Esta primeira mensagem, dada sob
a forma imagética, envia-nos de imediato para o que se afigura ser o objectivo
central do cineasta: fazer o elogio da autenticidade.
A autenticidade da relação com a paisagem – generosamente oferecida ao
espectador pela câmara através de demorados planos, de enquadramentos rigorosamente
desenhados e de imagens magníficas; a autenticidade da ligação à terra que é
trabalhada, cultivada, tratada, acariciada, entranhando-se no próprio corpo do
cuidador; a energia que emana da paisagem, a força da montanha; o intenso
convívio com as entidades biológicas presentes nesse espaço – ervas, arbustos,
árvores, animais, seres humanos; a veracidade das relações familiares; a
autenticidade da relação com o outro no espaço sociocultural, no quadro dos
hábitos cimentados, dos costumes, das tradições, das crenças, dos preconceitos,
das ilusões e das desilusões, das convicções, dos sonhos, das utopias.
Em conformidade com o objectivo
traçado, o cineasta filma com robusta competência os elementos (água, ar,
terra, fogo), a acção prática do homem, bem como as sonoridades e os não menos
preciosos silêncios que estão associados a ambos (aos elementos e à acção
humana), dando consistência aos significados de uma ambiência global (natural e
cultural). A fidelidade à realidade que inspira o gesto artístico é notável em
quase todas as opções do realizador. Há uma, porém, que traí. Traí a
autenticidade nuclear. Incompreensivelmente. Erro grave que subjaz ao que talvez
seja o principal defeito da obra: a escolha da língua; o trazer o inglês
americano, elemento alienígena, para dentro dessa ambiência rural austríaca. A
autenticidade é violentada por essa opção.
Mas não pretendo deter-me no
objecto cinematográfico, ou seja, na análise crítica de um filme. Não é essa a
finalidade deste escrito. Interessa-me, neste momento, o conteúdo filosófico
que a obra de cinema oferece ao receptor. Um conteúdo que é trazido de dentro
de um personagem real para se projectar na tela. Sim, porque esse Franz que
habitou o Planeta num breve período histórico marcado por duas guerras
mundiais, dois momentos maiores de niilismo, entre 1907 e 1943, era ele próprio
portador de um essencial conteúdo filosófico, elemento imaterial: o problema da
consciência moral e de como ela condiciona o agir. As circunstâncias motivaram
que um ser humano vulgar se tivesse tornado sujeito invulgar. Na Áustria
nazificada, resultante do Anschluss (12
de Março de 1938), um simples agricultor sem ligações políticas recusa-se a
colaborar com os alemães e a respeitar a ordem de recrutamento que impunha que
se alistasse na Wehrmacht para
participar na guerra contra os Aliados. Essa atitude põe em causa a sua própria
vida. Ninguém compreende a sua escolha desrespeitadora da lei, da ordem
estabelecida e aceite pela generalidade do povo austríaco. Franz é ostracizado
pelos seus. Vizinhos, conterrâneos, amigos, todos condenam a sua atitude de
desobediência. Sendo homem de profunda fé cristã que exerce a função de
sacristão na igreja local, Franz procura conforto junto das autoridades
religiosas que também o abandonam por estarem cumplicemente flectidas perante o
novo poder. Julgado e condenado à morte pelos nazis, no Reichskriegsgericht (tribunal de guerra do Reich) de
Berlim-Charlottenburg, no dia 6 de Julho de 1943, Franz Jägerstätter é
executado na guilhotina no dia 9 de Agosto de 1943, na prisão de Brandenburg-Görden,
por ter decidido, em função de uma profunda tomada de consciência, não aceitar
a barbárie institucionalizada e não servir o Mal.
