terça-feira, 17 de julho de 2012
Vaticano entre a Primavera e o Inverno
Este nosso 2012 é o ano do 50ºaniversário de um importante acontecimento: o Concílio Vaticano II (1962-1965) convocado por João XXIII, o grande Papa do meu tempo de vida. Até mesmo neste nosso país que dizem ser tão católico não me tenho apercebido de nenhumas especiais evocações ou comemorações do aniversário. Nem na comunicação social, nem mesmo no seio da comunidade católica. Coisa curiosa. Mas aqui ao lado, na nossa vizinha Espanha, parece haver louváveis excepções: em Santander, na Universidade Internacional Menéndez Pelayo, realizou-se na última semana do passado mês de Junho um curso de Verão dedicado ao aniversário do marcante Concílio. O director do curso, o teólogo Juan José Tamayo, afirmou nessa ocasião o seguinte: «O Concílio [Vaticano II] foi uma curta Primavera a que se seguiu um longo Inverno, que dura há mais de 40 anos”. Subscrevo, sem hesitação.
Tive conhecimento da realização do curso e da citada afirmação do teólogo Juan José Tamayo através de mais um dos bons artigos de opinião que o padre Anselmo Borges publica semanalmente (aos Sábados) no Diário de Notícias. Outra louvável excepção à regra de relativo olvido do aniversário do “enorme acontecimento”. Esse recente artigo, publicado na edição do DN de 30 de Junho de 2012, tem um muito significativo título interrogativo: “A caminho do Vaticano III?”
Com a sua habitual lucidez, o Pr. Anselmo Borges declara que Paulo VI «começou a pôr algum travão numa história de avanços e recuos» (a do Vaticano II) e que depois, com João Paulo II, «avançou a involução e pôs-se em marcha “um programa calculado de restauração”. Acentuou-se o carácter hierárquico-papal da Igreja, limitou-se a liberdade de investigação teológica, muitos teólogos foram condenados, passou-se do pensamento crítico ao pensamento único e dogmático, a Cúria readquiriu poder, os bispos conciliares foram sendo substituídos por bispos fiéis ao neoconservadorismo e ao Vaticano. § Perante a grave crise que atravessa hoje a Igreja, muitos reclamam um novo Concílio: um Vaticano III, convocado por um João XXIV». Subscrevo totalmente.
Suspeitando eu que alguns dos generosos visitantes deste blog possam estranhar que um ateu confesso se preocupe com a evocação do 50ºaniversário de um Concílio e se manifeste tão concordante com a opinião de um prelado da Igreja, apresso-me a recordar que o meu ateísmo está tão afastado do catolicismo dogmático que tem imperado a partir de Roma (oposto ao espírito crítico do Concílio Vaticano II de 1962/65), como do ateísmo dogmático -- seja ele de sabor positivista ou colorido de qualquer tipo de cientismo. O ateísmo defendido pelo autor deste blog é tão contrário ao teísmo – à afirmação, unicamente baseada na fé, da existência de um deus demiúrgico, omnisciente e omnipotente – como é contrário ao ateísmo vulgar (dogmático), peremptório no afirmar da não existência de deuses demiúrgicos e omnipotentes. É por isso, e não só por isso, que o meu ateísmo, por incrível que pareça a alguns, está muito irmanado com o pensamento de alguns sacerdotes católicos, autênticos cristãos, como Anselmo Borges. É que, por maior espanto que cause, o meu ateísmo crítico é religioso e a religiosidade desses clérigos, desconfio eu, é ateia. Daí a nossa proximidade ou afinidade. Uma compatibilidade que, como aqui se pode ver, não fica por aí: um ateu que se pretenda lúcido e atento aos aconteceres do mundo real não pode ignorar a influência da Igreja no plano social e político. Nessa precisa medida, só pode acolher com satisfação o apelo agora feito pelo Pr. Anselmo Borges para que se realize o Concílio Vaticano III, recuperando o espírito de 1962, com João XXIII. O ateísmo que defendo, ou seja, um ateísmo crítico que não se opõe à religiosidade, que não é anti-religioso, vê com agrado os esforços para que o Vaticano seja expurgado do dogmatismo serôdio em que tem estado mergulhado, e, observando de fora, apoia com entusiasmo a vontade daqueles que no seio da Igreja desejam ver convocado por um João XXIV um Concílio Vaticano III para – como diz o Pr. Anselmo e não o escriba ateu de serviço – «para resolver problemas urgentes: os escândalos no Vaticano, a questão do celibato, o lugar da mulher na Igreja, reformas das estruturas eclesiásticas, maior descentralização, uma linguagem nova para a expressão da fé, questões novas postas pela globalização e pelas novas tecnologias, tanto no domínio da comunicação como no da vida.» Como se pode não estar de acordo com necessidade de superar esses problemas ditados por uma mentalidade retrógrada? Vai a Igreja a caminho do Vaticano III? Parece ser preciso começar por mudar de Papa. O actual tem continuado «o caminho da involução». Aí estão, lê-se no artigo que tenho vindo a citar, «a restauração da Missa em latim, as negociações com os lefebvrianos, a condenação de teólogos, a centralização». Isto, só por si, é bastante revelador de como a eleição papal é um processo bem terreno e nada inspirado por qualquer omnisciência celestial. Estarão os reclamantes no interior da Igreja a conseguir abrir caminho para o Vaticano III? Esperemos que sim, pois é um bom caminho.
NOTA: Anselmo Borges é um meu ilustre “colega”; não por eu alguma vez ter sido padre (o meu ateísmo é ab ovo), mas por ele, além de padre, ser também professor de filosofia. Essa convergência profissional em nada influiu na concordância aqui expressa. Não conheço pessoalmente o Pr.Anselmo Borges. Apenas sou seu dedicado leitor, esperando um dia poder conhecê-lo.
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