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terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Carnaval dos desmascarados

De dia para dia a vitória do Syriza nas eleições gregas do passado mês de Janeiro foi-me dando maior satisfação. Seja qual for o desfecho do combate agora travado pelo novo governo grego, a chegada do Syriza ao poder já teve o enorme mérito de fazer cair a máscara com que os actuais políticos kitsch que mandam na Europa se disfarçavam de democratas convictos. Caricata ironia: os senhores do poder desmascarados em pleno carnaval, deixando exposta, em toda a sua grotesca nudez, a obscena forma essencial da sua fácies política. Traduz-se ela no exuberante desprezo pelo resultado das eleições, higienicamente reduzidas à dimensão de ritual irrelevante e fraudulento em que só se admite um único resultado – ou votam em mim ou o voto não vale, austeridade ou exclusão. Para o Poderio o que importa é garantir a operacionalidade dos mecanismos de subjugação dos povos. Só assim se consegue que a acumulação de riqueza continue a fluir no mesmo sentido. Mas a engenhosa higiene eleitoral, tão cuidadosamente implementada ao longo de décadas, destinada a prevenir contra a eventual erupção de alternativas emancipadoras, contra o surgimento de transformações perturbadoras da tranquilidade do sistema de dominação, do status quo, parece estar a perder eficácia, deixando estalar o verniz. Isso tem feito disparar todos os alarmes do sistema. As eleições podem servir para mudar, mas nunca para transformar. Podem admitir-se alterações no sistema mas jamais mutações do sistema. Na óptica do Poderio, as eleições, no essencial, têm que ser instrumento de conservação. Só assim são aceitáveis.

Outro efeito Syriza de desmascaramento, se bem observo, incide sobre o sofisticado sistema de construção e disseminação da confusão, elemento chave na arquitectura do sistema de domínio, de influência ideológica. Estou em crer que o furacão Syriza, bem como as inflamadas reacções de antagonismo que desencadeou (antídotos imateriais), concorre para facilitar a compreensão do hodierno modo de produção do pensamento político. Proporciona a dilucidação do como se opera a produção e comercialização da opinião que se vai cristalizando como Verdade absoluta comum, como certeza ideológica de um tempo e de um espaço societal, que até o passado dia 25 de Janeiro se supunha poder garantir a perpetuação de resultados eleitorais convenientes, aceitáveis, moderados, respeitadores da ordem estabelecida e, por isso mesmo, inócuos. Trata-se do essencial mecanismo de produção de bens imateriais de carácter ideativo-simbólico-ideológico. Decisivo factor de dominação. Os agentes dessa produção (empreendedores do imaterial) são les doxosophes que Pierre Bourdieu lucidamente caracterizava já na recuada década de 70 do século passado. Personagens que desfilam em écrans, em páginas de jornais, revistas, livros ou sobre a forma de ondas hertzianas actuando a uma só voz. Constituem o imenso coro dos comentadores, dos fazedores de opinião, dos “especialistas”, dos “pensadores” em voga. Carnavalesco morganho de criadores de máscaras. Le doxosophe (o doxosofo) é o malabarista das meias verdades com que se constroem as mais puras mentiras; é, como bem escreveu Bourdieu, o especialista da aparência, «erudito aparente e erudito da aparência», actuando em terreno «onde a aparência serve sempre as aparências». É o instituir do primado da mentira em que se alicerça a confusão “legitimadora” e garante essencial de uma dominação, de um sistema de pensamento único, do “não há alternativa”, de uma farsa democrática que mascara uma real oligarquia.

Mais grave do que tudo é o menosprezo pela Vida, atitude que é primeira fonte do Mal, maiusculizado por ser extremo. A frase “sinto muito pelos gregos; elegeram um governo que se comporta de modo irresponsável”, ontem proferida por Wolfgang Schäuble, constitui um marco ético-político histórico, ficando na memória colectiva como expressão simbólica desse desamor à Vida protagonizado por um bando de líderes europeus responsáveis pela política que deixou mais de um milhão de cidadãos gregos sem assistência médica, que deixou 300 mil famílias a viverem sem electricidade no meio da grande civilização do velho continente – assim transformada em selva --, que sem escrúpulos lançou na pobreza milhões de seres humanos e que face à evidência dos danos tem o supremo descaramento imoral de querer prosseguir com a política semeadora de sofrimento humano.

O vergonhoso ultimato de ontem, feito com a cumplicidade dos governantes socialistas (note-se bem), é o prenúncio do fim da União Europeia assente nos princípios do humanismo, na democracia, na solidariedade entre os povos. Para quem neste momento detém a vara do mando, na cúpula da EU, a prioridade máxima é garantir a perpetuação das estruturas de dominação geradoras de uma distribuição desigual da riqueza. Um eventual sucesso do Syriza seria demonstrativo da existência de alternativas emancipadoras. Verdade insuportável.

Se o governo do Syriza for derrotado e não conseguir pôr fim à política austeritária de regressão civilizacional, a extrema-direita neonazi irá mudar a Europa.

Avizinham-se tempos perigosíssimos. Avoluma-se a ameaça de nova vaga totalitária.

 

João Maria de Freitas-Branco

Caxias, 17 de Fevereiro, terça-feira de Carnaval, de 2015

1 comentário:

  1. "As eleições podem servir para mudar, mas nunca para transformar. Podem admitir-se alterações no sistema mas jamais mutações do sistema. Na óptica do Poderio, as eleições, no essencial, têm que ser instrumento de conservação. Só assim são aceitáveis."

    O povo Grego abriu a porta, agora nada ficará como antes!

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