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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Retrato da situação


RETRATO DA SITUAÇÃO

O episódio do hastear da bandeira nacional em posição invertida, durante a sessão solene do 5 de Outubro, teve a vantagem de simbolizar o estado em que o país se encontra: de pernas para o ar, derrapando para um perigoso caos. Compreende-se, por isso, que tenha sido este episódio a prender a maior parte das atenções, tendo logo servido para apimentar o propósito crítico de variados discursos de quem lucidamente condena a gravosa actuação do actual governo e a sua política económico-financeira de extrema-direita. Isso mesmo logo pude eu observar no local onde então me encontrava, no Congresso Democrático das Alternativas, de que honrosamente fui um dos subscritores, e que estava a realizar-se à mesma hora em que na Praça do Município ocorria o tão caricato quanto simbólico episódio da bandeira invertida – acontecimento que até provavelmente irá perpetuar-se na memória colectiva da Nação através de futuros manuais de história. No entanto, permito-me discordar dessa focalização do reparo. Não creio ter sido o hastear da bandeira o acontecimento simbolicamente mais forte daquela manhã, em momento de evocação do triunfo dos ideais republicanos. O que a meu ver mais deve merecer a nossa atenção como elemento portador de relevante simbolismo é o protesto de uma mãe cidadã anónima contra uma política que a sujeita à indignidade de ter que viver (sobreviver) com menos de 300 € de rendimento mensal para sustentar uma família com filhos menores.

Perante esse sentido protesto legitimado pela realidade obscena gerada por uma política obscena, o Senhor Presidente da República continuou a discursar tranquilamente, sem dar sinal de qualquer sobressalto ou hesitação, enquanto a referida cidadã era empurrada, admoestada, intimidada, mal tratada por funcionários da segurança do Estado que desse modo prepotentemente grosseiro asseguram aos políticos, representantes do povo, um “higiénico” distanciamento do povo que dizem representar – até porque o povo, por surreal decisão de um qualquer agente do poder, até estava impedido de participar na comemoração; não tinha recebido convite…, porque comemorar a República sem povo sempre é coisa mais asseada. Evita incómodos.

O chefe do Estado, o mais alto magistrado da Nação, não parece ter sentido em nenhum instante a urgência de atender àquele angustiado grito de socorro de uma mãe cidadã que corajosamente descera à rua, como as mulheres e homens da festejada jornada de Outubro de 1910, com o nobre propósito de criar justiça social, de lutar pela democracia e pela liberdade. Ao lado do Presidente da República, participando na mesma sessão comemorativa de um gesto revolucionário histórico, estavam as mais altas figuras do Estado. Todos afinaram pelo diapasão do chefe máximo, exibindo, aparentemente, igual indiferença. Não consta que nenhum deles tenha entretanto procurado contactar a desesperada cidadã com o intuito de lhe aliviar a dor deveras sentida. Nada. Absolutamente nada a não ser um estrondoso silêncio de insensibilidade. Esta presidencial indiferença à mostra de sofrimento, à sinceridade da denúncia de uma inadmissível situação de pobreza, diz muito, senão tudo, sobre a situação em que estamos mas que temos de transformar, e já, começando por derrubar um governo que se ilegitimou ao desrespeitar os programas eleitorais dos partidos que o suportam, anulando o sentido do voto dos cidadãos eleitores que neles confiaram. Traíram também o seu próprio programa governativo aprovado na Assembleia da República.

O governo que ainda temos atenta contra a democracia, divorciou a política da moral, colocou-se fora da lei e aniquilou a relação de confiança entre eleitores e eleitos.

Tenho insistido (em outras intervenções públicas) em recordar uma sábia descoberta científica do grande Charles Darwin apresentada na obra The descent of man que se pode enunciar assim: a simpatia [sympaty] é fundamento da civilização, a sua base essencial, e resulta do instinto social da espécie de que fazemos parte. Dito de outra forma, porventura mais consentânea com o vocabulário da cultura judaico-cristã, sem compaixão, sem afecto pelo outro, não há civilização. No século que antecedeu o de Darwin já o também britânico Adam Smith, no seu livro The theory of moral sentiments (1759), tinha colocado a sympaty no centro da consciência moral e da dimensão ética do nosso comportamento enquanto indivíduos no seio de uma sociedade. Quando os governantes ignoram o valor da simpatia, passam a estar despidos de civilização e a sua presença torna-se insuportável por excesso de indecência.

Curiosamente, não obstante a notoriedade dos dois autores que aqui evoco, os livros em que ambos de forma singularmente racional e lúcida dissertaram sobre o valor da simpatia são hoje obras votadas ao esquecimento, não lidas ou, numa visão optimista, muito pouco lidas até mesmo na esfera das elites. Em nome da preservação da civilização e do seu desenvolvimento talvez fosse bom reanimar o hábito de tais leituras. O convívio com os clássicos é sempre saudável e potencialmente frutuoso.

Pelas razões aqui apresentadas, o episódio da manifestação de indignação da cidadã anónima (mulher do povo em espaço vergonhosamente vedado ao povo) e a correspondente atitude dos Senhores políticos e seus lacaios parece-me possuir valor simbólico superior ao da bandeira hasteada em posição invertida. Porque ele simboliza um intolerável défice de civilização na acção governativa. É esse o défice mais nocivo; por isso mesmo, é esse défice moral e não financeiro o que mais urge combater pondo fim à actual política (des)governativa.

2 comentários:

  1. Blog POLITEIA: «E a primeira alternativa que temos de pôr em prática é a erradicação da obscena verba de mais de 9 mil milhões de euros - que está inscrita no Orçamento de Estado - para pagar o serviço da dívida.»
    .
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    Precisamos de Manifestações à Islândia: a revolução censurada pelos Media, mas vitoriosa!
    Resumo (tudo pacificamente):
    - RENEGOCIAÇÃO DA DÍVIDA;
    - Referendo, de modo a que o povo se pronuncie sobre as decisões económicas fundamentais;
    [uma sugestão: blog «fim-da-cidadania-infantil»]
    - Prisão de responsáveis pela crise;
    - Reescrita da Constituição pelos cidadãos (e os partidos políticos têm de se aguentar a um muito maior controlo por parte dos cidadãos).
    [nota: dever-se-ia consultar o know-how islandês]

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  2. Obrigado pelo comentário. Acrescento a ideia de uma urgente reforma do sistema eleitoral de modo a combater a partidocracia através da possibilidade de candidaturas independentes e da implementação de um sistema misto que acolha os círculos uninominais. Além desta, impõe-se também a reforma fiscal e o controlo público da banca.

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