Franz Jägerstätter é geralmente
apresentado como um objector de consciência, o que embora não sendo completa
inverdade é, no entanto, uma declaração enganadora. Porque no seu caso não se
trata de incompatibilidade com o serviço militar ou com as Forças Armadas. Ele
não se declara defensor de um pacifismo absoluto. Os dados biográficos que
possuímos permitem-nos concluir que se fosse francês, inglês, russo ou americano,
Franz teria participado no esforço de guerra contra o nazi-fascismo,
alistando-se nas forças armadas do seu país natal embora desempenhando
preferencialmente funções que não o obrigassem a disparar armas contra o
inimigo. A sua recusa radical não é a do cumprimento do serviço militar
obrigatório mas sim a da colaboração com os nazis; ou melhor, com o nazismo,
por este ser uma expressão do Mal. Sem nada saber sobre o pensamento de
Sócrates (que, no fundo, é a situação de todos nós, incluindo a dos profissionais
da filosofia e dos historiadores do pensamento ocidental) Franz Jägerstätter
põe em prática, materializa sob a forma de agir social concreto a fórmula moral
atribuída ao filósofo ateniense: é
preferível submetermo-nos à injustiça do que cometer a injustiça. A regra
moral platónica aparece inscrita no próprio discurso do protagonista como uma
espécie de citação de Sócrates (não declarada, também por ser impossível devido
à ausência de fontes absolutamente fidedignas ou incontroversas).
Nos diálogos ficcionados, bem
temperados de significado filosófico, o personagem principal afirma a dado
passo: «é-me impossível não escutar a minha consciência». Talvez a frase seja
uma citação literal de alguma carta do Franz real. Desconheço se é ou não,
embora possamos estar certos de que ele verbalizou esta sua interioridade.
Frases iguais ou semelhantes foram ditas e repetidas ao longo dos tempos, em
momentos históricos e em situações muito diferentes da que foi vivida por Franz
e, como é natural, são ditas também nos dias de hoje. Mas será que o seu
significado se mantém inalterado? Será o mesmo? Não me parece. Por isso, o que
agora desejo pôr em evidência, por ser questão muito relevante para o nosso
viver actual, aqui e agora, é a diferença
de significado. Questão não
problematizada no filme, desde logo porque a acção se situa integralmente na
época em que o protagonista viveu, mas que acaba por ser proposta ao espectador
de modo involuntário e forma indirecta, sem que por detrás disso haja, como é
óbvio, a clara intenção geral do realizador de dar a ver um caso exemplar e por
isso mesmo desejavelmente inspirador de condutas reais no tempo presente.
No quadro do hodierno
comportamento humano, escutar a própria consciência significa algo de muito
diferente daquilo que o perseguido Franz quis transmitir às autoridades nazis,
aos representantes da Igreja, aos seus conterrâneos, assim como aos seus entes
mais queridos. Neste nosso tempo, alguém afirmar que só escuta a consciência
significa que está determinado a fazer aquilo que lhe apetece, aquilo que
subjectiva e individualmente entende fazer, exercendo a sua liberdade pessoal e
tendo em vista a mais plena satisfação possível dos seus interesses individuais
imediatos, dos seus caprichos pessoais, dos seus ganhos e conveniências
particulares numa imediatez instante. Quer isto então dizer que essa escuta tem
hoje uma significação dominante oposta à que nos é presente no comportamento
edificativo de Franz Jägerstätter nos anos quarenta do século passado. Porque,
como se sabe, o modesto agricultor não hesitou em escolher o caminho contrário
ao das suas conveniências pessoais, imediatas e mediatas, indo ao extremo de secundarizar
a própria preservação da sua existência para poder dar resposta a um desafio
moral, a uma interpolação ética ditada pela sua circunstância. Um caminho que
colocou a morte diante de si.
Esta forte desconformidade entre
dois modos de conceber a voz da consciência, esta oposição de significados,
confronta-nos. Obriga-nos, ou deverá obrigar-nos a reflectir sobre a atitude
hoje abertamente recomendada pelo individualismo reinante, pelo pensamento
dominante que subjaz a coisas como o empreendedorismo, o marketing, a indústria
e o comércio da felicidade, a psicologia positiva, o coaching, as doutrinas do desenvolvimento ou aperfeiçoamento
pessoal, o desmedido caudal de publicações centradas no prazer do eu, no
bem-estar individual, no cuidar de si, na apologia do sorriso permanente. Numa
sociedade cada vez mais povoada por diversas variedades de sujeitos obcecados
pela sua felicidade (os “felicicondríacos”)
e que olha com crescente desconfiança para o sofredor, para a vítima, para o
doente, para o fracassado, um homem como Franz Jägerstätter tenderá a ser
considerado um completo parvo, um apoucado de inteligência que, por padecer
desse defeito, não consegue gerir os seus interesses, não consegue governar-se.
