RETRATO DA SITUAÇÃO
O episódio do hastear da bandeira nacional em posição invertida,
durante a sessão solene do 5 de Outubro, teve a vantagem de simbolizar o estado
em que o país se encontra: de pernas para o ar, derrapando para um perigoso caos.
Compreende-se, por isso, que tenha sido este episódio a prender a maior parte
das atenções, tendo logo servido para apimentar o propósito crítico de variados
discursos de quem lucidamente condena a gravosa actuação do actual governo e a
sua política económico-financeira de extrema-direita. Isso mesmo logo pude eu observar
no local onde então me encontrava, no Congresso Democrático das Alternativas,
de que honrosamente fui um dos subscritores, e que estava a realizar-se à mesma
hora em que na Praça do Município ocorria o tão caricato quanto simbólico
episódio da bandeira invertida – acontecimento que até provavelmente irá
perpetuar-se na memória colectiva da Nação através de futuros manuais de história.
No entanto, permito-me discordar dessa focalização do reparo. Não creio ter
sido o hastear da bandeira o acontecimento simbolicamente mais forte daquela
manhã, em momento de evocação do triunfo dos ideais republicanos. O que a meu
ver mais deve merecer a nossa atenção como elemento portador de relevante simbolismo
é o protesto de uma mãe cidadã anónima contra uma política que a sujeita à
indignidade de ter que viver (sobreviver) com menos de 300 € de rendimento
mensal para sustentar uma família com filhos menores.
Perante esse sentido protesto legitimado pela realidade
obscena gerada por uma política obscena, o Senhor Presidente da República
continuou a discursar tranquilamente, sem dar sinal de qualquer sobressalto ou hesitação,
enquanto a referida cidadã era empurrada, admoestada, intimidada, mal tratada
por funcionários da segurança do Estado que desse modo prepotentemente grosseiro
asseguram aos políticos, representantes do povo, um “higiénico” distanciamento
do povo que dizem representar – até porque o povo, por surreal decisão de um
qualquer agente do poder, até estava impedido de participar na comemoração; não
tinha recebido convite…, porque comemorar a República sem povo sempre é coisa
mais asseada. Evita incómodos.
O chefe do Estado, o mais alto magistrado da Nação, não
parece ter sentido em nenhum instante a urgência de atender àquele angustiado grito
de socorro de uma mãe cidadã que corajosamente descera à rua, como as mulheres
e homens da festejada jornada de Outubro de 1910, com o nobre propósito de
criar justiça social, de lutar pela democracia e pela liberdade. Ao lado do Presidente
da República, participando na mesma sessão comemorativa de um gesto
revolucionário histórico, estavam as mais altas figuras do Estado. Todos
afinaram pelo diapasão do chefe máximo, exibindo, aparentemente, igual
indiferença. Não consta que nenhum deles tenha entretanto procurado contactar a
desesperada cidadã com o intuito de lhe aliviar a dor deveras sentida. Nada.
Absolutamente nada a não ser um estrondoso silêncio de insensibilidade. Esta
presidencial indiferença à mostra de sofrimento, à sinceridade da denúncia de
uma inadmissível situação de pobreza, diz muito, senão tudo, sobre a situação
em que estamos mas que temos de transformar, e já, começando por derrubar um governo
que se ilegitimou ao desrespeitar os programas eleitorais dos partidos que o
suportam, anulando o sentido do voto dos cidadãos eleitores que neles confiaram.
Traíram também o seu próprio programa governativo aprovado na Assembleia da
República.
O governo que ainda temos atenta contra a democracia, divorciou
a política da moral, colocou-se fora da lei e aniquilou a relação de confiança
entre eleitores e eleitos.
Tenho insistido (em outras intervenções públicas) em
recordar uma sábia descoberta científica do grande Charles Darwin apresentada
na obra The descent of man que se
pode enunciar assim: a simpatia [sympaty] é fundamento da civilização, a sua
base essencial, e resulta do instinto social da espécie de que fazemos parte.
Dito de outra forma, porventura mais consentânea com o vocabulário da cultura
judaico-cristã, sem compaixão, sem afecto pelo outro, não há civilização. No
século que antecedeu o de Darwin já o também britânico Adam Smith, no seu livro
The theory of moral sentiments (1759),
tinha colocado a sympaty no centro da
consciência moral e da dimensão ética do nosso comportamento enquanto
indivíduos no seio de uma sociedade. Quando os governantes ignoram o valor da simpatia, passam a estar despidos de
civilização e a sua presença torna-se insuportável por excesso de indecência.
Curiosamente, não obstante a notoriedade dos dois autores
que aqui evoco, os livros em que ambos de forma singularmente racional e lúcida
dissertaram sobre o valor da simpatia
são hoje obras votadas ao esquecimento, não lidas ou, numa visão optimista,
muito pouco lidas até mesmo na esfera das elites. Em nome da preservação da
civilização e do seu desenvolvimento talvez fosse bom reanimar o hábito de tais
leituras. O convívio com os clássicos é sempre saudável e potencialmente frutuoso.
Pelas razões aqui apresentadas, o episódio da manifestação
de indignação da cidadã anónima (mulher do povo em espaço vergonhosamente
vedado ao povo) e a correspondente atitude dos Senhores políticos e seus
lacaios parece-me possuir valor simbólico superior ao da bandeira hasteada em
posição invertida. Porque ele simboliza um intolerável défice de civilização na acção governativa. É
esse o défice mais nocivo; por isso mesmo, é esse défice moral e não financeiro
o que mais urge combater pondo fim à actual política (des)governativa.
Blog POLITEIA: «E a primeira alternativa que temos de pôr em prática é a erradicação da obscena verba de mais de 9 mil milhões de euros - que está inscrita no Orçamento de Estado - para pagar o serviço da dívida.»
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Precisamos de Manifestações à Islândia: a revolução censurada pelos Media, mas vitoriosa!
Resumo (tudo pacificamente):
- RENEGOCIAÇÃO DA DÍVIDA;
- Referendo, de modo a que o povo se pronuncie sobre as decisões económicas fundamentais;
[uma sugestão: blog «fim-da-cidadania-infantil»]
- Prisão de responsáveis pela crise;
- Reescrita da Constituição pelos cidadãos (e os partidos políticos têm de se aguentar a um muito maior controlo por parte dos cidadãos).
[nota: dever-se-ia consultar o know-how islandês]
Obrigado pelo comentário. Acrescento a ideia de uma urgente reforma do sistema eleitoral de modo a combater a partidocracia através da possibilidade de candidaturas independentes e da implementação de um sistema misto que acolha os círculos uninominais. Além desta, impõe-se também a reforma fiscal e o controlo público da banca.
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