Quando os seres humanos são levados a traçar o perfil da sua
essencialidade, envolvendo-se em processo de auto-caracterização, é notória a
inclinação narcísica. Até mesmo no plano do discurso mais erudito (filosófico, científico),
em que se declara estarem pressupostas exigências de rigor, objectividade,
profundidade, até mesmo aí fácil é verificar como em todas as várias fases históricas
de auto-reflexão, a contaminação do narcisismo marcou presença. Daí que ao
falar de si o ser humano tenda a ignorar ou a ocultar, lançando para a
penumbra, características menos nobres, menos grandiosas, menos dignas de
incontroversa admiração. Na feitura do auto-retrato, na selfie (ou selfy) à sua
essência (para ser bem moderno no dizer), o Homem remete para essas zonas de
sombra uma das suas mais fundamentais características definidoras: a credulidade. Tanto ou mais do que homo sapiens, somos homo credulus. Ser crédulo terá sido, com boa probabilidade, um
factor evolutivo relevante, uma vantagem adaptativa no quadro do processo
darwínico. Aí residirá a razão mais profunda dessa distintiva.
Mas a coisa não fica por aqui. Esconde-se, também,
envergonhadamente, outro aspecto capital: o
facto da vivência da credulidade ser gratificante. Temos aqui o modelo
típico daquilo que em psiquiatria e neurobiologia se designa por circuito do prazer; a sequência pena/recompensa.
Estão presentemente em exibição nas nossas salas de cinema
duas obras de arte cinematográfica que nos convidam a pensar esta vertente da
essência do humano ao mesmo tempo que a filmam com a mestria própria dos
autores em questão. Isso aqui me traz, com o mero intuito de deixar algumas
observações críticas que, ao mesmo tempo, funcionem como recomendação, ou seja,
que possam servir de incentivo a uma ida ao cinema. É essa uma forma de
contrariar eventuais e inconvenientes efeitos inibitórios do desejo de ida ao
espectáculo produzidos pela atitude de alguns críticos de serviço (até em
jornais de referência) que se apressaram a colar o rótulo de medíocre neste
mais recente trabalho de Woody Allen. Como se pode atribuir apenas duas
estrelas (na habitual escala de 0 a 5) a uma obra cinematográfica com aqueles
diálogos recheados de humor inteligente, transportando grande seriedade reflexiva,
com uma construção narrativa tão conseguida, plena de efeitos surpresa bem
arquitectados, com aquele tão elevado nível de representação, com a sedutora
Cote d’ Azur a encher o ecrã, com um extraordinário bom gosto musical
espraiando-se do universo sinfónico beethoveniano até Cole Porter? Quem merece
menos de duas estremas é todo o crítico que assim ajuíza. Um despautério snobe
que incomoda. Mas isto é apenas desabafo, pois todos sabemos que tal como há
bons e maus realizadores também há, necessariamente, bons e maus críticos de
cinema. Faz parte da natureza das coisas de humana iniciativa.
As obras em questão são as seguintes: Mahapurush (O Santo),
realizado por Satyajit Ray em 1965, e Magic
in the Moonlight (Magia ao Luar), de Woody Allen (2014).
Independentemente de tudo, e é muito, que diferencia os dois
filmes – estilos, origem, data de realização, construção narrativa, técnicas de
filmagem, etc. –, para além do foco temático as obras convergem no constante
recurso ao humor inteligente, profundo, irónico, sarcástico e corrosivo. No
entanto, para minha pessoal surpresa, nas sessões onde estive (nomeadamente na
do cinema Nimas, com sala cheia de um público considerado de elite) os atentos
espectadores não riam, nem me pareceu que esboçassem frequentes sorrisos. Certo
é que nada semelhante ao riso franco, à gargalhada, foi para mim audível
naquelas salas de projecção cinematográfica da nossa capital europeia. A certa
altura, no espaço do Nimas, até dei comigo a conter-me para que as gargalhadas
que me saltavam não fossem demasiado exuberantes e, nessa medida, eventualmente
incomodativas para os outros espectadores, meus companheiros de circunstância, a
começar pelo sujeito sentado ao meu lado direito que, de principio a fim se
manteve sisudo, como se estivesse a assistir a pungente drama. No caso da
película de Woody Allen, projectada também em sala frequentada por gente com
nível de escolaridade elevado (servindo as elites da linha do Estoril) reparei que
o público só começou a rir na parte final do filme, quando parece haver uma
deriva temática e o enredo se centra na questão amorosa e nas duas hipóteses de
casamento em aberto. A enérgica denúncia da credulidade, da crendice, da
irracionalidade e da infinitude da estupidez humana que lhe está
estruturalmente associada, o ostensivo gozar artístico com todas essas
fraquezas ou deficiências do humano não é bem aceite e ainda menos assimilado.
