Partilho aqui no blog um lúcido texto do Frederico Lourenço colocado hoje no Facebook. Trata-se de uma muito esclarecedora reflexão pessoal. Bem demonstrativa da
insustentabilidade do discurso oficial da Igreja, ou seja, do dogmatismo católico
institucionalizado. É esta, também, uma forma de agradecer ao amigo Frederico o seu esforço de dilucidação.
PALAVRAS «DITAS» POR JESUS: O CASO DO DIVÓRCIO (Evangelho de Marcos)
Muitas pessoas me
escreveram a propósito do texto que publiquei sobre a questão de quem comunga
na missa «por sua conta e risco», ou seja, sem estar, do ponto de vista da
Igreja Católica, em condições legítimas para comungar. Como o caso de que falei
envolvia um divorciado muito especial para mim (o meu pai) e a minha própria
situação de homossexual casado com um homem, o teor de muitas mensagens andou à
volta da ideia de que «Jesus nunca disse que a confissão era obrigatória» ou,
até, «Jesus nunca disse que os divorciados não podiam comungar».
Esta vontade que
muitas pessoas têm de sustentar a sua própria atitude em relação ao catolicismo
(ou outra forma de cristianismo) com base naquilo que Jesus «disse» é algo com
que me solidarizo, porque pessoalmente o que me chama e interessa no
cristianismo não é o artifício teológico-dogmático da ortodoxia eclesiástica,
mas sim algo que se resume muito simplesmente a uma só palavra: Jesus. Também
sou alguém que, como afirmou um católico que me escreveu há dias, dá mais valor
ao que «Jesus disse» do que àquilo que «a igreja diz».
Agora: como saber o
que Jesus disse? Um problema complexo que confronta quem prefere seguir Jesus a
seguir a igreja é, de facto, conseguir chegar àquilo que Jesus terá realmente
dito. Trata-se de uma problemática fascinante no âmbito do estudo
histórico-analítico do Novo Testamento – e digo «histórico-analítico» pela
razão simples de que, do ponto de vista da Fé, todas as palavras colocadas
pelos evangelistas na boca de Jesus são, sem mais problemas, palavras de Jesus.
No entanto, do ponto
de vista histórico-analítico, a situação não é assim tão simples. Para dar uma
ideia daquilo em que consiste esta problemática, vou partilhar convosco algumas
reflexões (esta é a primeira) sobre as palavras ditas por Jesus acerca do
divórcio nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. E refiro estes três
evangelhos porque, no Evangelho de João, Jesus não profere uma única palavra
acerca do divórcio. É um tema ausente desse mais espiritual dos quatro
evangelhos. Se na Bíblia existisse apenas o Evangelho de João, não havia motivo
para os cristãos não se divorciarem. (Bom, haveria a considerar o que escreve
Paulo em 1 Coríntios 7:12-16 - mas Paulo é necessariamente outra conversa...)
Nos evangelhos de
Marcos, Mateus e Lucas, Jesus fala, de facto, no divórcio – ou é provocado, por
fariseus que o querem apanhar em falso, a falar sobre esse tema. As palavras
que Jesus profere a propósito do divórcio são, no entanto, diferentes nos três
evangelhos em que ele fala de divórcio. Além de diferentes, levantam o problema
de, em parte, serem palavras que o Jesus real, o homem de Nazaré, não pode ter
dito. São palavras que lhe foram postas na boca por cristãos que precisavam que
ele as tivesse dito. Pois a probabilidade histórica de que ele as tivesse dito
é incerta.
Comecemos pelo
evangelho tido pelo estudo universitário do Novo Testamento como o mais antigo
dos quatro: o Evangelho de Marcos. Estamos no capítulo 10:2-12. O episódio
divide-se em dois momentos: primeiro, uns fariseus perguntam a Jesus, «pondo-o
à prova», se é lícito ao homem divorciar-se da mulher. Jesus responde com uma pergunta:
«o que vos preceituou Moisés?» E eles dão a resposta de que Moisés preceituou
que o marido podia redigir um documento de repúdio e divorciar-se da mulher.
Portanto, aquilo em
que consiste a armadilha dos fariseus é colocarem Jesus numa situação em que
ele vai ser obrigado a ou tomar partido a favor de um preceito legitimado pelo
judaísmo ou ir escandalosamente contra aquilo que o judaísmo permite e
preceitua – um pouco à semelhança das armadilhas lançadas a Jesus em relação ao
sábado (e podemos comparar, no apócrifo Evangelho de Tomé, a pergunta dos
discípulos sobre a obrigatoriedade da circuncisão).
Em relação ao
divórcio, a resposta de Jesus vai no sentido de contrariar o que o judaísmo
permite. A razão da permissibilidade do divórcio na lei de Moisés – diz Jesus –
é a «sklêrokardía» (σκληροκαρδία) do homem, isto é, o «coração esclerosado», o
«coração duro» do homem. Ele está a referir-se ao marido que, na sua dureza de
coração, se divorcia da mulher para casar com outra (o que está certamente aqui
implícito é o problema de não haver filhos no casamento, por esterilidade; a
questão do divórcio por adultério só é explícita no evangelho de Mateus),
deixando a divorciada numa situação de desamparo e de vulnerabilidade. O que
Jesus diz tem que ver com a sociedade judaica da sua época. E Jesus fala contra
o divórcio aqui por compaixão para com o drama da mulher preterida.
