Não creio que um Estado de Direito democrático possa ter grande
longevidade quando a quantidade de suspeição relativamente à compleição
ético-moral dos seus principais quadros responsáveis é aquela que temos
observado, com crescente espanto e indignação, ao longo dos últimos tempos.
Este risco de sobrevivência de uma conquista civilizacional é, só por si,
extremamente preocupante. Mas não ficamos por aqui. Há preocupações acrescidas.
É igualmente inquietante e causador de perplexidade ver um
vasto conjunto de personalidades do nosso meio político reagir à detenção à
detenção do ex-primeiro-ministro José Sócrates centrando a atenção apenas em
aspectos processuais ou nos formalismos jurídicos. Não se ergue aqui uma
prioritária e essencial questão de natureza política, ética e cultural? A
questão da face do regime e do Estado. Ou seja, a questão do asseio do rosto,
da decência, da dignidade do regime e do Estado.
Como pode então um actual candidato a primeiro-ministro, o
socialista António Costa, afirmar ser este o tempo da justiça, devendo os
políticos permanecer em silêncio em relação ao caso? Então, em face dos
últimos acontecimentos, não sentem os responsáveis políticos, todos eles,
ainda maior urgência de vir a terreiro com medidas imediatas de combate à
corrupção, de modo a estancar a tremenda hemorragia de imoralidade de que
padece o regime e o Estado? Estávamos já perrante um vasto leque de indecências
banalizadas, prolongadas no tempo, que vai da imoralidade legal da acção dos
facilitadores até à corrupção na cúpula do Estado. Nas últimas semanas
assistimos a um crescendo que culminou na detenção de um ex-primeiro-ministro
sob a indiciação de prática de ilícitos da máxima gravidade.
No meio deste abalo, Mário Soares veio declarar que a
detenção de José Sócrates “deixou os democratas imensamente preocupados”. Mas
então não estavam já imensamente preocupados? Não havia já motivos de sobra
para tal, nomeadamente o facto desse mesmo Sócrates, agora detido, ter
governado a nossa Pátria durante mais de sete anos sob contínua suspeição de
prática de ilícitos? Não era isso, só por si, motivo para imensa preocupação
dos democratas?
Há uma óbvia e necessária presunção de inocência. Aceita-se
e compreende-se que amigos de José Sócrates declarem estarem convictos da sua
total inocência. É admissível que se levantem dúvidas relativamente aos métodos
da justiça e até que se discutam as decisões por ela tomadas – particularmente
a medida de coação aplicada. O repúdio do circo mediático e de um certo
pseudojornalismo que se alimenta de fugas ao segredo de justiça (que é prática
criminosa) é um imperativo ético. Mas não havendo sinais indiciadores de agudo
estado de demência do juiz instrutor, impõe o mais elementar bom senso que
todos acreditemos que a ordenação de detenção de um ex-primeiro-ministro, assim
como a subsequente medida que lhe foi aplicada (a mais gravosa de todas as
medidas de coacção), resulta do facto de o juiz decisor ter diante dos seus
olhos, necessariamente, indícios muito fortes ou pré-provas da prática dos
crimes referidos no comunicado oficial do Tribunal Central de Acção Criminal. Essa
conclusão ditada pelo simples bom senso obriga a que se tirem imediatas ilações
políticas. Como se pode afirmar, como hoje mesmo foi afirmado pelo ex-presidente
da República Mário Soares, que este caso não tem “nada a ver com os
socialistas” (leia-se PS)? Então José Sócrates não governou em nome do PS? Não
foi indicado pelo PS para exercer o cargo de primeiro-ministro? António
Vitorino, ontem, na SIC Notícias, com honestidade e frontalidade, afirmou que
este caso tinha tudo a ver com o Partido Socialista, lesando a sua imagem
institucional. Claro!
Como se pode então reduzir todo este complexo caso a uma
“bandalheira”? Quem considera que tudo isto não passa de uma “bandalheira”, e
mais não é do que uma “campanha que é uma infâmia”, está absolutamente
descrente da honestidade da justiça portuguesa, dos seus magistrados, dos
tribunais e das suas restantes instituições. Assustador! É o decretar da total
falência do Estado de Direito que obviamente não pode existir sem justiça que
tenha alguma decência. Mas mais assustador ainda é o facto de esta confissão de
total descrença na nossa justiça ter saído não da boca de um qualquer cidadão
anónimo, eventualmente desinformado, senão que da boca de um ex-presidente da
República e actual conselheiro de Estado: Mário Soares – por acaso, também jurista.
É de enlouquecer! Que fica o pobre cidadão comum a pensar? Como pode dormir,
depois de uma tão alta figura do regime e do Estado ter dito publicamente que o
Tribunal Central português é agente da bandalhice e está ao serviço de
campanhas “orquestradas por malandros”, decidindo de forma desregrada, sem
critérios, sem fundamentos? Que vai fazer o juiz instrutor Carlos Alexandre
perante tamanha acusação à sua pessoa, pondo em causa o seu bom-nome? Que vai
fazer o Tribunal Central de Acção Criminal depois de se ver assim atacada a sua
idoneidade? Que vão dizer os partidos políticos? Que vai dizer António Costa,
candidato a primeiro-ministro pelo partido vítima da “bandalhice” da justiça?
Em crescente estado de desassossego, aguardamos pelas reacções.
Como podem pretender alguns altos dirigentes do PS,
incluindo António Costa, que este não é um momento “nada difícil” para o PS?
Estarei alucinado? Sou eu que não percebo nada de política ou este esconder o
Sol com a peneira é gesto politicamente suicidário?
Se não estou alucinado e se ainda possuo alguma cultura e
sensibilidade política, o que francamente me parece é estarem alguns
socialistas a dar tiros no seu próprio partido, o que neste momento de
acentuada fragilidade do regime e do Estado de Direito democrático, abalado por
uma avalanche de acontecimentos gravíssimos, se me afigura assaz inconveniente.
A crítica que aqui endereço a esses responsáveis políticos
do PS é feita em defesa do PS, pois mesmo não sendo eu militante deste partido,
nem de nenhum outro, desejo ver os partidos da nossa democracia a funcionarem
bem, a portarem-se decentemente, a darem exemplos de elevação. Coisas que têm
escasseado bastante, para mal da nossa comunidade nacional.
Dizer que o PS está a viver um momento “nada difícil” é
tornar o momento actual ainda mais difícil para o PS.
João Maria de Freitas-Branco
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