Perdi mais um Amigo: o actor e encenador Armando Caldas. Faleceu hoje, dia
13 de Março. Recebi a triste notícia já ao fim do dia. Em sua memória, tomo a
iniciativa de colocar aqui um texto que sobre ele escrevi em 2012 e que foi
publicado no livro "Teatro, como quem respira", editado em 2013.
TEXTO
Armando Caldas
Um exemplo de dedicação à Cultura
A mais recuada memória que guardo do Armando data de um tempo salazarento
em que na nossa Pátria – achacada de neotomismo ajesuitado, de fascismo
provinciano, de tacanhez preconceituosa, de embriaguezes românticas – se
promoviam analfabetismos de vária feição, incluindo o artístico-cultural, com o
consciente propósito ideológico de injectar dependências no cidadão comum que
se desejava submisso, resignado, passivo em face do poderio e seus
inconfessáveis interesses. Precisando a datação dessa primeira memoração,
situo-a no final da década se sessenta ou no início dos anos setenta do já
passado século “dos extremos”, como lhe chamou Hobsbawm, quando, no despontar
da chamada Primavera marcelista, me chegou a notícia da criação, em Algés, do
“1ºActo - Clube de Teatro”, essa influente iniciativa cultural, mas também
ostensiva e valentemente política, que reuniu alguma da nossa melhor gente,
parte do nosso escol, contando com a participação de alguns dos mais lúcidos
espíritos que povoavam o Reino cadaveroso, incluindo um amigo comum que por esse
então nem eu nem o Armando (nem mesmo ele próprio) sonhávamos ir tornar-se,
décadas mais tarde, o primeiro Nobel da possante literatura lusíada, o nosso
saudoso José Saramago.
A fundação do 1ºActo teve, nessa época, e num plano mais pessoal, directa
influência na minha vida, por ter sido factor no moldar da minha acção cívica,
incentivando-me a ter o atrevido gesto de, em 1972/73, e imbuído do mesmo
espírito de resistência, criar um pequeno grupo de teatro amador, também ele
sedeado no conselho de Oeiras: o Grupo de Teatro Intervenção, integrado na
estrutura institucional do Grupo Académico – associação cultural de jovens
estudantes fundada em 1970 e com forte implantação no meio estudantil dos
concelhos de Oeiras, Cascais e Cintra (nessa altura servidos por uma única
macro escola, o Liceu Nacional de Oeiras, hoje Escola Secundária Sebastião e
Silva). É isto revelador de que só pelo facto de existir, o 1º Acto já era
significativo factor de alteração da ambiência cultural, abrindo espaço para
iniciativas congéneres. Concorreu assim, de forma indirecta, para que pudessem
germinar outros projectos interventivos. Legado geralmente não considerado mas
efectivo e, por isso mesmo, também merecedor de reconhecimento.
Trago à colação estes aconteceres por estarem eles intimamente ligados à
origem da minha relação pessoal com o Armando Caldas. Ainda agora, sempre que
falo deste Amigo, ou nele penso, algo nas profundezas subconscientes da minha
psique amarra a pessoa à imagem mental daquela tão louvável obra cultural.
Reflectindo sobre a perenidade dessa instintiva associação mental, concluo ser
ela bem natural e até lógica. Como diria o poeta, «há sempre alguém que diz
Não», e o nosso Armando Caldas tem sido, ao longo da vida, alguém que,
inequívoca e incessantemente tem sabido dizer Não à anticultura, à indigência
artística, à mentalidade reaccionária, bem como às variegadas formas de
injustiça social que invariavelmente lhe estão associadas. Foi nas trincheiras
desse combate que nos encontrámos, animados por ideais comuns, tendo-se
construído aí uma amizade que perdura.