No fundo, à luz da ideologia que se tem vindo a estruturar como dominante,
ideologia de cunho neoliberal e individualista (existem apenas indivíduos, como diria o economista
austríaco Friedrich Hayek ou a sua fiel seguidora Margaret Thatcher) o
agricultor austríaco arrasta consigo a culpa da irresponsabilidade de ter feito
uma escolha errada e parva. Não soube moldar-se à circunstância. Por isso,
acaba por ser ele próprio o principal culpado do seu infortúnio, com a
agravante de ter lesado também os interesses de outros, desde logo os das suas
filhas menores, assim como os da sua jovem mulher. Na secção de vencedores/perdedores,
típica da imprensa actual, Franz logo seria etiquetado de “perdedor”, a loser, e teria direito a uma bela seta
a apontar para baixo. Poderia o nosso Aristides de Sousa Mendes escapar a esta
classificação? Não fez ele a mesma escolha? E esse outro Franz, o padre Franz
Reinisch que tanto influiu no comportamento de Jägerstätter? E o compositor
Viktor Ullmann e o jovem poeta Peter Kien? E Bernhard Lichtenberg? E
Maximiliano Maria Kolbe? São todos losers?
Confrontam-se aqui diferentes
tipos de moral ou de filosofias da moral. Há desde logo a clivagem entre a
moral religiosa e a moral laica. No entanto, no que se refere ao problema
central que o caso Jägerstätter chama à colação, que é o de saber o que devo eu
fazer, como devo eu agir quando confrontado com o grande mal organizado – corporalizado
em instituições e até mesmo no Estado, no seu todo, no conjunto do aparelho
estatal –, a separação religioso/laico não se traduz em respostas
comportamentais necessariamente diferenciadas, como fica bem demonstrado nos
muitíssimos exemplos históricos em que crentes e agnósticos/ateus convergiram
numa mesma atitude oposicionista, de completa rejeição da estruturação do mal.
Perante o Reich hitleriano, houve
comunistas ateus, como Ernst Thälmann, e padres católicos, como o já aqui
citado Bernhard Lichtenberg, que, no fundamental, fizeram a mesmíssima escolha,
obedecendo ao imperativo moral da rejeição de um regime imoral, como logo se
adivinha quando olhamos para as datas e locais de falecimento desses dois
homens (respectivamente, Agosto de 1944, em Buchenwald, e Novembro de 1943, no
caminho para Dachau). No caso vertente, estamos perante alguém mergulhado no
universo da moral católica associada à teologia do sofrimento. O cristianismo,
de uma forma geral, mas em particular o cristianismo católico, divergiu da
maioria das correntes de pensamento da Antiguidade no que se refere ao
entendimento do sofrimento, do prazer e da felicidade. Trata-se de uma mudança
que em diferentes épocas irá determinar, de modo directo ou indirecto, várias
morais, ou formas de conceber a moral e a ética. De modo particularmente
vincado, no plano da existência terrena o catolicismo secundariza o prazer e a
felicidade ao mesmo tempo que confere primazia ao sofrimento. Distanciando-se
do epicurismo, do hedonismo, do estoicismo, mas também de religiões como o
budismo e outras, o cristianismo institui aquilo a que já alguns autores
chamaram a “filosofia da infelicidade”. O casal Jägerstätter segue essa
filosofia, assimilando a moral que lhe está associada. No próximo grande debate
nacional, que será sobre a eutanásia, e que agora se vai adensar em Portugal a
partir de uma sessão plenária na Assembleia da República já agendada, essa
moral católica vai ter enorme peso, porque à luz dessa “filosofia do sofrimento”
a eutanásia, por ser, por definição, uma intervenção contra o sofrimento, uma
abrupta interrupção dos tormentos do doente em estado terminal (o étimo grego euthanasía significa morte feliz ou
morte fácil), é uma prática inadmissível. Desde logo porque a morte de Cristo,
enquanto morte paradigmática, com a sua forte dimensão simbólica (morte na
cruz, não fácil nem feliz e modelo exemplar da acção desinteressada),
transportou para o interior da cultura humana uma outra visão do sofrimento.
