OBRAS
TEXTO 1
CHOPIN / GLAZUNOV: Polonaise, op.40, nº1, “Militar”, em Lá
Maior.
A forma musical designada por polonaise (termo francês que designa o ser “polaco”) tem imediata e
profunda conotação patriótica, pelo que não será de estranhar a escolha desta
obra para iniciar um concerto evocativo de um dos actos mais patrióticos da
nossa história: a Revolução dos Cravos. Na sua origem, bem recuada no tempo, a polonaise é uma dança processional
polaca que tradicionalmente acompanhava cerimónias públicas ou casamentos,
tendo muitas vezes uma componente vocal e podendo ser também uma peça instrumental.
Composta por músico polaco com apelido tão afrancesado como a própria
denominação da obra, esta peça espelha bem um momento de particular entusiasmo
patriótico, sendo uma representação musical da valentia da cavalaria da Polónia
e da sua determinação na defesa do solo pátrio. Daí o facto de também ser
chamada e conhecida por “Militar”. É, por isso mesmo, uma construção sonora enérgica,
de grande pujança e brilhantismo, em que cada nota transmite um claro
sentimento de optimismo.
Foram muitíssimos os compositores que se dedicaram à
composição de polacas, desde Bach e Telemann até Scriabin. No entanto, nenhum
outro contribuiu tanto para a sua fama como Frederic Chopin, o que desde logo
se compreende pelo facto de ser ele o mais notabilizado compositor polaco. Mas
foi através do seu instrumento predilecto, o piano, que Chopin deu esse relevo
à polonaise. Nem mesmo no caso
vertente, em que o propósito de enaltecimento patriótico e a dimensão marcial
parecia aconselhar o recurso a um vasto conjunto de instrumentos, a uma
orquestra sinfónica, nem mesmo isso demoveu o compositor de se manter fiel ao
seu adorado piano. Escutado o resultado estético compreende-se a opção. Mas o
que ouviremos no concerto inaugural da 38ª edição da Festa do Avante não é essa
versão original para piano solo, que Chopin criou pouco tempo antes da sua
partida para Maiorca na companhia de Sand, local onde irá viver um momento
crucial da sua vida: aquele em que os médicos da ilha lhe diagnosticaram
tuberculose. É impressionante o contraste entre as duas polacas compostas nessa
época; o contraste entre o já referido optimismo transbordante da op.40, nº1 e
o estado de espírito musicalmente traduzido na partitura da nº2 (há duas polonaises com o mesmo número de opus), composta já depois do surgimento
dos primeiros sintomas da doença fatal. A passagem do modo maior para o modo
menor (tonalidade de Dó menor, na nº2) é,
só por si, um indicativo da profunda alteração do estado de espírito do músico.
Aconselho aos que desejem ser espectadores do concerto da Festa do Avante que
escutem antes a composição original, recorrendo a um registo discográfico (uma
edição em CD) ou então utilizando modernos meios informáticos agora postos ao
nosso dispor, como o YouTube ou outros sítios da Internet.
No início do século XX, 60 anos depois da morte de Chopin, coube
ao compositor russo Glazunov a tarefa de orquestrar a peça para piano. É essa
versão para orquestra que será executada no concerto. Isso ajudará a melhor
fruir o espectáculo ao vivo.
Se a polonaise tem, como vimos, uma ligação umbilical com a
dança, foi também a dança que esteve na origem do trabalho de orquestração de
Glazunov. Tudo terá começado com o bailarino e coreógrafo Mikhail Fokine,
figura marcante na renovação do reportório de bailado, que em 1907 tomou a
iniciativa de coreografar uma peça de Chopin (a Valsa, op.64, nº2),
oferecendo-a ao talento da celebérrima bailarina Anna Pavlova. Incentivado pelo
sucesso obtido, Fokine utilizou outras duas peças para piano do compositor
polaco, apresentando-as sob o título Danses
sur la musique de Chopin (Danças baseadas na música de Chopin) e destinadas
agora a um corpo de ballet. Foi a partir destas experiências que nasceu o
bailado “Chopiniana”, com 5 peças de Chopin orquestradas por A. Glazunov. Teve
estreia em S. Petersburgo, no conceituado Teatro Mariinski, a 19 de Fevereiro
de 1909. Entre o público presente estava Serguei Diaghilev que logo decidiu
levar o espectáculo para Paris, para ser apresentado nos seus “Ballets Russes”.