Provoca atitude reticente. Desde logo porque os espectadores são seres humanos
– homo sapiens credulus, como talvez
se devesse classificar com ganho de científico rigor.
A racional denegação do sobrenatural é uma construção
complexa resultante de enorme investimento de esforço intelectual. É atitude
artificial. A atitude natural, espontânea é a da crença no sobrenatural, nas
forças do oculto, bem como o enamoramento pelo mistério, elemento sempre tão
sedutor para a nossa mente, como se possuísse um certo magnetismo. Volto a
sublinhar que o processo de vivência da crença no sobrenatural origina
recompensa, no sentido psiquiátrico, psicológico ou neurológico do termo. Algo
que é cinematograficamente bem explicitado pelos dois realizadores, Satyajit
Ray e Woody Allen. Com o talento que lhes é reconhecido, ambos, de modo diferente
mas igualmente bem conseguido, dirigem a câmara captando a essência da
credulidade humana. Filmam a credulidade; dão-lhe expressão imagética,
cinematográfica. Ray fazendo a câmara sobrevoar o espaço em que decorre a
sessão do mágico, ou fazendo-a circular no meio da plateia, focando os rostos
dos seres extasiados perante a actuação do Santo; Allen através dos planos em
que capta o sorriso de ingénuo encantamento enchendo e iluminando o rosto da
velha milionária deleitada com as supostas respostas do falecido marido ao seu
rigoroso inquérito amoroso, não por acaso as exactas réplicas que ardentemente
desejava escutar na sessão de espiritismo que decorre na sua mansão. Portanto, a
troça irónica, o humor caustico que em ambos os filmes apimenta a intencional denúncia
da fraude do “Santo” (o mágico) e da médium Sophie, em Magia ao Luar, denegando a existência das tão atraentes forças do
sobrenatural, fere sensibilidades. Muitos espectadores sentem-se, de alguma
maneira, postos em causa. Se não incorro em engano, o que lhes chega do ecrã
provoca-lhes incómodo mental e inibe o riso; a vontade de soltar gargalhada não
chega a despertar na sua alma de homo
credulus. Uma das pessoas que me fazia boa companhia na ida ao cinema, no
final, ao comentar comigo a ausência de riso e seus eventuais motivos, logo
inteligentemente recordou o peso da cultura católica na nossa sociedade.
Tanto na esfera privada como pública, tenho visto ser
endereçada uma enfática acusação a Woody Allen que pode ser resumidamente
enunciada do seguinte modo: acreditar num espírita e na possibilidade de
dialogar com os mortos é coisa completamente diferente da crença na existência
de Deus, tal como ela se manifesta, por exemplo, no catolicismo (para apenas citar
o caso da fé religiosa que nos é mais próxima). Na opinião destes opositores o
realizador confunde dois tipos distintos de crença. Utilizando imagem em voga
nestas nossas paragens, pode dizer-se que consideram existir a crença boa
(religiosa) e a crença má (da magia, do espiritismo, da cartomancia, etc.),
eventualmente fraudulenta.