Uma visão positiva. Porque ele é
muitas vezes um factor decisivo na aproximação a Deus. Conduz-nos à união com
Deus – configuração do eu com o Eu divino. Nesse sentido, o Bem está no
experienciar da infelicidade, ou está mais aí do que na felicidade. E se assim
é, abreviar o sofrimento através de uma morte infligida (abreviação voluntária
da própria vida) é obstaculizar o caminho para Deus, comprometendo a
salvação.
As morais laicas e humanistas que
se desenvolveram na Europa setecentista afastaram-se deste concebimento da felicidade/infelicidade.
Também elas não irão deixar de marcar presença no debate coevo sobre a
eutanásia. No mundo contemporâneo ocidental tem prevalecido a moral laica do welfare associada ao capitalismo e que,
por isso mesmo, se expandiu a partir da cultura anglo-saxónica do século XVIII.
Essa moral laica, que se distingue de outras concepções não menos laicas (como
a kantiana), está umbilicalmente associada ao utilitarismo de Jeremy Bentham e
John Stuart Mill. No quadro desta corrente de pensamento o homem é definido
como ser provido de um interesse fundamental: conquistar o bem-estar (welfare) e a felicidade. Em coerência
com essa definição, a acção humana interessada
passará a ser valorizada em detrimento do agir desinteressado do crucificado. O
bem, concebido como aquilo que concorre para a satisfação do interesse
fundamental (a felicidade), é deslocado para longe do sofrimento, passando a
estar no pólo oposto. Se é certo que o utilitarismo é uma forma de eudemonismo,
muito errado seria conota-lo com o egoísmo, como não raras vezes acontece nas
críticas comuns que lhe são endereçadas fora da esfera da cultura
especializada. Embora coabitando com a moral kantiana no espaço da laicidade, o
utilitarismo está afastado do conhecido imperativo categórico kantiano: «Age
unicamente de acordo com a máxima que faça que tu possas querer ao mesmo tempo
que ela devenha uma lei universal». Independentemente dos juízos crítico-valorativos
(que estão fora dos meus propósitos ao redigir este escrito), interessa perceber
que esta corrente se desdobra em múltiplas direcções, aparecendo espelhada em
domínios muitíssimo variados, como sejam a publicidade, a cosmética (“produtos
de beleza”), a indústria do sexo, os enredos de telenovelas, séries, filmes, as
revistas de aconselhamento de variado tipo, a ida ao ginásio, a arte
entretenimento, etc. ; surge também em expressões ou frases em voga, como “direito
à diferença”, “temos que ser positivos”, “goza à grande”, “be yourself”, “just be cool /
gonna be cool”, “cuidar de si”, “promover o crescimento económico”, “é
preciso aprender coisas que sejam úteis”, “ser lucrativo”, “fazer aquilo que
nos apetece”, e tantas outras.
Isto parece mostrar que o nosso
quotidiano está cheio de apelos à procura da satisfação dos interesses do indivíduo,
do sujeito individual que por sua vez é concebido como ente desligado de
qualquer estrutura societal, existindo como singularidade subjectiva (relativa
ao sujeito) que se soma a outras singularidades numa lógica de simples justaposição.
Olhando em nosso redor, tudo ou quase tudo parece instar a que essa procura
domine toda a nossa vida, nas suas várias vertentes, do espiritual ao material.
Como devemos então avaliar os actos praticados por Franz Jägerstätter? E quanto
à já antes enunciada grande questão que esses actos transportam? A de saber que devo eu fazer perante o avanço da
organização do Mal?
A realidade em acelerada mutação
que é hoje a nossa realidade confere
crescente relevância a essa interrogativa fundamental. Basta constatar a clara afirmação de extremismos nacional-populistas
e o risco evidente de morte da democracia na América, para usar o título do
texto clássico de Alexis de Tocqueville sobre o ideal da Liberdade e a sua
adequação a uma realidade sociopolítica concreta, obra de leitura e releitura
ainda mais obrigatória nos tempos que correm.
