No essencial, o Papa Francisco
reafirmou esta mesma ideia quando respondeu à pergunta de um jornalista sobre a
liberdade de imprensa: «Você não pode provocar, não pode insultar a religião
dos outros». Opinião que tem vindo a ser reproduzida por variadíssimos líderes
religiosos e por outros comentadores. Por que será que isto me traz à memória a
típica atitude dos Senhores das ditaduras e dos agentes de todos os
totalitarismos que sempre consideraram e consideram ser uma provocação aquilo
que não lhes convém que seja dito?
Fico confuso. Se estas
individualidades religiosas (católicas, muçulmanas, etc.) têm razão no que
afirmam, então dizer que os incréus vão arder eternamente no fogo do inferno ou
que vão ser castigados sem fim, sofrendo infinitamente, não é ofensivo? Afirmar
que aqueles que não seguem o caminho indicado por Deus vivem no pecado não é insultuoso
para as pessoas visadas? Declarar que quem não acata a “Verdade” da minha
religião é um ser imoral que labora no erro, devendo por isso ser punido com severidade,
não é afrontoso? Obviamente que é! E sendo, que propõem então estas autoridades
religiosas? Que se proíbam as instituições religiosas que produzem esses
discursos injuriosos? Sendo assim, estarão a insurgir-se contra as suas próprias
instituições e a negar a legitimidade do seu próprio afirmar. Ou será que não
se pode insultar a religião dos outros mas pode-se insultar o ateísmo dos
outros?
No mesmo registo das citadas
autoridades religiosas, o jornalista e comentador Miguel Sousa Tavares apareceu
ontem diante das câmaras da SIC a dizer que uma coisa é criticar, procedimento
legítimo, e outra é ofender, algo que é inaceitável. Em sua opinião as
caricaturas do Charlie Hebdo são exemplo de inadmissível atitude ofensiva,
desrespeitosa, repugnante; e deu o exemplo de um cartoon publicado no Charlie Hebdo em que o Profeta Maomé é
representado a ser sodomizado. Mas então a liberdade de expressão não é isso
mesmo? Ou seja, não é a possibilidade de dizer coisas que chocam outros, que
motivam desacordo, indignação, repúdio? Como se pode exercer a liberdade de
expressão sem melindrar ninguém? Gostava que me explicassem.
Gostava também que as pessoas que
pensam dever limitar-se a liberdade de expressão me explicassem o que entendem
que se deve fazer contra os actos ofensivos de jornalistas satíricos como os do
Charlie Hebdo. A receita dos terroristas islâmicos já conheço. Mas qual é a de
pessoas como o também jornalista Miguel Sousa Tavares? Que propõe ele que se
faça a uma publicação satírica como o Charlie Hebdo que tanto despreza? Que se
crie nova legislação, permitindo que os tribunais interditem a publicação de
jornais que veiculem opiniões passíveis de ofender alguém? Pena não nos ter dado
a conhecer a sua proposta durante o surpreendente comentário de ontem na SIC.
Fiquei com muita curiosidade. Até porque Sousa Tavares foi mais longe, acusando
os agnósticos/ateus do Charlie Hebdo de serem tão fanáticos como os seus
assassinos, os fundamentalistas islâmicos que perpetraram o acto terrorista do
passado dia 7. Pondo em equação, fica assim: Wolinski e Co. = a irmãos Kouachi.
Extraordinária opinião! Afinal os criminosos islamitas mataram outros
criminosos, os facinorosos ateus. Talvez, por isso, como o ladrão que rouba a ladrão,
mereçam cem anos de perdão. O Miguel não nos informou a esse respeito.