Iludem-se os acusadores. Aquele sujeito que acredita na omnipotência
de uma divindade pessoal, na vida para além da morte, na ressurreição de
Cristo, nos milagres, nas aparições de Fátima (ou outras), na autonomia das
almas que libertando-se do corpo ascendem ao céu paradisíaco ou tombam na
profundeza do inferno, esse sujeito é sempre alguém que, independentemente da
religião que professe, está naturalmente disposto a aceitar como verdade a
hipótese de dialogar com os mortos, de voltar a poder comunicar com os seus
entes queridos entretanto desaparecidos do mundo dos vivos. Esta
disponibilidade mental (disposição intima, essencial) para acreditar em tudo
isso sem exigência de provas ou de sólida fundamentação racional é necessária
consequência da crença dogmática, da aceitação dos dogmas da sua Igreja, da sua
religião, do seu culto, do seu Deus. Como seria possível aceitar o dogma da
vida eterna (do mundo dos mortos contraposto ao dos vivos) e simultaneamente
não aceitar uma qualquer possibilidade de falar com os mortos, de regressar ao
convívio? Seria uma total contradição. Pois não é notório que fazendo fé na
autenticidade da vida eterna os mortos não podem estar totalmente mortos? E
assim sendo, a parte desse ser que se supõe permanecer viva para além do
túmulo, a sua alma, ou o que se lhe queira chamar, será o elemento que intervém
possibilitando o tal fantástico diálogo com o outro ausente; ausente do nosso
reino, do aquém, mas presente no espaço metafísico do além. E neste contexto de
problematização não resisto a evocar uma notícia que, quase diria por feliz
coincidência, acaba de ser posta a circular pela comunicação social britânica,
tendo formidável valor exemplificativo para a nossa reflexão: uma jovem inglesa
enviava mensagens, SMSs, para o telemóvel da avó falecida em 2011, mas que, por
vontade expressa, tinha levado consigo alguns objectos de uso pessoal,
incluindo o seu telemóvel; com o profundo desgosto da perda do ente querido, a
jovem decidiu continuar a escrever SMSs para a avó, sentido conforto nesse
gesto de enviar mensagens para o telemóvel sepultado, dando conta das suas
desventuras. Subitamente, este procedimento do foro privado ganha dimensão de
notícia mundial. Porquê? Porque a jovem recebeu resposta da avó morta há mais
de 3 anos! Milagre!! A mensagem da vovó era concisa mas incisiva e coerente.
Dizia: “Estou a olhar por ti. Aguenta-te!” A neta ficou desnorteada, envolta
num dilúvio emocional povoado de contradições, entre o espanto, o susto, a
alegria, o medo, o não saber que fazer. Segundo confessa, passaram-lhe de imediato
pela cabeça as coisas mais espantosas, fantasiou descontroladamente, aventando
todo o tipo de hipóteses sobre as causas sobrenaturais, sobre as forças ocultas
causadoras de tão assombroso acontecimento – o primeiro contacto de um morto
com o reino dos vivos através de SMS. Uma fantástica modernização do hábito das
almas do outro mundo. Tudo lhe passou pala cabeça excepto o óbvio: o número de
telefone tinha sido entretanto atribuído a outra pessoa, essa bem viva, que, farta
de receber lamúrias por SMS no seu telemóvel, resolveu responder. Faço notar
que a jovem adulta que estava convencida de ter recebido o primeiro SMS do
além, redigido por saudosa alma querida, é uma cidadã escolarizada de um país
europeu representativo do topo da civilização humana do século XXI. A hipótese
óbvia, a simples explicação racional chegou a essa mente, de uma saudável jovem
cidadã do nosso maravilhoso mundo civilizado, em último lugar; e ao que julgo
saber, trazida de fora, pela mão da companhia telefónica que se sentiu na
necessidade de apresentar um formal pedido de desculpa pelos danos emocionais
involuntariamente causados.
Na paisagem humana há uma clivagem profunda, uma ruptura
mental essencial, mas que não se situa onde os acusadores de Allen a colocam –
entre géneros de crenças. O que existe são dois tipos de seres humanos: os
crentes (tipo A) e os cépticos (tipo B); os amigos do sobrenatural e os
negadores do sobrenatural; entre aqueles em que predomina o instinto da
ininteligibilidade (culto do mistério) e aqueles em que predomina o instinto da
inteligibilidade (desvendamento do mistério). Há aqui profunda ruptura. Dois
tipos distintos. Formatações mentais essencialmente diferentes. Se bem que, em
abono do rigor, se deva adicionar a afirmação de que nenhum sujeito real é um
puro tipo A ou um puro tipo B. Essas purezas absolutas não existem na paisagem
humana real. Acrescente-se ainda que um dos tipos referidos, aquele a que
chamei A, é, foi e, com enorme probabilidade, continuará a ser, por vasto tempo,
esmagadoramente maioritário. E adivinhando poder haver quem suponha serem os
ateus, todos eles, por definição, lídimos representantes do tipo minoritário (o
tipo B), apresso-me a dizer ser essa uma outra ilusão frequente. Uma grande
parcela (maioria?) dos seres humanos que se dizem ateus é, de facto, pertença
da irmandade dos crentes; são sujeitos tipo A e não B, como vulgarmente se
supõe. Porquê? Porque o ateu tradicional, o ateu dogmático é o mais puro crente: é um crente na não-existência de Deus.