Na cena mais dostoievskiana do
filme o juiz presidente, qual Grande Inquisidor, introduz a central questão do
livre arbítrio, interrogando o réu em busca do sentido moral. A dimensão moral
de um comportamento é uma consequência directa da liberdade de escolha do
sujeito. Se a escolha fosse impossível por imposição de um determinismo absoluto,
o comportamento humano não seria passível de julgamento moral. A moral germina
na liberdade, no eu livre (que até pode ser um eu encarcerado, como Sócrates na
prisão ateniense e Franz na prisão nazi de Berlim, ambos mais livres do que os
seus juízes). Mas, por isso mesmo, Franz (como Aristides) podia ter optado por
se comportar de uma forma que o salvasse da condenação há morte. Podia ter dado
prioridade à satisfação dos seus interesses. Porquê, então, agir desse modo,
sacrificando a vida? E porquê essa escolha se ela não ia alterar nada? Se não
ia influir no devir histórico? A sua decisão nunca poderia alterar o rumo dos
acontecimentos. O facto de se tratar de um cidadão anónimo, sem ligação a
organizações políticas de resistência, sem qualquer notoriedade pública,
vivendo uma vida escondida, fazia com que a sua escolha estivesse condenada a
ser um acto não histórico, no sentido em que não influi no curso da História.
Todos os factos ocorridos e todos os actos humanos praticados fazem parte da História,
na medida em que constituem o próprio tecido do devir histórico; porém, nem
todos são actos históricos, actos causadores
de uma mudança no rumo dos acontecimentos no plano daquilo a que podemos chamar
“grande história” por oposição à petite
histoire. Porquê então insistir numa escolha inútil? Porquê um sacrifício extremo,
o da própria vida, se “não serve para nada”? Se não altera o rumo dos
acontecimentos? Franz sabia, como qualquer outro, que o seu “Não” radical (e
até mesmo a sua morte) nada ia provocar, no imediato, que pudesse derrotar a
maldade nazi. E tinha Franz o direito de fazer uma escolha que implicava deixar
filhos órfão e uma mulher viúva? Não haverá egoísmo sacrificial neste agir
infrutífero?
Claro que nunca nos libertamos do
ego. Mas o que acontece é que naqueles que se construíram pessoa a identidade repousa sobre um conjunto de
convicções e resulta de uma sólida fidelidade
a si próprio, no completo respeito pelo seu eu-essencial. A morte não se
esgota na morte biológica ou física. Pode-se morrer permanecendo biologicamente
vivo. Há mortos vivos. Franz sabia que se escolhesse não refutar o nazismo
estaria a refutar o seu eu-pessoa, pondo em causa a sua autenticidade enquanto
sujeito concreto. Perdia-se, sem
hipótese de retrocedimento. Perderia toda a sua autenticidade humana; destruiria a sua identidade por não ter
conseguido manter-se fiel a si próprio. Isso constituiria objectivamente o
assassinato do seu eu-pessoa ou, se preferirmos, seria um suicídio da alma.
Teria sido outra morte, mais penalizadora por ser indigna. Uma morte resultante
da trágica perda da autenticidade e da identidade fundada em convicções. Por
isso, Franz sabe que não pode vencer a batalha que trava. Na sua desesperança
reside a autenticidade da coragem. A coragem do vencido. Na Ética a Nicómaco Aristóteles faz-nos
compreender o essencial através de uma asserção bela, sucinta e profunda: «As
pessoas verdadeiramente corajosas não agem senão pela beleza [ética] do acto
corajoso» -- esse to kaloun pratousin
que também tem sido traduzido por «amor do bem» (Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1116 b 30).