Foram acrescentadas mais três orquestrações de Glazunov e o espectáculo estreou
no Teatro do Châtelet no dia 2 de Junho desse mesmo ano. Só que o título
“Chopiniana” foi abandonado, acabando por cair no esquecimento. Razão pela qual
essa produção de Diaghilev, com música de Chopin orquestrada por Glazunov,
coreografia de Fokine e guarda-roupa e cenografia de Alexeandre Benois é hoje
mundialmente conhecida pelo nome com que então foi baptizada, na Cidade Luz: Les Sylphides.
A orquestração da polonaise op.40, nº1, corresponde à
primeira parte do bailado em um acto Les
Sylphides, mas em algumas produções mais recentes tem vindo a ser
substituída por outra peça da autoria de Chopin – o Prelúdio em Lá maior
BEETHOVEN: Sinfonia nº3, op.55 – 1º Andamento
Como tem sido assinalado pela generalidade dos historiadores
e musicólogos, a terceira das nove sinfonias compostas por Beethoven representa
um ponto de partida; ou seja, o mesmo será dizer que protagoniza uma profunda
ruptura com o passado. Nas suas duas primeiras criações deste género o
compositor mantém-se fiel ao modelo clássico representado por Haydn,
limitando-se a procurar desenvolver essa forma sinfónica preexistente. Mas
quando em 1803 se lança no trabalho de composição desta sua 3ª sinfonia, a atitude
assumida é radicalmente diferente. Nesse sentido, podemos dizer ser esta a
primeira sinfonia autenticamente beethoveniana. A dimensão dos seus quatro
andamentos, bem como a grandeza e a pujança da sua arquitectura sonora não têm
precedentes na história da música. Nunca antes se tinha composto uma sinfonia
tão longa. O facto de ter começado por ser dedicada a Napoleão, figura que
começou por despertar no músico uma enorme admiração, não pode ser olhado como
algo separado da intenção do gesto criativo. Bem pelo contrário. A dedicatória
inicial – depois apagada – faz parte de uma totalidade estética essencial. É
elemento constitutivo da essência da arte beethoveniana. Porque, talvez como
nenhum outro, este arquitecto de sons tinha a profunda convicção de que a
música podia e devia celebrar um conjunto de valores e ideais humanos,
assumindo-se dessa forma como relevante factor de consolidação do crescimento
civilizacional e do humanismo. A alma desta partitura sinfónica só pode ser
completamente assimilada, compreendida, à luz desta convicção pessoal do autor.
A grandiosidade sonora que nos é presente é um hino à coragem e ao poder imenso
do espírito humano. Valores que, na época em que escreve esta página sinfónica,
Beethoven vê personificados na figura emblemática do político revolucionário,
do estadista, do chefe militar que é Napoleão, por si reconhecido como
“libertador da Europa”, transportando com a força da espada os ideais
emancipadores da Revolução Francesa. Fácil entender, portanto, a designação de
“Heróica”, “Sinfonia Heróica”. Aliás o compositor terá chegado a pensar
utilizar o nome Bonaparte num subtítulo. Se o tivesse feito, provavelmente hoje
estaríamos a falar da Sinfonia Bonaparte. Recorde-se que Beethoven e Napoleão eram
exactamente da mesma geração; quase nasceram no mesmo ano.
A partir de um esboço realizado em 1802, a composição da
obra estendeu-se por mais de um ano, entre a Primavera de 1803 e o mês de Maio
de 1804. Supõe-se que tenha sido executada pela primeira vez em ambiente
privado, em casa do príncipe Lobkowitz, digno patrono das artes e grande
admirador/protector de Beethoven, a quem, por fim, a obra seria dedicada,
depois de raivosamente apagado o nome de Napoleão por efeito da decepção
causada pelo facto histórico – imortalizado em uma célebre tela de David (de
grandiosidade curiosamente semelhante à da sinfonia beethoveniana) – de o seu
herói se ter feito coroar imperador, espezinhando, na óptica do músico, os
ideais da Revolução Francesa e passando de herói libertador a vulgar tirano.
A estreia pública ocorreu no dia 7 de Abril de 1805, em
Viena, no Theater an der Wien, sob a batuta do compositor. Data marcante na
história da arte dos sons. A cidade de Viena, já tão associada à história da
forma sinfonia, reforçava assim esse elo.