Para sustentar o seu
ponto de vista contra os fariseus, Jesus socorre-se da própria Escritura
judaica e profere duas citações do livro de Génesis: «macho e fêmea os fez»
(1:27) e «serão os dois uma só carne» (2:24).
Para o estudioso
moderno da Bíblia, estas duas citações fazem parte de duas secções
incompatíveis entre si do livro de Génesis: Génesis 1 e Génesis 2. A primeira
citação de Jesus pressupõe que Deus criou homem e mulher de uma só vez: a raça
humana começou logo com os dois géneros (é essa a visão de Génesis 1). Em
Génesis 2, Deus cria primeiro Adão – e depois cria a mulher como «afterthought»
secundário, a partir da costela de Adão. Homem e mulher não parecem ser a mesma
entidade ontológica em Génesis 1 como são em Génesis 2.
Seja como for, a chave
da declaração pública acerca do divórcio na passagem de Marcos é a frase
bombástica de Jesus (tão bombástica como «o sábado foi feito para o homem e não
o homem para o sábado»): trata-se de «o que Deus uniu não separe o ser humano».
No segundo momento da
discussão sobre o divórcio em Marcos, Jesus está em casa com os discípulos,
que, decerto ainda zonzos depois da bomba que ouviram, o interrogam de novo
sobre o assunto. Aos discípulos, Jesus diz o seguinte: «quem se divorciar da
sua mulher e casar com outra, comete adultério em relação a ela; e se ela,
tendo-se divorciado do marido, casar com outro, comete adultério» (Marcos
10:11-12).
O enfoque das palavras
de Jesus é diferente na declaração pública e na declaração privada. Na
primeira, ele condena somente o divórcio, deixando implícito o seu entendimento
de que o divórcio constitui uma crueldade do marido em relação à mulher; na
segunda, o enfoque da condenação de Jesus está no re-casamento, descrevendo-o
como adultério.
Das duas declarações –
a pública e a privada – a que tem mais probabilidade histórica de ter sido dita
pelo Jesus real é a pública.
A declaração privada,
tal como a lemos em Marcos, o evangelho mais antigo, contém palavras que Jesus
não pode ter dito. A dúvida levanta-se sobretudo em relação à noção impensável
na sociedade em que Jesus vivia de que uma mulher se pudesse divorciar do seu
marido. Isso era permitido às mulheres em Roma, mas não à mulheres da sociedade
judaica de Jesus. Não podem ser palavras ditas por Jesus: por conseguinte,
mesmo no mais antigo dos evangelhos, estamos a ler palavras postas na boca dele
que ele não disse. São palavras que eram necessárias a cristãos posteriores em
Roma e noutros locais do império, mas não podem ser palavras ditas por Jesus.
Por outro lado, as
palavras ditas em privado aos discípulos sobre o divórcio no Evangelho de
Marcos têm pequenas e grandes oscilações nos muitos manuscritos que nos
transmitem este evangelho. Nos manuscritos do século IV (Codex Sinaiticus,
Codex Vaticanus e outros), as palavras de Jesus são as que apresentei acima:
«quem se divorciar da sua mulher e casar com outra, comete adultério em relação
a ela; e se ela, tendo-se divorciado do marido, casar com outro, comete
adultério» (Marcos 10:11-12).
No entanto, existe um
manuscrito do século V que nos dá a ler as palavras sob esta forma: «se uma
mulher se divorciar do marido dela e casar com outro, comete adultério; e se um
homem se divorciar da mulher, comete adultério».
As palavras de Jesus,
tal como nos são transmitidas por este manuscrito do século V, destacam em
primeiro lugar a mulher que se divorcia do marido e casa com outro (e põem o
homem em segundo lugar, ao contrário dos manuscritos do século IV). Além do
mais, as palavras registadas nesse manuscrito dizem-nos esta coisa
extraordinária: o homem, pelo mero facto de se divorciar da mulher, já é por
esse motivo um adúltero. Sinceramente, não me parece que era isso que o Jesus
histórico quis dizer.
Resumindo: as palavras
ditas por Jesus aos fariseus («o que Deus uniu não separe o ser humano») têm a
marca do tipo de declaração bombástica e provocatória, marca essa que é o
timbre de asserções de Jesus que poderão eventualmente ser autênticas. A razão
da condenação do divórcio prende-se com a preocupação de Jesus em proteger o
elo mais fraco no casamento tal como era entendido até ao século XX: a mulher.
Quanto às palavras ditas por Jesus aos discípulos em Marcos 10:11-12, estão
feridas de diferentes graus de improbabilidade. Além da oscilação textual nos
manuscritos, não é plausível que Marcos 10:12 corresponda a algo que Jesus
realmente tenha dito; são palavras que lhe foram postas na boca por Marcos.
Na imagem do
evangelista Marcos que veem na fotografia (tirada pelo meu marido André na
Basílica de São Pedro), vemos o evangelista segurando uma pena que, segundo se
diz, mede mais de 2 metros! É uma pena bem alta – talvez necessária a quem, em
várias passagens do seu texto, escreveu aquilo a que se pode chamar em inglês
«a tall story».
Frederico Loureço, Facebook, 27 de Janeiro de 2019
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