No passado Sábado, dia 12 de Março (por pouco não era outro memorável 11…), voltou a pairar na rua o voluptuoso aroma da espontaneidade popular afectuosamente retido na memória de todos aqueles que tiveram a incomparável felicidade de viver os tempos da Revolução dos Cravos, o PREC de 1974/75. Há longos anos que esse encantador aroma não se fazia sentir. A manif de Sábado foi diferente do agora habitual. Muito diferente. Logo por isso bem interessante. Engano total o daqueles comentadores políticos de serviço, como o Pedro Marques Lopes, que disseram não ter passado de uma manifestação orquestrada a partir das sedes de alguns partidos. Tais comentadores, para além de se revelarem observadores inexperientes, devem ter feito como o Oscar Wilde dizia em relação à apreciação de livros: «nunca leio os livros sobre os quais tenho que fazer uma crítica, para não ser influenciado« (cito de memória). Só que para quem, como o aqui escrevente, tenha longa experiência de manifs, tanto como manifestante como co-organizador, é fácil detectar o apartidarismo – e até algum claro antipartidarismo – presente nesta de que se fala. Chame-se-lhe influência, feeling ou o que lhe quiserem chamar; a verdade é que esta manif foi, na sua concretização prática, exactamente aquilo que os seus jovens e inexperientes promotores quiseram que ela fosse: uma acção de massas político-social apartidária, laica e ordeira. Uma acção política apartidária – sublinhe-se, de modo a evitar a frequente confusão entre ter carácter político e partidarismo. A coisa anunciada foi a apresentada, de facto. Algo só por si digno de louvor neste mundo saturado de publicidades enganosas. Parabéns aos promotores.
Por enquanto, e se bem sei assimilar o acontecido, a nova geração de humilhados e ofendidos desceu à rua não tanto para atacar, senão que para avisar. Avisar os senhores da política, os governantes actuais bem como os que actualmente querem vir a ser governantes, e em geral todos os que são profissionais do ramo político, avisar que não podem nem devem esses senhores continuar a fazer a política que têm feito, nem a estar na política do modo como têm estado. Aí dos políticos que não forem capazes, ou não quiserem, reflectir sobre a mensagem deixada nas ruas de 11 cidades lusas nas últimas horas. O futuro político, bem como o próximo futuro desses profissionais da política, passa em boa medida pela capacidade que tiverem de assimilar a mensagem depositada, agindo depois em conformidade com as elações extraídas, alterando comportamentos, corrigindo defeitos, afinando a decência, construindo novas políticas.
Para quem não for politicamente ingénuo e tiver estado atento ao germinar do protesto da “geração à rasca”, é evidente que à unanimidade na vertente da denúncia do que se considera errado não corresponde equivalente dose de consenso ideológico na vertente da construção de alternativas. Desequilíbrio comprometedor de qualquer tipo de acção transformadora consequente. Essa acção exige, sempre exigiu, arquitectura ideológica, porque é esta que confere sentido à acção. Mas os começos são assim. Além disso, neste caso, parece-me que, independentemente do vago ideológico, de todas as indefinições programáticas, das indeterminações várias quanto às soluções a apresentar, estão já criadas condições para a imediata formalização de um movimento político de cidadania que confira maior consistência organizativa aos anseios expressos. Nesse sentido lavro já o meu vivo apelo. Já agora, acrescento mais: perante a notória ausência de criatividade audaz, diferenciadora, alternativa por parte da actual direcção do PSD, afigura-se-me interessante a iniciativa de Pedro Santana Lopes de criar um movimento tendente à próxima edificação de novo partido que, à direita, possa trazer arejamento político. Sendo eu, como é público e notório, velho bicho de esquerda, não serei, em princípio ou provavelmente, seu directo apoiante; mas em gesto que reputo de política e intelectualmente saudável, saúdo com sincera satisfação essa iniciativa, caso se venha a concretizar. Vou mais longe: por muito que choque os meus “familiares” políticos, nem mesmo excluo liminarmente a hipótese de poder apoiar em circunstância conjuntural concreta um líder proveniente da área da direita parlamentar. Em outra circunstância procurarei esclarecer o porquê dessa hipótese que sei tanto chocar muito boa gente que comigo anda à esquerda.