O 1º andamento (o único que será escutado no concerto de
abertura da Festa do Avante), um Allegro
com brio, inicia-se com dois acordes de magnífico efeito a que se segue o
primeiro tema, inicialmente apresentado pelos violoncelos e logo depois exposto
também pelos violinos e pelas violas. Delicioso o diálogo, com curtíssimas
frases musicais de apenas 3 notas, entre o oboé, o clarinete, a flauta e os
violinos, sucedendo-se depois o primeiro tutti
de grande pujança em que sentimos a imponência dos sopros de metal (trompas
e trompetes), em número superior ao que era regra até então. Repare-se nos
largos acordes sincopados, muito vigorosos, de modo a transmitir a pretendida
imagem de heroísmo. O desenvolvimento é de uma riqueza, variedade e extensão
absolutamente surpreendentes para a época. Beethoven não teme o investimento na
complexidade da estruturação do discurso musical, o que só por si convoca uma
exegese que em muito extravasa o escopo do presente texto. De notar, no final,
o reaparecimento do motivo inicial, nas trompas, culminando depois no vigoroso
brilhantismo do som do colectivo da orquestra. Uma autêntica obra-prima. Um
exemplo de genialidade. Se bem que no momento da estreia os críticos não se
tenham apercebido disso e tivessem feito juízos depreciativos. A novidade que
rompe, provoca cegueiras. Hoje, essa força do génio faz-nos acreditar no poder
que o Autor de Fidélio atribuía à
Música, mesmo quando desacompanhada da palavra.
Não quero deixar de chamar a atenção para algo que, a meu
ver, lamentavelmente sempre vejo ser ignorado. Refiro-me ao facto de a dimensão
revolucionária da escrita musical beethoveniana só poder ser cabalmente
entendida, fundamentada e justificada se tivermos em conta factores de natureza
não musical nem mesmo artística que de modo radical afectaram a sonoridade da
vida quotidiana, principalmente a urbana, por efeito directo ou indirecto do
surgimento da máquina a vapor, representando um novo paradigma da técnica, bem
como do extraordinário desenvolvimento da ciência e das suas várias aplicações
técnicas. Nessa medida, a meu ver, importa acentuar, mesmo correndo o risco de
alguma simplificação excessiva, que a sinfonia beethoveniana, ao romper com o
quadro da sinfonia clássica que teve em Haydn e Mozart os seus cumes estéticos,
essa sinfonia de novo tipo que nasce com os primeiros acordes da Heróica, é a
expressão artística da primeira fase da Revolução Industrial, um equivalente
estético da ambiência sonora semeada pela ciência e pela técnica no seio das
sociedades humanas mais desenvolvidas no dealbar dos anos Oitocentos.
TEXTO 3
SCHUMANN: Concerto para quatro trompas e orquestra, op. 86
Ver inserido no programa de um espectáculo uma peça
orquestral em que à trompa seja atribuído principal protagonismo, aparecendo o
trompista como solista, já é algo raro; mas peça para quatro trompas e
orquestra é coisa raríssima, causando estranheza até mesmo a melómanos
experientes. O desequilíbrio entre o acolhimento dado pelos criadores musicais
ao violino ou ao piano e o acolhimento dado à trompa é enorme. Daí que este opus 86, mesmo tendo a assinatura de um
Schumann, seja partitura pouco conhecida, raramente executada e até exótica –
sendo que há fundamento objectivo para o referido desequilíbrio. Mas se estivermos
a falar com um trompista, bastará pronunciar a palavra Konzertstück (primeira palavra que compõe o título original, em
alemão) para que ele de imediato saiba de que obra se trata e quem é o
compositor. Essa familiaridade resulta do facto de esta composição representar
um momento muito relevante na afirmação do instrumento trompa, chamando a
atenção para as inovações técnicas introduzidas no início dos anos Oitocentos.
Em linguagem actual, diríamos que esta obra é a
concretização de uma acção de marketing em defesa da trompa. Pondo em evidência
a evolução técnica geradora de novas capacidades de execução, permitindo que
fossem tocadas notas da escala antes impossíveis para esse velho instrumento.
Nesse sentido, é uma obra de propaganda. O seu perfil alegre, optimista,
afirmativo satisfaz esse propósito. Uma manifestação de fé no próspero futuro
do instrumento.
