Estamos a viver um tempo
politicamente interessante, mobilizador, cheio de atractivos, mas também muito perigoso,
porque se adensam os riscos de total definhamento da democracia. Como pano de
fundo temos uma séria crise da democracia que se tem vindo a intensificar com
assustadora celeridade. A estruturação de uma ditadura financeira na Europa
tornou-se evidente com o caso Grécia. Já não é necessária grande perspicácia
política para compreender que a perda de soberania desagua na extinção da
democracia efectiva no interior de cada pátria europeia.
No espaço nacional, emergiu, de
modo súbito, uma situação inédita na história desta nossa 2ªRepública: a
hipótese de concretização da tão sonhada e apregoada unidade de esquerda. Este
surpreendente agitar de águas em torno da procura de solução governativa,
motivado pela lúcida atitude do PCP de viabilizar um governo minoritário do PS
como primeiro gesto destinado a travar a onda antidemocrática gerada pela tão
em voga ideologia do austeritarismo, parece-me
concorrer para um promissor reavivar da chama da democracia.
Actuando de forma aparentemente
concertada, PCP e BE desferem forte e certeiro golpe na tão nefasta quanto
reaccionariamente empobrecedora política do “não há alternativa”. Toda esta agitação
tem tido, para mim, entre outras, a virtude de possuir especial utilidade
prática: pôr a nu o falso socialismo de muitos socialistas. Fez cair as velhas máscaras,
deixando bem expostos os perfis ideológicos reais de gente que tem passado a
vida a fingir que é de esquerda, que é socialista, que é contrário aos
interesses do universo direitista da coligação PaF, quando na realidade
pertence exactamente ao mesmo universo de interesses. Uma consolidada irmandade.
O exemplo mais exuberante deste
útil efeito imediato das negociações do PS com os partidos situados à sua
esquerda foi-nos oferecido pelo ex e pelo actual líder de uma central sindical,
a UGT. João Proença e Carlos Silva apressaram-se a vir a terreiro manifestar o
seu pavor. Assumiram protagonismo de solistas num coro de sujeitos mascarados
de socialistas, onde melodiam sob a batuta de destacados dirigentes do PS, e
até de putativos candidatos ao lugar de secretário-geral do partido. Um coro
que agora faz triunfante tournée pelos canais televisivos, bem como por todo o
restante território da comunicação social.
Após os mais agressivos quatro anos de política
contra o bem-estar dos trabalhadores, depois de uma política que gerou a maior transferência
de riqueza do trabalho para o capital de que há memória no Portugal
contemporâneo, estes sujeitos utilizadores do disfarce de representantes dos
trabalhadores, exemplo daquilo a que chamo o kitsch político, vêm afirmar que a única boa solução é manter no
poder os autores dessa política, através de uma aliança do PS com a coligação de
direita. O que, a concretizar-se, consistiria também grave traição ao sentido
de voto dos socialistas autênticos, que foram votar no passado dia 4 de Outubro
com o objectivo prioritário de varrer do poder esses inimigos dos trabalhadores
e da própria democracia, pois o discurso do “não há alternativa” é, por
definição, uma forma de negar a possibilidade de existir uma sociedade livre e democrática.
É a negação da possibilidade de escolha por parte do cidadão. Óbito da democracia.
A esperançosa unidade de esquerda
pode acabar por não se concretizar; mas a tentativa de a edificar teve já este
grande mérito: fazer cair as máscaras. Um belo contributo para o premente combate
ao kitsch político.
João Maria de Freitas-Branco
[Artigo de opinião, jornal PÚBLICO, edição de Domingo, 18 de Outubro de 2015, p.52]
"No espaço nacional, emergiu, de modo súbito, uma situação inédita na história desta nossa 2ªRepública: a hipótese de concretização da tão sonhada e apregoada unidade de esquerda. Este surpreendente agitar de águas em torno da procura de solução governativa, motivado pela lúcida atitude do PCP de viabilizar um governo minoritário do PS como primeiro gesto destinado a travar a onda antidemocrática gerada pela tão em voga ideologia do austeritarismo, parece-me concorrer para um promissor reavivar da chama da democracia."
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