Charles Darwin (o homem e a obra) devia ser objecto prioritário de estudo nas nossas escolas. É o que penso e inequivocamente afirmo. Não movido por qualquer sectária preferência subjectiva, ou por considerar possuir o naturalista inglês grandeza superior à de qualquer outro dos Grandes da ciência, e menos ainda por supor a sua esplêndida Teoria da Evolução mais valiosa do que as restantes principais construções teoréticas da história da ciência. Não, nada disso. Apenas me parece que Darwin constitui, em si mesmo, um modelo exemplar do que se entende por atitude científica, tendo sobre outros a vantagem de o seu exemplo de esforço cognitivo incidir sobre um domínio que ao longo de largas centúrias foi coutada privilegiada dos sistemas ideológico-práticos da obediência, já tão preocupantes para o nosso bom Espinosa; ou seja, o estudo e compreensão do humano, incluindo o velho problema da origem deste homo sapiens que narcisicamente dizemos ser.
A primeiríssima função intelectual da Escola devia consistir na semeadura de racionalidade crítico-dubitativa, de modo a legar à sociedade espíritos libérrimos, expurgados de vícios de pensamento primários, como aqueles que estão na base das formas de embriaguez intelectual -- vícios que são sustento do irracional, da superstição, do sobrenatural, da vulgar crença, do culto do mistério insondável. Isto é, os nossos jovens deviam assimilar nos bancos da escola as ferramentas mentais indispensáveis para escudar o cidadão, para lhe criar alguma imunidade mental aos vírus ideológicos em circulação, permitindo-lhe enfrentar com audácia aquilo a que tenho insistido chamar a cultura da confusão – essencial e indispensável serva da dependência em detrimento da autonomia, da emancipação.
Darwin representa um maravilhoso momento de concretização da ciência adulta, ou seja, de uma ciência expurgada de crença, por ter desenvolvido instrumentos (materiais e imateriais) de verificação racional, assumindo, ao mesmo tempo, consciência da absoluta indispensabilidade desse mesmo instrumentário, porque qualquer excepção a essa atitude metodológica escancara a porta à tal embriaguez intelectual, permitindo-lhe avançar, instalando a confusão dominadora. Essa confusão promotora do estado de dependência.
Darwin tem, portanto, um valor universal, que se estende a todo o espaço cultural. Aliás como logo no seu século foi percebido pelos espíritos atentos. O darwinismo constituiu um passo decisivo no processo geral de dessacralização do Real. Ao fazer com que a ciência se libertasse dos prejudiciais efeitos da metafísica e da teologia natural ele enviou ondas de choque em todas as direcções, ondas que não tardaram a surtir efeitos nos mais diferentes espaços disciplinares, da literatura à política.
Devemos aos iluministas do século XVIII o decisivo desvendamento do elo ancestral, presente em todas as sociedades, entre a crença, os mitos, a sacralização, os mistérios, a institucionalização de cultos (religiosos ou profanos) e o Poder – incluindo, claro está, o exercício do poder político na esfera da práxis, a governação. Daí que só uma muito excessiva ingenuidade possa levar alguém a ignorar que o fazer com que se ensine mais Darwin nas escolas não é procedimento fácil, nem gesto que escape a resistências de variado timbre.
A actual fraca presença do darwinismo nos programas escolares é um escândalo intelectual nada ingénuo. Não é fruto do acaso, da mera incompetência ou de uma qualquer desatenção, um desses “lapsos” ministeriais agora em voga. Também não consigo ser suficientemente ingénuo para poder acreditar que a resistência não esteja também solidamente instalada dentro da escola, entre a população docente. Que outra coisa se pode esperar face a um trabalho científico, o de Darwin, que de modo tão profundo e consistente veio colocar em evidência o facto de, chegada ao seu estado adulto, a ciência ser necessariamente ateia?
Mas exactamente como Darwin e com Darwin temos que continuar a investir no esforço de estruturação do moderno pensamento emancipador. Parte importante desse esforço consiste em colocar mais Darwin, mais darwinismo nos programas escolares (em todos, ou quase todos, e não apenas nos da disciplina de biologia), dando simultaneamente formação aos docentes para que desses novos conteúdos programáticos possam tirar máximo proveito no âmbito da nobre função pedagógica de edificação da racionalidade, pois que, como gostaria de recordar um celebrado filósofo contemporâneo de Darwin, a razão sempre existiu, só que não sempre na forma racional. É por isso necessário educar para a racionalidade, fazendo com que a razão exista na forma racional. Um contributo pedagógico-formativo que legitimamente podemos esperar e desejar que seja legado pelas nossas escolas.
NOTA: Para melhor compreensão do que entendo por “confusão”, leia-se o meu ensaio “Racionalidade: confusão e anti-confusão”, publicado em Razão Activa, Boletim da Fundação Internacional Racionalista, Abril de 2003, pp.21-30. Também publicado neste blog, se bem que não integralmente e com alguns defeitos formais causados por limitações informáticas (v. índice).
segunda-feira, 9 de abril de 2012
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