Armando Caldas
Um exemplo de dedicação à Cultura
Um exemplo de dedicação à Cultura
A mais recuada memória que guardo
do Armando data de um tempo salazarento em que na nossa Pátria – achacada de
neotomismo ajesuitado, de fascismo provinciano, de tacanhez preconceituosa, de
embriaguezes românticas – se promoviam analfabetismos de vária feição,
incluindo o artístico-cultural, com o consciente propósito ideológico de
injectar dependências no cidadão comum que se desejava submisso, resignado,
passivo em face do poderio e seus inconfessáveis interesses. Precisando a datação
dessa primeira memoração, situo-a no final da década se sessenta ou no início
dos anos setenta do já passado século “dos extremos”, como lhe chamou Hobsbawm,
quando, no despontar da chamada Primavera marcelista, me chegou a notícia da criação,
em Algés, do “1ºActo - Clube de Teatro”, essa influente iniciativa cultural, mas
também ostensiva e valentemente política, que reuniu alguma da nossa melhor
gente, parte do nosso escol, contando com a participação de alguns dos mais
lúcidos espíritos que povoavam o Reino cadaveroso, incluindo um amigo comum que
por esse então nem eu nem o Armando (nem mesmo ele próprio) sonhávamos ir
tornar-se, décadas mais tarde, o primeiro Nobel da possante literatura lusíada,
o nosso saudoso José Saramago.
A fundação do 1ºActo teve, nessa
época, e num plano mais pessoal, directa influência na minha vida, por ter sido
factor no moldar da minha acção cívica, incentivando-me a ter o atrevido gesto
de, em 1972/73, e imbuído do mesmo espírito de resistência, criar um pequeno
grupo de teatro amador, também ele sedeado no conselho de Oeiras: o Grupo de Teatro
Intervenção, integrado na estrutura institucional do Grupo Académico –
associação cultural de jovens estudantes fundada em 1970 e com forte
implantação no meio estudantil dos concelhos de Oeiras, Cascais e Cintra (nessa
altura servidos por uma única macro escola, o Liceu Nacional de Oeiras, hoje
Escola Secundária Sebastião e Silva). É isto revelador de que só pelo facto de
existir, o 1º Acto já era significativo factor de alteração da ambiência
cultural, abrindo espaço para iniciativas congéneres. Concorreu assim, de forma
indirecta, para que pudessem germinar outros projectos interventivos. Legado
geralmente não considerado mas efectivo e, por isso mesmo, também merecedor de
reconhecimento.
Trago à colação estes aconteceres
por estarem eles intimamente ligados à origem da minha relação pessoal com o
Armando Caldas. Ainda agora, sempre que falo deste Amigo, ou nele penso, algo
nas profundezas subconscientes da minha psique amarra a pessoa à imagem mental
daquela tão louvável obra cultural. Reflectindo sobre a perenidade dessa instintiva
associação mental, concluo ser ela bem natural e até lógica. Como diria o
poeta, «há sempre alguém que diz Não», e o nosso Armando Caldas tem sido, ao
longo da vida, alguém que, inequívoca e incessantemente tem sabido dizer Não à
anticultura, à indigência artística, à mentalidade reaccionária, bem como às
variegadas formas de injustiça social que invariavelmente lhe estão associadas.
Foi nas trincheiras desse combate que nos encontrámos, animados por ideais
comuns, tendo-se construído aí uma amizade que perdura.
A circunstância concreta em que
conheci pessoalmente o Armando, iniciando um trabalho de mútua colaboração,
ocorreu em momento histórico maior: o do derrube da Ditadura e do despoletar do
PREC. Deliciosos tempos de criatividade colectiva de uma Nação ávida de
mudança. Ambos sabíamos que o combate que tínhamos abraçado, o da transformação
da sociedade humana, associado à semeadura de Cultura e Arte, era labor infindável
– tal como o semear agrícola, essa infinita acção cíclica do cultivo da terra. Com
o “25 de Abril” o corpo societal metamorfoseara-se profundamente, as condições
passaram a ser outras, mas como Ingmar Bergman nos disse em estética linguagem
cinematográfica o ovo da serpente é perene e o combate tem que ser continuado.
Em certa medida, a sociedade democratizada pelos ventos de Abril até convocava
renovado afã, impunha a abertura de novas trincheiras, gerando, nessa medida,
maior responsabilidade cívica. É nessa singular conjuntura histórica que, na
minha qualidade de jovem presidente de uma associação cultural, o já citado Grupo
Académico (em que tive a minha primeira experiência dirigente), tomei a
iniciativa de organizar, no salão/teatro do Instituto Pr.António de Oliveira
(em Caxias), uma sessão de Canto Livre que reuniu numerosíssimo público e que
contou com a participação de vários artistas do chamado “canto de intervenção”
antes amordaçado pela censura. Esse tipo de realização, tão típico dessa época
revolucionária, exigia a presença de competente apresentador, elemento
condicionante de toda a dinâmica do espectáculo e, consequentemente, do seu desejável
sucesso. Foi para mim fácil decidir endereçar ao Armando Caldas o convite para
assumir essa importante função. Quem melhor do que ele para o fazer? E foi
assim que verdadeiramente nos conhecemos, em momento de activo combate pela
liberdade, pelo livre cultivo do gosto artístico e, em geral, em prole da
transformação progressista da realidade social.
Há, na acção cultural de Armando
Caldas, algo a que atribuo especial importância e que, por essa razão, não
posso nem quero deixar de aqui enfatizar. Refiro-me à coerência de uma atitude
pautada pelo espírito de independência e pela fidelidade a uma Weltanschauung; atitude sustentadora de
uma acção cívico-cultural em que nunca houve cedências à avassaladora moda da
cultura light, ou àquilo a que também
tenho chamado a cultura zapping, com
o seu horror ao aprofundamento, ao racional, ao rigor, à seriedade intelectual.
Tendência corrosiva da autêntica Cultura. Elemento, a meu ver, impeditivo da
edificação de uma verdadeira tradição de Alta Cultura, suporte indispensável do
progresso civilizacional. Neste tempo presente em que se tem visto triunfar a
mentalidade do light, em que no viver
societal o apelo ao superficial, ao ligeiro, ao soft, ao comercial, ao popularucho se tornou constante e até mesmo exuberante,
o Intervalo Grupo de Teatro, sob a lúcida direcção do Armando Caldas, tem sido
vivo exemplo de não-abdicação intelectual, de recusa de cedência ideológica a
uma medíocre corrente dominante, mostrando, do mesmo passo, como o sucesso
popular é natural efeito da boa vulgarização das grandes criações artísticas. A
dignidade de produções, a que tive o prazer de assistir, como as de A Gaivota de Tchekhov, de D. Quixote, de O Tinteiro de Carlos Muñiz, bem como a regular presença em cartaz
de peças com a assinatura dos maiores dramaturgos (Shakespeare, Molière,
Beaumarchais, Tchekhov) são a demonstração clara da possibilidade de coabitação
do sucesso popular com a erudição e de como se deve criar o bom gosto
artístico. Um exemplo que adquire ainda maior relevância em momento histórico
particularmente grave, como é este nosso agora, em que valores civilizacionais
basilares se vêem ameaçados, incluindo o da elevação cultural, e em que
ressurge uma agressiva política governativa anticultura. Bastaria o perfil
dessa atitude/acção que agora procurei pôr em evidência para atestar da justeza
da homenagem consubstanciada neste volume. Parabéns Armando, e obrigado.
João Maria de Freitas-Branco
Caxias, 4 de Novembro de 2012
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