No domínio da ideação escrita, da criação de pensamento através da prosa de ideias ou prosa filosófica, ocorre não raramente um fenómeno de hibernação cultural. Um texto escrito sob a influência de uma conjuntura história, ou como reacção a determinados acontecimentos históricos marcantes, perde vitalidade, parecendo até, por vezes, deixar de fazer sentido, quando esses acontecimentos se diluem no tempo, quando já não são constitutivos do presente e a situação histórica se transformou. É nessa altura que o texto corre o risco de entrar em estado de hibernação, mesmo quando se trata de obra de autor notabilizado. Olhado como arcaísmo, deixa de ser citado, já não é lido, não é reeditado e é remetido para as prateleiras dos arquivos, onde apenas será rarissimamente revisitado por exóticos intelectuais eruditos, especialistas, investigadores – uma muito magra faixa de leitores. Mas como a história é um processo constante de mudança, um novo acontecimento, o surgir de uma nova situação pode provocar a interrupção disso a que chamei hibernação cultural da obra.
A realidade presente motiva-me a vir aqui sugerir leitura despertadora, em duplo sentido: porque interrompe uma certa hibernação cultural (pelo menos no que ao nosso espaço cultural concerne) e porque desperta o pensar reactivo, fazendo-nos reflectir sobre o nosso aqui e agora.
O autor em causa é Alexandre Koyré(1892-1964), um francês de origem russa, figura maior no domínio da história e filosofia da ciência, mas personalidade menos atendida na esfera da filosofia social e política, ou da politologia. Quanto à obra, trata-se de um curto escrito, já antigo, publicado em 1943 (em período de Guerra Mundial), sobre temática torridamente actual: a função e relevância da mentira no quadro da construção ideológica e da acção política. Koyré reflecte sobre a mentira a partir do totalitarismo que lhe foi contemporâneo, mas fornece-nos ferramenta para o nosso investimento mental de pensar a mentira como factor corrosivo do Estado de Direito democrático.
Aqui vai a sugestão de leitura (ou de releitura) utilizando a mais recente edição que conheço no idioma original:
KOYRÉ, Alexandre:
“Réflexion sue le mensonge”, Editions Allia, Paris, 2016.
Não conheço a existência de nenhuma edição portuguesa.
Boa leitura e boa reflexão.
João Maria de Freitas Branco
Caxias, 11 de Janeiro de 2021
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