Para melhor compreendermos a génese desta obra rara
afigura-se-me útil um breve olhar sobre o passado, recuando ao século que antecedeu
o de Schumann. Vamos encontrar aí nobre excepção à regra de fraco acolhimento,
a que comecei por fazer referência: nas obras para trompa compostas por Mozart
e Francesco Rossetti na segunda metade do século XVIII. Se as deste cedo caíram
no esquecimento, as daquele definiram um padrão para o instrumento. Mas nesse
tempo – e eis aqui o mais importante – o instrumento não podia produzir todas
as notas da escala, estando limitado apenas a algumas. Tratava-se de uma
impossibilidade física, e também de uma limitação técnica que os melhores
executantes desse tempo tentavam superar, sem grande sucesso, através do modo
peculiar e estranho como o instrumento é segurado nas mãos (com a introdução da
mão na campânula ou pavilhão). Ainda não tinham sido inventadas as válvulas. Só
nos anos de 1810 surgiram as primeiras trompas de válvulas, mas por vários
motivos foram mal recebidas tanto pelos compositores como pelos intérpretes.
Assumindo-se como espírito moderno, inovador, e
representante das novas tendências musicais, Schumann aceitou com entusiasmo o
desafio, procurando criar uma peça que explorasse ao máximo todos os recursos
do instrumento renovado. Em consequência disso, também os intérpretes são aqui
postos à prova, em virtude das dificuldades de execução que lhes são colocadas.
Há momentos de grande virtuosismo e bravura em que Schumann quis tirar todo o
partido das novas válvulas, “esticando” em todas as direcções, levando o
instrumento a fazer o que antes era impossível fazer
Este concerto foi escrito em 1849, que foi, no plano
composicional, o ano mais produtivo da vida de Robert Schumann. Criou nesse
período mais de três dezenas de obras importantes, se bem que o seu estado de
saúde mental se estivesse a deteriorar rapidamente.
O primeiro e o último andamentos são os mais virtuosísticos
e, por isso, também os mais vistosos. Exemplo disso é a vibrante e enérgica
fanfarra inicial com que as 4 trompas sobem à ribalta, após dois curtos acordes
da orquestra. Fica dado o mote. No entanto, e talvez contrariando a reacção
mais habitual dos públicos, parece-me a mim que o melhor da partitura está no andamento
menos virtuosístico: o 2º, Romança.
Sente-se aí o autêntico Schumann, o da sensualidade lírica do universo do Lied
romântico.
TEXTO 4
MOZART: Sinfonia nº 40, em Sol menor, K. 550
O programa do concerto a que estas notas se referem introduz
uma inversão histórica, fazendo escutar primeiro o que na sequência cronológica
da história da sinfonia só surgiu depois. Isso deve-se à circunstância de a
partitura mozartiana, ao contrário da beethoveniana, ir ser escutada na íntegra,
adquirindo assim o direito de ocupar o lugar de honra, encerrando o
espectáculo. Mas essa inversão não vai retirar ao espectador a possibilidade de
aproveitar este concerto para poder dele retirar alguns ensinamentos sobre a
história da forma musical conhecida sob a designação de sinfonia. Desejo acreditar que esta breve nota possa constituir um
modesto contributo para essa aquisição cognitiva.
A sinfonia (termo de origem grega que significa literalmente
“com som”) nasceu no século XVII e caracteriza-se por ser uma peça composta
exclusivamente para orquestra (norma que muito mais tarde, já no século XIX,
irá ser violada), sendo habitualmente organizada em 3 ou 4 andamentos.
De um modo geral, a sinfonia foi considerada a forma
nuclear, e nesse sentido a mais importante, da chamada composição orquestral.
No século XVII o designativo foi utilizado com alguma falta de rigor, acabando
por se ver aplicado a obras de tipo muito diferente. Deixemos de parte essas
dificuldades terminológicas que as pessoas de expressão inglesa resolvem com
mais facilidade jogando com uma nuance
ortográfica que possibilita o uso diferenciado de duas palavras gémeas: “sinfonia”
e “symphony”. A partir das aberturas de ópera italiana da última metade dos anos
Seiscentos, principalmente nas cidades de Viena e Mannheim (dois grandes
centros da cultura musical desse tempo), mas também em outras cidades (Londres,
Paris, etc.), vários compositores começaram a desenvolver a “nova sinfonia”,
também designada por sinfonia vienense.