No conjunto das virtudes humanas
a coragem é sem sombra de dúvida a que é objecto de maior admiração universal. Os
actos de Franz Jägerstätter são indiscutível exemplo de coragem. Até mesmo
alguns acusadores, na sua vincada discordância não terão deixado de nutrir uma
certa admiração pela coragem exibida. Como faz notar André Compte-Sponville no
seu Petit traité des grandes vertus, «o
que é universalmente admirado, é também admirado pelos maus e pelos imbecis». E
o sagaz Voltaire, em quem Compte-Sponville se inspira, afirmava que no seio da
alma humana «Uma coragem indómita […]
/ Faz os grandes heróis ou os grandes
criminosos» (em Rome sauvée, ou
Catilina, V, 3). Daí que Voltaire não classificasse a coragem como sendo
uma virtude humana. A coragem de Franz foi «para o bem e no bem», enquanto
alguns nazis exibiram em vários cantos do mundo uma coragem «para o mal e no
mal». Por isso, a coragem de Franz confere virtuosidade
ao sujeito da acção, coisa que não acontece com a coragem do esbirro da
Gestapo ou do militar das SS, mesmo quando ela, de alguma maneira, possa
despertar certo grau de admiração. Para além dessa virtuosidade, os actos
corajosos de Franz motivam acrescido respeito por terem sido praticados no isolamento; porque, excluindo a sua
companheira, todos discordavam da sua escolha, todos estavam contra ele, todos
condenavam a sua atitude. Uma ostracização cinematograficamente sublinhada por
Malick. Esse isolamento serve para mostrar como a moral é um assunto do Eu.
Como dizia Alan, «la morale n’est jamais pour
le voisin», a moral nunca é para o vizinho mas sim para nós próprios. A
questão moral é sempre endereçada ao Eu:
o que devo eu fazer? Inquirir sobre o
que devem os outros fazer é problema que remete para a esfera do moralismo que,
claro está, é coisa diferente da moral. Mas iludem-se os que supuserem que a
escolha corajosa desse homem simples foi decidida na absoluta solitude. Não.
Franz era um crente cristão, homem de profunda fé, e a sua decisão é tomada em íntimo
diálogo com a divindade. É uma “solidão” com Deus ou na companhia de Deus. Será
que isso diminui a nossa admiração pela sua coragem? Talvez, mas não
necessariamente; e, à falta de medidor objectivo da intensidade ou do grau da
coragem, nem talvez se deva colocar a questão. Como Pascal, o austríaco Franz
tinha a profunda convicção de que «se há um Deus, há que amá-lo só a Ele e não
às criaturas efémeras». A voz destas, seja qual for o seu poder terreno, nunca
se pode sobrepor à voz de Deus. É Ele que deve ser escutado, é a vontade desse
ente supremo que deve ser respeitada. Improvável leitor de Dostoievski (esse
escritor do “compromisso teológico”, como disse o recentemente falecido George
Steiner), Franz também poderia ter afirmado: «se Deus não existe, tudo é
permitido». Se bem que a asserção dostoievskiana seja notoriamente falsa, uma
vez que o sujeito para quem Deus não existe, o eu ateu, não é necessariamente,
nem de forma alguma um ser humano que se permita fazer tudo. Muitos ateus
tiveram perante o nazismo a mesmíssima atitude, fazendo a escolha do crente
Franz: disseram não; refutaram-no
dando também a vida em defesa de um ideal, mas, neste caso, desligado de qualquer
tipo de crença religiosa. Como nos ensinou o iluminista Kant (bem como vários
outros), a religião, a fé religiosa, não é o fundamento da moral; esta é que
justifica ou fundamenta aquela.
No mundo terreno, Franz, o puro
crente perseguido que até exercia as funções de sacristão na igreja da sua aldeia
e que praticou o sacerdócio laico antes do Concílio do Vaticano II, teve que
suportar a condenação da própria comunidade religiosa a que pertencia.
Hostilidade desencadeada também, e em grande medida, pela desaprovação que o
seu comportamento mereceu junto da hierarquia da Igreja na Áustria do pós-Anschluss, uma hierarquia católica curvada
diante do poder nazi, agente do Mal – atitude que é exemplo de cobardia para o
mal e no mal.
Mais tarde, já no pós-guerra,
numa Áustria pouco ou deficientemente desnazificada, foi preciso esperar vários
anos até que fosse atribuída uma pensão de viuvez a Franziska Jägerstätter (o
nome de solteira era Schwaninger), mulher de Franz e mãe de três das suas
quatro filhas. A mesma hierarquia religiosa que em 1943 o tentou demover da
recusa do nazismo, chegado o tempo de paz não sentiu a urgência de alterar a
sua posição, colocando-se do lado da defesa da memória do homem bom que tinha criticado.
