Nos últimos dias tem-se abatido sobre nós uma insuportável
verborreia que trai o homem ao mesmo tempo que parece celebrá-lo. Ao longo
destes dias tenho ouvido e lido, vezes sem conta, a afirmação de ter sido “o
perdão” o grande legado do falecido. É a costumeira pieguice católica, a
lamechice beata. Será que os hediondos crimes do Apartheid podem ter perdão?
Claro que não! Eles são imperdoáveis! E Mandela era o primeiro a saber isso.
Mas tal não significa que não se possa, e não se deva, negar o caminho da
vingança sangrenta, da punição exaltada, irracionalmente prescrita pelo
primitivismo sectário. Essa escolha estriba-se não no perdão, senão que no
saber, na compreensão racional e na aposta no valor da educação como factor
transformante. A superior bondade racional e lúcida em vez da bárbara vingança
que permaneceria ao mesmo nível de baixeza exibido pelo horrendo regime racista
do apartheid. A atitude contra a imoralidade não pode ser imoral. A obscenidade
política não se combate com outra obscenidade política; combate-se, sim, com
ética, com atitudes elevadas, com comportamentos nobres. Combate-se exibindo
aristocracia de sentimentos.
Outra idiotice em livre circulação nos últimos dias é a
colagem do rótulo de pacifista ao ilustre defunto: «Mandela sempre foi contra a
violência», «foi um grande pacifista», etc. Através da santificação néscia, do
irracional encómio acrítico e da veneração emocionada não só se mente,
impudentemente, como também se desenha a imagem de um pateta bonzinho. O
imaculado Mandela. Típica deturpação incutida pelo serôdio moralismo beato. Na
paisagem humana real não existem seres puros e perfeitos, mas sim seres concretos
envoltos em imperfeições, dúvidas, angústias, contradições. Tal como o mundo da
absoluta conciliação, da paz eterna entre os homens, essa visão do homem-santo mais
não é do que conto de fadas sub-repticiamente engendrado para actuar como
subtil arma de guerra ideológica. Talvez importe recordar que a “Bíblia” da
prisão de Robben Island era o volume com as obras completas de Shakespeare. Foi
essa a escritura que inspirou o pensamento e a acção do líder anti-apartheid.
Assim se semeia a confusão, repleta de consequências
políticas, armada de afiadas setas bem orientadas para a batalha ideológica que
se trava neste nosso aqui e agora, quando outra vaga de infausta violência se
abate sobre um povo. O nosso. E o que se apresenta como elogio incondicional a
uma pessoa singular é na verdade um insulto deturpador. O valor de Mandela como
homem e político brota das contradições pessoais, bem como das contradições do
próprio devir histórico que protagonizou. Isso acontece com todas as grandes
figuras (incluindo a dos maiores Santos); sendo que essa própria complexidade
do contraditório fecunda a sua grandeza.
Despir Madiba dessas contradições é esmorecer a chama desse
Eu possante, é esvaecer a força viril da personalidade histórica, é trair. Mas
é também pura cretinização.
João Maria de Freitas-Branco
(Artigo de opinião do jornal PÚBLICO, edição de 19-Dezembro-2013)
Sem comentários:
Enviar um comentário