A gravidade do que ontem foi publicamente
afirmado no Jornal da Noite da SIC justifica citação mais extensa. Aqui vai:
«Eu não sou Charlie Hebdo […]
porque não subscrevo aquele jornalismo […] que não presta para nada. Nem sequer
as caricaturas têm algum valor. O Charlie Hebdo é um jornal que espalha outra
forma de fanatismo que é um fanatismo ateu. Não é crítica é provocação. O
Charlie Hebdo não faz uma crítica faz provocações, faz ofensas. A liberdade de
expressão não é igual à liberdade de ofensa. Não é! Não é! O Charlie Hebdo é
uma forma de fanatismo[ateu] igual às outras [fanatismo religioso]. Acho que é
inútil criticar a fé dos outros.» -- Miguel Sousa Tavares, SIC, Jornal da
Noite, 19/1/15.
Eis aqui a opinião de um
destacado jornalista, opinion maker, escritor reconhecido,
filho de Sofia. Será que esta opinião concorre para a defesa da liberdade de
expressão ou, pelo contrário, abre caminho à liquidação dessa liberdade
essencial? Não semeará ela confusão sobre a linha delimitativa da liberdade de
expressão, deslocando-a para terrenos pantanosos que fragilizam ? Não será este
o discurso que convém aos inimigos da liberdade? E a fé dos outros, como a
nossa, existindo, não se reflecte no comportamento social, não tem repercussões
de natureza cultural, societal, política? Se tem, como me parece evidente, como
justificar a inutilidade de a tomar como objecto de crítica? A crença, a fé
habita um espaço estanque, isolado do mundo real, espécie de campânula
espiritual hermeticamente fechada? É inquietante ouvir este opinar suscitador
destas e de outas dúvidas. Como se percebe, nunca podemos dar como
definitivamente adquirida uma conquista civilizacional. O combate em sua defesa
é permanente. Jamais termina. Daí que, como faz notar Alain de Botton em Religião para ateus, talvez se devesse
aprender com as religiões a utilidade, ou até mesmo a necessidade do
agendamento diário do reafirmar, da releitura, da revisitação cíclica do que,
de modo racionalmente fundamentado, se estabelece como valor civilizacional. Porque
«para além de terem de ser transmitidas com eloquência, as ideias também têm de
nos ser repetidas constantemente».
Perante o citado discurso do
comentador da SIC, é bem curioso registar que algo do mesmo quilate foi dito
por um personagem menor da nossa comunicação social, alguém que julgo ser
habitual protagonista do lixo televisivo quotidianamente despejado sobre a população:
«liberdade de expressão é uma coisa, desrespeito gratuito e egóico pelas mais
altas crenças dos outros é outra»; «o Charlie Hebdo é libertinagem de
expressão».
Esquisita convergência de opinião,
esta, entre seres humanos que supúnhamos não serem do mesmo nível cultural,
intelectual e moral. Saúdo a digna reacção do pivot do noticiário da SIC, Rodrigo
Guedes de Carvalho que, visivelmente incomodado com o que estava a ouvir, teve
o pertinente gesto jornalístico de solicitar clarificação: Achas então que os
jornalistas do Charlie Hebdo se puseram a jeito? Atrapalhado, Miguel Sousa
Tavares balbuciou um não, mas a negativa entrava em clara contradição com o que
antes tinha afirmado e persistiu em afirmar, ou seja, a equivalência
estabelecida entre os cartoonistas e os terroristas – na óptica do opinante, dois
exemplos de fanatismo inaceitável.
Será que os familiares dos mortos
do Charlie Hebdo vão sentir que esta opinião de um conhecido jornalista e
escritor português ofende a memória dos seus entes queridos, vítimas da moderna
barbárie? Será que os amigos, os admiradores, os leitores dos jornalistas assassinados
vão ficar ofendidos? Suspeito que sim. E se for esse o caso, deverá ser
restringido o direito de expressar uma opinião como a agora citada? A proibição
pode ou deve ser o efeito imediato da declaração de um sentimento de ofensa? Que
atitude se deve assumir? Excluindo a “solução” imoral do terrorismo, que devem
fazer aqueles que se sintam ofendidos pela expressão pública de uma opinião, de
uma tese, de uma teoria, etc.? Devem contra-argumentar ou silenciar quem dizem
ofendê-los? Deve instituir-se um qualquer mecanismo de censura prévia? Ou será
que no seio de um Estado de Direito democrático a avaliação do carácter eventualmente
criminoso de um alegado insulto deve ser olhado à luz da Lei liberal, da
legislação democrática, deixando aos tribunais a responsabilidade de
acusar/condenar em função dos danos comprovados que possam ter sido causados? Quanto
a Wolinsky, Cabu, Clarb, Tignous, alvos preferenciais das balas assassinas dos
terroristas islâmicos, sabemos exactamente o que pensavam sobre isto. Esse
pensamento, bem como a coerência do agir em conformidade com ele, custou-lhes a
própria vida.