Sessenta e quatro anos depois da execução de Jägerstätter, em momento de
conveniência institucional, a Igreja Católica enalteceu formalmente o comportamento
do “sacerdote laico” vítima da barbárie nazi. Foi em Junho de 2007 que o papa
Bento XVI conferiu a Franz Jägerstätter o estatuto de mártir (concluindo um
processo que se iniciara em 1997, quando já tinha decorrido mais de meio século
desde o dia da execução); pouco tempo depois, no dia 26 de Outubro desse mesmo
ano, assistiu-se à sua beatificação na Nova Catedral de Linz. Cerimónia
presidida por um português: o cardeal José Saraiva Martins. Franziska, então
com 94 anos, ainda pôde estar presente (faleceu com 100 anos, em 2013).
No filme de Malick, o juiz presidente (derradeira representação
do actor Bruno Ganz, falecido em 2019) acaba por se sentar no lugar do réu
Franz. Uma movimentação simbólica, portadora de um convite à consciência autocrítica.
O decesso de Franz Jägerstätter
sob a guilhotina nazi é uma morte socrática. Sócrates, esse protagonista de uma
morte paradigmática no quadro da cultura humana, podia ter escapado facilmente
à cicuta se tivesse feito outra escolha perante o tribunal ateniense, abdicando
de si, desbaratando a sua autenticidade.
É a escolha da reafirmação de uma identidade fundada nas suas convicções (fidelidade
a si, autenticidade) que o faz ser condenado à morte e executado. A morte de
Jägerstätter inscreve-se nesse paradigma. E à semelhança do celebrado filósofo
ateniense também o obscuro agricultor austríaco se vai sentir livre na prisão, porque, na sequência da
formulação de um radical Não, é aí
que ele se cumpre como pessoa. O seu acto de negação é ao mesmo tempo um acto
de afirmação; o “não” é um “sim” à vida digna – como o «preferia não o fazer» incansavelmente repetido por Bartleby na
novela homónima de Herman Melville. E nessa medida, a recusa de se esquivar ao
sofrimento não aparta Jägerstätter da sabedoria de um Michel de Montaigne, apóstolo
intelectual do «grande “sim” sagrado à
vida» (Frédéric Lenoir), porque os padecimentos resultantes do “não” são
sofrimento inevitável, não se
inscrevem na categoria do sofrimento
evitável, porque evitá-los implicaria o inaceitável
e, por isso, também o insuportável: trair as convicções mais
profundas. Daí que as privações e os tormentos do cárcere representem a
continuidade da pessoa que se é, e isso concede bem-estar interior. Terrence Malick
oferece-nos a retratação cinematográfica dessa alegria no cativeiro. Uma essencial alegria de tonalidade
espinosista que permanecerá fatalmente ininteligível para os que no seu existir
caminham despidos de autenticidade e nus de convicções.
Os actos antinazis de Franz foram actos não históricos na altura em que foram praticados, mas a memória que os projecta no tempo,
trazendo-os a este nosso presente em que novos agentes do mal extremo se
perfilam e reagrupam no horizonte, confere-lhes outra dimensão histórica, na
precisa medida em que se deseja que concorram no tempo actual para dar forma a
uma ética comportamental ofertante de sólida resistência, na dupla vertente do
pensamento e da acção prática que o materializa, à reorganização do mal e a
novas formas de o institucionalizar. Desse modo, o acto não histórico protagonizado por um homem anónimo adquire súbita e
inesperadamente a capacidade de fazer
história através do distanciado agir de sujeitos em que venha a influir.
Nós somos membros da Humanidade pós-Auschwitz. E depois de
Auschwitz, supremo símbolo do grande Mal, o não,
a filosofia da negação/rejeição,
tornou-se, em definitivo, a única atitude humanamente admissível e moralmente
possível.
João Maria de Freitas Branco
Caxias, Fevereiro de 2020
Notável este texto. Encontro aqui sempre lucidez e inteligência.
ResponderEliminarObrigado.