A população católica – cada vez mais reduzida nos países com
elevados índices de escolaridade – foi surpreendida pela resignação do Papa
Bento XVI. Pondo de parte as amargas razões de saúde que estiveram na base da
decisão papal, parece-me a mim, cidadão laico, tratar-se, em princípio, de uma
boa notícia, por representar a saída de alguém que, no exercício de um cargo de
poder, se opôs ao progresso civilizacional, bem como à modernização da Igreja.
A apreciável erudição do teólogo Ratzinger sempre se traduziu em pensamento e
acção de acentuado conservadorismo reaccionário. Algo que adquire particular
gravidade quando, aproveitando-se da crença de muitos seres humanos, quarta a
mais intima e privada liberdade das pessoas, estabelecendo, por exemplo, quais são
os comportamentos sexuais virtuosos e os pecaminosos.
Para uma mente critico-racionalista e céptica, como a minha,
causa espanto a desconsideração pela alegada omnisciência divina exibida pelos
crentes católicos. Admitindo estes como verdade inquestionável que no conclave
os cardeais eleitores escolhem o Papa em função de uma directa inspiração do
espírito santo, como não estranhar o lapso de previsão? Como pôde escapar a um
omnisciente a antevisão de que iriam faltar ao eleito Ratzinger as energias
físicas e psíquicas requeridas para o cabal cumprimento da missão papal de
representação terrena do próprio divino espírito inspirador? Como se justifica
o divino lapso? E tendo-se tornado Papa «por vontade de Deus»,tal como afirmou
o próprio sumo Pontífice logo após a sua eleição em Abril de 2005, como ousa
agora o ainda Bispo de Roma contrariar essa suma vontade omnipotente? Como pode
o humilde servidor contrariar assim a vontade do seu divino Senhor? Falou com o
seu Deus antes de resignar, obtendo permissão para o gesto, responderão alguns.
Muito bem. Mas então, se resignou também «por vontade de Deus», ou com o seu
sapientíssimo agrément, como se
justifica que os católicos que tenho escutado nas últimas horas falem
invariavelmente de coragem, afirmando, como D, José Policarpo, tratar-se de «um
acto extraordinariamente corajoso»? Que coragem, se a decisão foi tomada em
sintonia com a vontade divina? Desculpem, mas tenho por hábito reservar o nobre
substantivo para qualificar outro tipo de gestos, em que há clara exibição de
grande firmeza de ânimo perante enormes perigos, riscos, sofrimentos, etc. Tendo
a aquiescência, a concordância, a fiança de um ser omnisciente e, para mais,
omnipotente, não vejo que coragem é requerida para avançar… Ou será que me está
curta a inteligência?
Recorde-se que, na Europa, no coração da civilização
moderna, um Estado como o Vaticano, Estado eclesiástico, não democrático, só
pode “justificar-se” com base no suposto da crença religiosa num Deus pessoal demiúrgico,
omnipotente, omnisciente, infinitamente bom e misericordioso.
Continuando a colocar-me na posição do crente católico,
também não chego a entender as intervenções públicas de vários prelados da
Igreja ao longo das últimas horas, discutindo quem deve ser o sucessor, se deve
ser “de esquerda” ou “de direita” -- terminologia utilizada por um padre num
telejornal. Mas se a escolha vai ser ditada pela vontade de Deus, porquê então
tanta preocupação política? Por que temem uns que o sucessor de Bento XVI seja
outro conservador e outros que possa ser um progressista que ponha fim a
medievalismos como o da subalternização da mulher, o celibato, a condenação da homossexualidade,
a proibição do uso de contraceptivos, a estigmatização do divórcio, o impedir
da legalização da interrupção voluntária da gravidez ou da prática da
eutanásia? Caramba! Não haverá em tudo isto despudorado excesso de contradição,
de incoerência, de confusão e, pasme-se, de falta desbragada de Fé católica?
Não será o espectáculo a que temos assistido nos vários
órgãos de comunicação desde a hora do anúncio público da resignação papal algo
que, dado o contexto religioso, se pode baptizar de “salada de tretas”?
João Maria, não posso deixar de manifestar a minha concordância com o teu ponto de vista. Afinal, isto é mesmo uma treta! Que se vá este papa e os Povos do mundo não precisam de outro. Papistas de mais já nós temos e de sobra!
ResponderEliminarHá quem tenha outra visão... concordando com a sua, não posso deixar de dar atenção a outras...
ResponderEliminar"Ratzinger é um pastor derrotado e coerente que, farto de lutar, retira-se para a clausura antes de ser devorado pelos abutres [da cúria de João Paulo II,] ávidos de riqueza, poder e imunidade." - Miguel Mora, in El País
"As vestes e o rosto tão sujos da tua Igreja Igreja assustam-nos, mas somos nós mesmos que as sujamos" - Ratzinger, em 2005, antes de ser eleito (talvez dirigindo-se a João Paulo II)
Obrigado pelo comentário. A minha visão em nada contradiz a de Miguel Mora -- pelo menos no conteúdo do parágrafo citado. Acredito que Ratzinger parta para escapar aos abutres. Coisa que João Paulo I parece não ter logrado realizar. Mas se Ratzinger tentou combater a corrupção interna, não creio que tenha tido o mesmo empenho no combate ao reaccionarismo ideológico no seio da sua Igreja.
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