Já agora uma curta nota sobre o demolidor
juízo valorativo expresso no comentário da SIC: em total contraste com a
opinião do jornalista escritor, autor de Equador
, os especialistas em caricatura e cartoon, dentro e fora da França
(nomeadamente em Portugal), desde há muito consideram que Wolinski, Cabu,
Clarb, Tignous são, ou eram, quatro dos melhores cartoonistas franceses deste
nosso agitado tempo. O que, obviamente, não coage ninguém a ter de gostar; mas
talvez aconselhe a não os classificar como fanáticos medíocres, como gentalha desmerecedora
de respeito, como equivalentes, de sinal contrário, dos Chérifs e Saids
Kouachis que por aí pululam aterrorizando-nos.
Outras dúvidas me assaltam: como
podem os crentes ter tão pouco respeito pelas divindades em que acreditam? Em
que confiam, segundo dizem, com profunda e absoluta devoção? Então acham que os
seus Deuses demiúrgicos, cada um deles considerado, pelos respectivos
seguidores, como sendo o criador do céu e da terra, único criador do Universo, se
deixam afectar pelos insignificantes rabiscos de uns mortais cartoonistas de um
exíguo jornal parisiense? Então Deus não é grande? Então os Profetas não são
grandes? Como pode a sua infinita grandeza coabitar com a pequenez mesquinha dessa
zanga, dessa embirração com os modestos cartoonistas parisienses? E sendo
providos de omnipotência e outros pasmosos poderes sobrenaturais, por que
precisam essas divindades da ajuda de simples mortais para conseguirem pôr na
ordem os jornalistas ofendedores? E não chegava o castigo eterno na profundeza
dos infernos? O castigo pós-morte? Também sempre me causaram espanto os
constantes pedidos de ajuda e protecção endereçados pelos crentes ao seu Deus;
uma estranha suspeição relativamente à atenção divina, parecendo temerem que a
divindade, dita omnisciente, possa estar, por algum motivo, distraída,
ignorando as suas necessidades, urgências e padecimentos. Não será isto também
insultuoso? Outro insulto a Deus? Agravo, neste caso, insolitamente produzido
pelos próprios adoradores incondicionais que tão melindrados dizem ficar com
outros alegados insultos, provenientes das ímpias hostes ateias. Então afinal,
descrentes e crentes, todos injuriam? Pobres deuses! Não percebo nada. Há um
excesso de irracionalidade que tolda o meu entendimento. Ou será tudo efeito
natural da única coisa que Einstein tinha a certeza de ser infinita? Ou seja, a
estupidez humana.
João Maria de Freitas-Branco
20 de Janeiro de 2015
-> Já há mais de dez anos (comecei nos fóruns clix e sapo) que venho divulgando algo que, embora seja politicamente incorrecto, é, no entanto, óbvio:
ResponderEliminar- Promover a Monoparentalidade - sem 'beliscar' a Parentalidade Tradicional (e vice-versa) - é EVOLUÇÃO NATURAL DAS SOCIEDADES TRADICIONALMENTE MONOGÂMICAS..
{ver blogs http://tabusexo.blogspot.com/ e http://existeestedireito.blogspot.pt/}
.
-> O assunto tarda em sair para o debate público... todavia, no entanto... aqui o je não vai deixar de continuar a insistir!