador. O mundo, bem como a vida que nele se processa, é todo ele composto de caos. Portanto, vale tudo. O discurso argumentativo, seja ele qual for, não faz sentido. Valendo tudo, a religião, em conjunto com todos os espaços disciplinares, é pura inutilidade fantasiosa. Só o silêncio absoluto e a louca indiferença fazem sentido.

2 comentários:

  1. Soube há pouco, ao ver, num canal qualquer do cabo, um documentário sobre os mórmons que Cristo, afinal, nasceu, viveu e morreu nos EUA.
    E convertem os mortos a pedido de familitiares ou amigo para depois de mortos se juntarem todos no mesmo céu. Entre os convertidos depois de mortos está gente conhecida como De Gaule. Coitado sem saber de nada.Os mórmons, um ramo de outro ramo, de outro ramo, de outro ramo da religião cristã lançaram a dúvida no meu espírito. Olha, boa páscoa com anho e amêndoas.
    RN

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  2. Obrigado pelo comentário e pelos votos. Espero encontrar-te amanhã na rua, mantendo viva a memória e engendrando a acção transformadora que o presente convoca. Um forte abraço.

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