Um crente tão fervorosamente crente como qualquer outro crente obediente ao seu
Deus, seguidor de uma fé religiosa. O ateu critico-racional, não dogmático, andando
de braço dado com o espírito científico (com a Ciência) não tem nenhuma crença
na não-existência de deuses, sejam eles quais forem. Para ele não se trata
nunca de uma questão de crença, mas
sim de uma questão de presença/ausência de prova efectiva, de fundamentação
racional; de prova construída pela Razão e pelo experimentalismo que a
materializa.
A meu ver, Woody Allen comete dois “erros” grosseiros.
Coloco aspas para que fique bem claro não haver da minha parte intensão de
atacar o realizador no plano artístico. O que ele faz é absolutamente legítimo.
A realização de um filme é um exercício de livre criatividade artística e não um
tratado filosófico ou científico, sendo por isso lícito o procedimento do
realizador, as suas opções estéticas. A minha objecção crítica situa-se no
estrito plano da ideação.
Em primeiro lugar, é passada a ideia de que um racionalista,
um céptico, um adepto do espírito científico e da atitude critico-racional
(atitude científica), um não crente, é por definição um ser frio, seco, despido
de veia romântica, pobre de emoções, desatento e inábil nos terrenos do amor,
das paixões. Essa ideia é um completo disparate. Trata-se, no fundo, de outra
arreigada crença que por efeito da ignorância e da não menos omnipresente
estupidez humana perdura mesmo anos depois de as neurociências terem
demonstrado experimentalmente a relevância, ou melhor, a indispensabilidade das
emoções na construção do juízo racional consequente (adaptado à realidade a que
tem que dar respostas eficazes). Justo será recordar dever-se em grande parte a
um cientista português, António Damásio (embora frequentemente citado em
prestigiadas publicações como sendo americano, por ter sido nos EUA que pôde
desenvolver o seu trabalho, usufruindo dos excepcionais meios
técnico-financeiros e culturais disponibilizados por essa pátria), deve-se a esse
cientista português o experimentalismo científico que nos legou as evidências
da unidade sistémica complexa (sistema de sistemas) entre a bioquímica das
emoções e a arquitectura neuronal, de natureza igualmente bioquímica, associada
ao raciocínio lógico (Razão). A mente racional é efeito dessa unidade complexa.
A disfuncionalidade da vertente emocional compromete de imediato a competência da
Razão, impedindo ou dificultando (em função da grandeza da disfunção) a
resposta comportamental adequada ao desafio colocado ao sujeito no quadro da
sua inserção espácio-temporal na realidade mundana.
O bom e autêntico racionalista não é um ser apoucado de
emoções. Não está refém dessa inflexibilidade, dessa rigidez mental observada
no personagem do filme. Um racionalista possui os instintos de qualquer outro
ser humano. A diferença é que, na combinação do inato e do adquirido, se
desenvolveu nele em mais elevado grau o instinto racional, coisa que lhe
permite estruturar as embriaguezes românticas, as raivas, as paixões
desregradas, os impulsos irracionais, não se deixando enredar na crendice. Ai
se alicerça o cepticismo crítico racional denunciador da fraude associada à
crença no sobrenatural.
O segundo “erro” grosseiro
em que Woody Allen incorre está associado à já referida noção de recompensa: é
a ideia que o filme acaba por fazer passar de que a fraude do sobrenatural,
enquanto expressão do irracional, não passa, no fundo, de uma falsidade inofensiva.
