Tenho para mim como certo que a prática da autêntica controvérsia – a que é ética e racionalmente orientada, fundamentada, protagonizada por gente de carácter -- é coisa salutar na vida de uma sociedade; forte sintoma de progresso civilizacional, bem como indício de higiene cultural e do bom estado de saúde de uma cultura nacional.
Ao longo da história, os grandes saltos civilizacionais estiveram associados a situações de coabitação/confronto de ideias, de concepções, de teorias, de crenças, de formas de estar na vida, de culturas diferentes ou até mesmo opostas. Daí que o aperceber-me do emergir de controvérsia, de uma nova polémica, me desperte instintivo regozijo. Mas como se sabe, é coisa que escasseia por estas bandas. António Sérgio já nos deixou há mais de 40 anos… ; e mesmo esse, com a grandeza do seu polemicar enformado em magnífica prosa de ideias (de raríssima qualidade estético-literária), não deixou de se ver incompreendido, alvo de golpes, vilipendiado até, por ter cultivado esse tão salutar hábito de exercitação intelectual das mentes, mas usança dessintonizada com a tradição cultural do luso torrão. Porém, pior, muito pior do que a lamentável míngua é a insuportável confusão entre crítica e ataque. Quando é que neste nosso solo pátrio se entenderá que uma crítica não é um ataque pessoal, não é um acto de agressão ou de perseguição contra um determinado sujeito? Quanto tempo será ainda preciso esperar pela superação dessa estúpida confusão?
O mais recente exemplo desse néscio confundir tem sido exibido nas páginas do jornal Público em torno da breve História de Portugal dirigida por Rui Ramos. Quando a obra foi publicada, creio que há cerca de três anos, logo me supus potencial comprador, satisfeito por ver aparecer novo trabalho historiográfico deste tipo, obra sintética mas sem cedência no rigor, oferecendo uma panorâmica geral da nossa história. As obras de Oliveira Marques e José Hermano Saraiva já estavam à distância de duas décadas sem que tivesse havido nenhuma outra semelhante iniciativa editorial digna de registo.
Mas como todo o bom comprador, gosto de saber ao que vou. Por isso, quando o livro apareceu nos escaparates folheei-o numa livraria, entregando-me à leitura de algumas passagens e dando especial atenção à parte dedicada ao século XX que pela primeira vez, em obra deste género, abarcava o período pós-25 de Abril. Verifiquei então que a I República era apresentada como tendo sido uma época de terror, verdadeiro regime ditatorial, e que o Estado Novo não tinha sido um regime obscenamente opressor a que a Revolução dos Cravos veio pôr cobro, até porque, afinal, foi esta que veio implementar a opressão, as arbitrariedades persecutórias por delito de opinião, e outros males depois contrariados pelos democratas de Novembro de 1975. Podia ter ficado com os cabelos em pé – espero que tenha sido essa a reacção de muitos leitores --, mas no meu caso, com o tempo que levo de permanência no Planeta, já nada me provoca espanto no plano das atitudes humanas; até porque, como Einstein, sei que a estupidez humana é infinita e já me basta o esforço quotidiano de tentar moderar a minha. Mas o não me espantar não significa indiferença, nem inacção cívica. Se assim fosse, não estaria aqui a entregar-me ao esforço da escrita empunhando a caneta como arma interventiva.
Ao ter o livro nas mãos, apercebi-me rapidamente de que, na parte dedicada ao século XX (a única aqui em causa), a leitura dos acontecimentos históricos era preponderantemente ideológica. A selecção das fontes era pouco criteriosa, acentuando a falta geral de sustentação histórica, bem como de um cuidar preblematizador. Havia pouca cientificidade no empreendimento historiográfico, ou, pelo menos, assim me pareceu poder concluir após esse breve examinar. Como tal, deixei de ser um potencial comprador e fui alimentar o meu inesgotável gosto pelos livros para outras bandas, mas levando comigo o intimo convencimento de que a coisa ia gerar polémica pública, alargada ao espaço extra-universitário.
Como se vê, foi preciso esperar bastante tempo – o que não deixa de ser sintomático.
Na aparência surgiu agora. Só que transportando a vetusta confusão viciadora que logo a condena a deixar de ser o que pretendia ser: uma verdadeira polémica, uma controvérsia elevada, elucidativa. Manuel Loff criticou o trabalho historiográfico de Rui Ramos. Este não se sentiu criticado mas sim atacado. Vai daí, ofende-se, monta barricada, arremessa pedra, assumindo papel de vítima de agressão, de perseguição pessoal. O tradicional costume… Como se tal não bastasse para comprometer toda a nobreza da prática da controvérsia, vem a terreiro Filomena Mónica para dizer que a deturpação de textos está inscrita no DNA dos comunistas, que Loff é comunista e que portanto deturpa, mente (naturalmente) e só diz disparates; e remata a prosa apelando à necessidade de silenciar esse tipo de gente, deixando até, à direcção do jornal Público, a diligente indicação de que deverá passar a recusar (ou será antes censurar?) textos assinados por esse tipo de articulistas marxistas-leninistas. Polémica para quê? Amordace-se o Loff! E Já! Eis a recomendação de quem simultaneamente confessa gostar da controvérsia. Imagine-se ao que podia chegar se não tivesse esse gostinho…
Onde está a discussão de ideias? Onde ficou o espírito crítico-racional? Onde pára o esforço de busca de elementos de sustentação histórica? Onde estão os zelos de argumentação e contra-argumentação fundamentada? Onde está o rigor metodológico? Por onde anda a racionalidade científica, a atitude científica?
Como pode haver controvérsia e enriquecimento cultural através dela se nenhum destes pressupostos que a sustentam está presente?
O que está aqui em causa é a honestidade intelectual. Eis a questão. Ou, enunciado de outro modo, talvez mais adequado, o problema maior é a quantidade de desonestidade intelectual à solta nesta nossa sociedade repleta de democratas do pensamento único. Será que devemos passar a falar de corrupção intelectual? E nesse caso, haverá forma de legislar contra o fenómeno, de lhe dar enquadramento penal, de modo a evitar a proliferação epidémica?
Na passada quarta-feira (dia 5/9/12) Fernando Rosas não se conteve perante aquilo a que chama «o inacreditável artigo de Filomena Mónica» (Público, edição de 1/8) – texto que (talvez para meu descanso estival) me escapou e só li depois dessa pertinente intervenção crítico-dilucidativa de quem é um dos principais investigadores da história do século XX português. Diz Fernando Rosas:
«[…] intelectualmente inaceitável é que alguns dos candidatos do costume a sacerdotes do “pensamento único” venham ameaçar com a excomunhão do seu mundo civilizado quem não aceitar o que eles parece quererem transformar numa espécie de cartilha “normalizadora” do salazarismo e da sua representação histórica. Peço licença para dizer que, como historiador e como cidadão, não me intimidam.»
Também a mim não me intimidam.
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
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Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarNão posso estar mais de acordo João Maria.
ResponderEliminarAinda bem que há pessoas que escrevem deste modo.Obrigado.
ResponderEliminarE o mais extraordinário é que há opinadores que nem leram esta História de R. Ramos (nem a anterior sobre a I República, de 1994, vol. 6 da H. de P. de José Mattoso, imprescindível para se verificar a diferença de perspectivas entre as duas no tratamento desta realidade histórica), nem os textos da polémica.
ResponderEliminarDesataram a defender a sua bandeira, como é habitual no «pretenso» debate público nos tempos que correm.