Tema para reflexão: foi nítido para quem esteve na manifestação o forte sentimento de descrença na paleta partidária actualmente existente. Se assim é, como é que estes milhares de eleitores podem participar em próximas eleições se a oferta, se as possibilidades de escolha política continuarem a ser as mesmas? Como se pode traduzir em voto o sentimento dos manifestantes de Sábado já descrentes dos partidos tradicionais? Como devem eles proceder? De acordo com o sistema democrático vigente as soluções governativas definem-se em função de resultados eleitorais; sendo assim, é conveniente, para já não dizer necessário ou obrigatório, em nome do enriquecimento democrático, que todo o eleitor encontre no boletim de voto a possibilidade de expressar a sua vontade política. Ou seja, uma opção que traduza, no essencial, a sua vontade, a sua concepção do mundo. Causa maior da larga abstenção parece residir na ausência de um maior leque de opções. Para que as próximas eleições (quase de certeza antecipadas) possam ser acto democrático verdadeiro, e para que possam não ser inúteis, impõe-se que o boletim de voto apresente novas possibilidades, nomeadamente a da candidatura uninominal. O apartidarismo que marcou forte presença nas ruas no passado fim-de-semana tem que encontrar espaço eleitoral, coisa algo paradoxal no seio do sistema. Também por isso o sistema tem que mudar, em nome dos próprios valores democráticos.
No final da manif, já à entrada do Rossio, encontrei o Carlos Antunes, alguém que a “geração à rasca” já não identifica. Para os que não se lembrem, trata-se do Carlos Antunes antifascista, líder, com Isabel do Carmo, das Brigadas Revolucionárias, e que antes do 25 de Abril de 1974 protagonizou acções directas contra o regime. No Sábado, de novo na rua, de novo em protesto, estava com um lindo sorriso de criança estampado no rosto, felicíssimo por poder respirar outra vez aquele perfume PREC. «Alguma coisa há-de sair daqui…» disse-me à despedida, com claro optimismo. Bonito. Tão bonito que não resisti à tentação de deixar este registo.
Isto está engraçado. Começa a estar como eu gosto.
segunda-feira, 14 de março de 2011
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Ah, pois...
ResponderEliminarAo seu gosto e que eu pessoalmente não aprecio. Enfim, sou de um partido tradicional...
Nada a esperar de mim, afinal!
Caro leitor Rogério Pereira,
ResponderEliminarNão diga que nada se espera de si. Bem pelo contrário. Se eu gosto destes momentos é porque eles alargam o espaço para a criatividade livre, onde todos podem e devem intervir com a sua inteligência e competências. Não vejo nenhum inconveniente em que seja membro de um partido tradicional, nem sou, nem nunca fui contra a existência dos partidos. Bem pelo contrário. A minha biografia, bem como a minha actividade pública ao longo de décadas são bem reveladoras disso. Porém, parece-me evidente existir hoje um grande número de pessoas que não se reconhece nos partidos que temos na AR. A manif do dia 12 é disso prova inequívoca. Os partidos não podem ter o monopólio da governação. O acto eleitoral tem que ser repensado.
Obrigado pela sua atenção ao meu texto e pelo comentário.
Engraçado, já eu cruzei-me com Isabel do Carmo, acabada de chegar ao Marquês de Pombal, ainda com o sorriso que se estampou no meu rosto e com a pele de galinha que me acompanhou avenida abaixo... um cheiro a mudança! um acordar...lindo! E acompanhada pelos meus filhos (de 20 e 21 anos) e pela minha mãe... memorável.
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