A circunstância concreta em que conheci pessoalmente o Armando, iniciando
um trabalho de mútua colaboração, ocorreu em momento histórico maior: o do
derrube da Ditadura e do despoletar do PREC. Deliciosos tempos de criatividade
colectiva de uma Nação ávida de mudança. Ambos sabíamos que o combate que
tínhamos abraçado, o da transformação da sociedade humana, associado à
semeadura de Cultura e Arte, era labor infindável – tal como o semear agrícola,
essa infinita acção cíclica do cultivo da terra. Com o “25 de Abril” o corpo
societal metamorfoseara-se profundamente, as condições passaram a ser outras,
mas como Ingmar Bergman nos disse em estética linguagem cinematográfica o ovo
da serpente é perene e o combate tem que ser continuado. Em certa medida, a
sociedade democratizada pelos ventos de Abril até convocava renovado afã,
impunha a abertura de novas trincheiras, gerando, nessa medida, maior
responsabilidade cívica. É nessa singular conjuntura histórica que, na minha
qualidade de jovem presidente de uma associação cultural, o já citado Grupo
Académico (em que tive a minha primeira experiência dirigente), tomei a
iniciativa de organizar, no salão/teatro do Instituto Pr.António de Oliveira
(em Caxias), uma sessão de Canto Livre que reuniu numerosíssimo público e que
contou com a participação de vários artistas do chamado “canto de intervenção”
antes amordaçado pela censura. Esse tipo de realização, tão típico dessa época
revolucionária, exigia a presença de competente apresentador, elemento
condicionante de toda a dinâmica do espectáculo e, consequentemente, do seu
desejável sucesso. Foi para mim fácil decidir endereçar ao Armando Caldas o
convite para assumir essa importante função. Quem melhor do que ele para o
fazer? E foi assim que verdadeiramente nos conhecemos, em momento de activo
combate pela liberdade, pelo livre cultivo do gosto artístico e, em geral, em
prole da transformação progressista da realidade social.
Há, na acção cultural de Armando Caldas, algo a que atribuo especial
importância e que, por essa razão, não posso nem quero deixar de aqui
enfatizar. Refiro-me à coerência de uma atitude pautada pelo espírito de
independência e pela fidelidade a uma Weltanschauung; atitude sustentadora de uma
acção cívico-cultural em que nunca houve cedências à avassaladora moda da
cultura light, ou àquilo a que também tenho chamado a cultura zapping, com o
seu horror ao aprofundamento, ao racional, ao rigor, à seriedade intelectual.
Tendência corrosiva da autêntica Cultura. Elemento, a meu ver, impeditivo da
edificação de uma verdadeira tradição de Alta Cultura, suporte indispensável do
progresso civilizacional. Neste tempo presente em que se tem visto triunfar a
mentalidade do light, em que no viver societal o apelo ao superficial, ao
ligeiro, ao soft, ao comercial, ao popularucho se tornou constante e até mesmo
exuberante, o Intervalo Grupo de Teatro, sob a lúcida direcção do Armando
Caldas, tem sido vivo exemplo de não-abdicação intelectual, de recusa de cedência
ideológica a uma medíocre corrente dominante, mostrando, do mesmo passo, como o
sucesso popular é natural efeito da boa vulgarização das grandes criações
artísticas. A dignidade de produções, a que tive o prazer de assistir, como as
de A Gaivota de Tchekhov, de D. Quixote, de O Tinteiro de Carlos Muñiz, bem
como a regular presença em cartaz de peças com a assinatura dos maiores
dramaturgos (Shakespeare, Molière, Beaumarchais, Tchekhov) são a demonstração
clara da possibilidade de coabitação do sucesso popular com a erudição e de
como se deve criar o bom gosto artístico. Um exemplo que adquire ainda maior
relevância em momento histórico particularmente grave, como é este nosso agora,
em que valores civilizacionais basilares se vêm ameaçados, incluindo o da
elevação cultural, e em que ressurge uma agressiva política governativa
anticultura. Bastaria o perfil dessa atitude/acção que agora procurei pôr em
evidência para atestar da justeza da homenagem consubstanciada neste volume.
Parabéns Armando, e obrigado.
João Maria de Freitas Branco
Caxias, 4 de Novembro
de 2012
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