Com a apresentação do pedido de demissão do primeiro-ministro está consolidada a crise política. Crise habilmente despoletada pelo próprio demissionário como último recurso, tendo em vista evitar provável derrota eleitoral gerada pelo acentuado desgaste do Governo e do partido que o suporta. Para que não se fique atulhado nas imundices da chicana partidária a atenção devia agora, mais ainda, concentrar-se no estudo das alternativas; ou, dito de outro modo, na criação de novas políticas que minimizem a injustiça social, a violentação do cidadão comum, permitindo a superação da crise económico-financeira por outras vias que não a do sistemático e imoral sacrifício dos mais frágeis, dos que já menos têm, mas que têm o acrescido azar de serem muitos, muitos mais do que os possidentes.
É evidente, ou devia ser evidente, que mudar de governo pouco ou nada interessa se essa mudança não for acompanhada de outra, essa sim essencial: a política que se faz. Porém, os diferentes intervenientes, incluindo os comentadores profissionais, continuam agarrados às questiúnculas da culpabilização, do diz tu direi eu, do empurra, da culpabilização em torno de formalismos secundários quando não estéreis. Pior: parece não terem ainda compreendido que o sistema democrático real, aquele que temos, o regime actual, exibe claros sinais de esgotamento. Percepcionar isso devia ser conta elementar do seu rosário. Não são eles os analistas profissionais, os politólogos? Fica por isso a suspeita de uma falsa cegueira alimentada por inconfessáveis interesses.
Há muito de insuportável na actual vida política. Daí termos chegado a este ponto de iminente colapso financeiro. Mas uma das coisas mais detestáveis e enfadonhas entre as muitas insuportáveis é a afirmação de que os sacrifícios contidos nos PECs são necessários e indispensáveis. Esta inverdade é matraqueada minuto a minuto, até à exaustão, como se a pobreza do pensamento político e da acção política fosse tão franciscana a ponto de só se encontrar um único caminho: o que impõe medidas como as consignadas nos vários PECs e que corresponde ao traçado pelo poderio, nacional bem como internacional. Um intenso bombardeamento discursivo abate-se permanentemente sobre o cidadão incauto com o propósito de o convencer de que as contrariedades que o afligem são uma fatalidade política, algo que terá que aceitar sob pena de males ainda maiores. Empunha-se assim a velha arma do medo que continua bem oleada.
Ninguém duvida da necessidade e até da extrema urgência em pôr ordem nas contas públicas. Temos que reduzir o deficit, travar o despesismo, cuidar da dívida externa? Claro que sim. Ninguém a tal se opõe. O problema reside na medicação prescrita. No como atacar esses males. Aí é que ninguém me convence de que só há um “como” único: o dos PECs. Não, de forma nenhuma. A pobreza da terapia política não é assim tão franciscana. Há outras soluções, outros caminhos a percorrer. Caminhos e procedimentos mais decentes. Mais respeitadores da ética política e da moral. Não fosse o tal matraquear constante, até talvez não fosse difícil perceber que o congelamento de pensões de miséria, o corte de subsídios a desempregados, a anulação de abonos de família, os cortes salariais e outras violências (para já não dizer malvadezes) sociais não são inevitabilidades a que estejamos condenados. As alternativas até nem exigem uma imensa revolução imediata. Exigem tão só que haja seriedade, ética, elevação moral no cozinhado político. É fácil verificar haver muito dinheiro por aí. As grandes empresas continuam a ter exuberantes lucros, mesmo em tempo de tão profunda crise financeira.
Não conscientes (ao que parece) do estado de decadência em que o regime se encontra, os protagonistas políticos, os analistas, os opinantes falam tranquilamente das eleições como “normal solução democrática”. Não vêem que as eleições, mantendo-se o mesmo leque de ofertas, já não satisfazem as exigências de liberdade de escolha? Esses 300 mil que desfilaram pelas ruas de várias urbes no passado dia 12 exibindo cartão vermelho, ou pelo menos amarelo, aos partidos existentes vão poder votar de modo a influir na definição de novas políticas? Esses a que Paulo Portas chamou geração pós-partidária encontrarão no boletim de voto das próximas eleições modo de expressarem a sua vontade política? Os milhões de eleitores que já há vários anos decidiram deixar de votar, ou votar em branco, por não se reconhecerem nos partidos concorrentes, vão agora considerar útil a ida às urnas? Será que vão encontrar nas próximas eleições algo que os atraia, que sintam ser forma de fazerem prevalecer a sua opinião? Ou será que vão continuar a achar inútil dar o seu voto? Que diferença efectiva pode ser trazida pelas eleições? Que novidades autênticas vão elas inscrever na nossa realidade sócio-política? Não será a resposta a estas interrogativas claro sintoma do esgotamento do regime democrático em que vivemos? Já há bastantes anos que insisto em denunciar aquilo a que chamo democracia contra os cidadãos. (Conto inserir aqui no blog um artigo de opinião que publiquei no semanário Expresso e que me parece, à distância de alguns anos, ser bem indicativo do processo de decadência do regime.)
Os situacionistas, os defensores deste esgotado regime, dirão que o eleitorado, se considerar que a política consignada nos sucessivos PECs é errada, tem plena liberdade para penalizar os partidos responsáveis por essas medidas, neste caso o PS e o PSD. Podem, p.e. votar em massa no PCP ou no BE. Mas esses mesmos situacionistas consideram que isso seria absolutamente catastrófico, representaria o fim do país, e jamais aceitariam semelhante resultado eleitoral. Com a imediata cumplicidade dos poderes da Comunidade Europeia encarregar-se-iam de anular “democraticamente” a vontade popular. Então, se as eleições servem para votar nos mesmos, nos que defendem a política dos PECs, para que servem elas? Para limar caprichos partidários? Para satisfazer vaidades pessoais de líderes políticos?
Eleições que têm elevado custo financeiro (cerca de 20 milhões de Euros) para saber se é o PS ou o PSD quem tem mais votos? Mudar, eventualmente, a cor do Governo para prosseguir, no essencial, a mesma política, a dos PECs? Haja alguma racionalidade e bom senso. Não estamos em tempo propício a brincadeiras de gincana político-partidária.
Não seria então preferível o Presidente da República promover uma mediação que permitisse aos dois partidos gémeos chegarem a um entendimento mínimo? Sempre se poupava tempo e dinheiro, o que, convenhamos, em tempos de aguda crise não é pouco. Quem se opõe a essa política terá que continuar a ir para a rua, usando todas as formas de legítimo protesto contra essa prática e procurando alterar o regime de modo a termos uma democracia que não seja uma democracia contra os cidadãos.
NOTA: Há poucos dias, Victor Ramalho (do PS) e Ângelo Correia (do PSD) mostraram publicamente, diante das câmaras de televisão da SIC-Notícias, como seria fácil chegar a um entendimento, caso os negociadores sejam pessoas sérias e com elevação intelectual. Até mostraram que esse entendimento fácil traria, também com naturalidade, alguns benefícios, na medida em que assentava numa recusa de algumas medidas moralmente obscenas presentes no PEC 4 e nos anteriores.
sexta-feira, 25 de março de 2011
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