Estas composições inauguram um novo rumo que vai conferir autonomia à forma
sinfonia, libertando-a da esfera do teatro musical, assim como da música de
câmara. Com o concurso de músicos hoje, para o chamado grande público, quase
totalmente caídos no esquecimento, só conhecidos dos especialistas, como
Vanhal, Dittersdorf, Michael Haydn (irmão mais novo de Joseph Haydn) ou
Hofmann, surge a sinfonia clássica ou
sinfonia clássica vienense, em que
prevalece a organização em 4 andamentos. Haydn (o Joseph) e Mozart vão ser os
expoentes máximos dessa forma. A nº 40 que ouviremos é modelar exemplo de
sinfonia clássica.
Depois de ter estado na presença da “Heróica” até o
espectador totalmente não iniciado poderá percepcionar algumas diferenças
essenciais. Sugiro que comecem por contar o número de instrumentistas em palco.
Depois contem, p. e., o número de trompetes. Terão a surpresa de verificar que na
obra de Mozart não há nenhum para contar, tal como também não há timbales. E
trompas são só duas. Atenção: escrevo isto desconhecendo as opções do maestro
que, considerando as particularidades do local em que o concerto se vai
realizar, pode decidir, legitimamente, acrescentar instrumentos de modo a
conseguir obter maior volume de som. É claro que nunca passou pela cabeça do
Sr.Mozart a hipótese de qualquer das suas sinfonias ser executada ao ar livre
com a presença de mais de 20 mil espectadores! Isto levanta um problema. Mas
antes de o abordar, sugiro uma última contagem: a da duração da obra em
comparação com a anterior sinfonia beethoveniana. Enquanto a nº40 dura pouco
mais de meia hora, a Heróica (completa) andará pelos 50 minutos. Portanto,
quase o dobro.
Não se julgue, porém, que por utilizar uma orquestra
substancialmente mais pequena Mozart fica atrás de Beethoven no plano dos
efeitos estético-emocionais obtidos. A sinfonia em Sol menor, a penúltima da
lavra do Músico de Salzburg, é aquilo a que costumo chamar um cume estético. É, desde logo pela sua profundidade dramática e
emocional, uma das obras mais admiráveis jamais compostas. Se, no geral, os
psiquiatras e psicólogos no activo tivessem maior cultura musical, estou em
crer que seria habitual vê-los utilizar esta partitura como forma de abordar
com os seus pacientes o complexo problema da vivência/gestão das emoções nas
profundezas do eu singular, assim como no quadro das relações intersubjectivas.
Pelo meu lado, como filósofo, tenho procurado utilizar esta obra como factor de
melhoramento da vida concreta dos seres humanos, pois é essa a principal função
da filosofia: proporcionar bem-estar; gerar aquilo a que os franceses, gozando
do charme do seu idioma, chamam le bonheur.
Escutem com a máxima atenção e sintam como a angústia humana
é musicalmente traduzida, como é espelhada em subtil harmonia musical logo a
partir dos primeiros compassos. O tema do Andante (2º andamento) não é menos
intenso. É mais uma página pungente. E não se deixem iludir pela energia do alegro assai final que pode parecer
anular as tensões num movimento de libertação, de abandono da ansiedade, da
angústia, do medo lancinantes. No desenvolvimento, neste andamento final,
Mozart cria extraordinários efeitos de tensão dramática que nos deslumbram ao
mesmo tempo que nos comovem profundamente.
Que teria feito este tão extraordinário Wolfgang se tivesse
podido escutar a “Heróica”? Uma excitante dubitativa que de modo recorrente me
assalta a alma.
Regressemos ao problema da audição. Esta sinfonia em sol
menor não pode ser bem fruída, em todas as suas dimensões (estéticas, técnico-musicais,
filosóficas, psicológicas, etc.) num recinto como o da Quinta da Atalaia. Tem
que ser escutada em espaço mais íntimo, mais pequeno, com outras condições
acústicas, para que todos os detalhes possam ser percepcionados. Não se veja
aqui uma crítica. Há que entender ser outra a função prioritária de um
espectáculo de massas como o da Festa. Pretende-se que esta presença da obra
gigante diante de sensibilidades não iniciadas, que, por ventura, em muitos
casos, nunca antes com ela se cruzaram “ao vivo”, pretende-se que esse contacto
directo com a grande obra de arte musical possa, de algum modo, desencadear no
espectador a vontade de a revisitar, nascendo assim o hábito de a escutar na
sala de concertos, com condições acústicas mais adequadas, ou através de
gravações discográficas – pelo que, para o caso vertente, aqui deixo uma
sugestão: Edição Deutsche Grammophon,
colecção “The Originals”, sob a direcção de Karl Böhm e com a Orquestra
Filarmónica de Berlim.
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