Se a velha viúva milionária fica feliz com as ilusões, mentiras, falsidades
transmitidas pela médium e se a verdade só lhe podia causar tristeza, dor,
desespero, então para quê a preocupação da denúncia da fraude? Se a ilusão é
recompensadora, então tem, ao que tudo indica, algum efeito benéfico, não
havendo razão para alarme nem se justificando a denúncia racionalista/céptica
que até pode revelar-se inconveniente ao apagar a chama da recompensa. Claro
que há ainda a vertente ético-jurídica do enriquecimento ilícito, da
publicidade enganosa, da venda de gato por lebre, tudo aspectos menos
relevantes para o nosso contexto analítico, que se pretende filosófico. Por
isso os deixo de lado.
A primeira resposta para estas interrogações consiste em
recordar uma regra ou princípio geral: o ser melhor ter-se conhecimento do que
viver-se mergulhado na ignorância; verdadeiro e falso não têm a mesma cotação,
seja no mercado do pensar ou no do agir. Este argumento chega a ser apresentado
pelo personagem Stanley, o racionalista. Mas é insuficiente. O que se esconde
por traz da crença no sobrenatural – isso a que costumo chamar irracionalidade à solta –, assim como as
forças envolvidas nas prolixas acções da pseudociência constituem, no seu todo,
um enorme perigo e uma seriíssima ameaça civilizacional. O que nas duas
películas é simbolizado pelas figuras do Santo e da médium Sophie, é aquilo a
que ao longo de anos tenho insistido em chamar cultura da confusão. A sua acção injecta confusão no corpo
societal. Esse sistemático cultivo da confusão actua como um vírus causador de
patologia. A confusão faz com que a sociedade adoeça. Daí que ela nunca seja
inofensiva, benigna, nem mesmo mal menor. É sempre um perigo maior. Porque a
confusão asfixia a liberdade e fertiliza a dependência.
Como escrevi num ensaio publicado há mais de dez anos, essas
acções que injectam confusão favorecem «invariavelmente as ambiências
propiciadoras da obediência e do consentimento». Significa isto que desempenham
relevantíssima função político-ideológico-prática em prol dos poderes
instituídos ou concorrendo para a edificação e afirmação de novos poderes
obstrutores da autonomia e do esclarecimento.
Sendo dois manifestos cinematográficos contra o por mim
designado de irracional à solta, na sua tradicional associação com a crença no
sobrenatural, as obras de Satyajit Ray e Woody Allen, com a inteligência que
caracteriza o trabalho destes dois cineastas, não deixam de pôr em evidência
certos limites da racionalidade, bem como também uma arrogância, uma soberba,
uma inflexibilidade não infrequentemente presentes na atitude de intelectuais
do tipo B. Ray fá-lo de forma mais subtil e exigente para o espectador,
recorrendo a objectos, ao jogo de xadrez, aos livros, a ambientes interiores,
etc.; Allen explicita, na figura de Stanley, um certo snobismo racionalista,
acentuadamente British, a que o generoso
talento de Colin Firth dá corpo.
Há múltiplos motivos para ir ao cinema ver estes dois filmes;
e até há suficientes ingredientes justificativos de uma certa obrigatoriedade ou
dever artístico-cultural de os conhecer. Mas quero acentuar outra razão para a
dispensa de cuidada atenção a estas obras, razão porventura até mais relevante
do que todas as outras, se bem que inseparável do valor estético: é que estas
duas criações da sétima arte inserem-se de corpo inteiro no monumental projecto
emancipador da Aufklärung, assumindo os
autores a consciência da necessidade histórica e civilizacional de o concluir. O
gesto cinematográfico é, nestes dois casos, um intencional investimento de
esforço intelectual para, como diria essa personificação da Aufklärung chamada Ludwig Feuerbach,
transformar os seres humanos fazendo-os passar da condição de crentes à de pensadores – caminhando da situação de dependência rumo à
não-dependência. Assim se esculpe o Homem que é pessoa completa.
João Maria de Freitas-Branco
Outubro de 2014
João Maria seria óptimo se pudesses acrescentar os botões partilha dos posts (há uma pequena app que se coloca facilmente) no teu blog. Facilitaria muito a partilha dos teus excelentes posts. Um abraço.
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