ABSTENÇÃO OU O
RETORNO DO MAL
Em busca de um significado profundo como resposta crítica a um
colunista
O acto eleitoral europeu do
passado dia 25 de Maio foi o último grande acontecimento de uma alarmante sequência de
factos demonstrativos dos agigantados perigos que sobre nós pairam. Só a título
de exemplo, recordo que um partido alemão (note-se bem) que em campanha
eleitoral apregoou que “a Europa é um continente branco” e colou cartazes onde
se lê “dá-lhes gás” passou a estar representado no Parlamento Europeu, tal como
o Jobbik húngaro, o Aurora Dourada, da Grécia, ou a triunfante
Frente Nacional francesa, unidos em
torno dos mesmos ideais.
Quem tenha o salutar hábito de
aprender com a história, libertando-se de limitações pretéritas, mais
atormentado estará, pois sabe, como Albert Camus – esse paradigma do pensamento
autónomo – «que o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca». Nietzscheanamente
inspirado, o filósofo contemporâneo Rob Riemen fala do «eterno retorno do
fascismo».
Afigura-se-me já assaz exuberante
o processo de reanimação dos agentes daquilo a que Hannah Arendt começou por
chamar mal radical, e a que depois,
em esforçado gesto autocrítico (gesto, por sinal, pouco atendido pelos seus
leitores), preferiu designar como mal
extremo, esse, sim, compatível com a banalidade
por ela conceptualizada a partir da figura do oficial nazi Adolf Eichmann.
Mas vejo agora que me iludo na
suposição dessa exuberância. A visibilidade que julgava existir parece afinal
não ser assim tão visível, tão efectiva. Isso exponencia o meu estado de séria
apreensão. Uma evidência, paradoxalmente, pode não ser vista. Por cá, p.e., não
é verdade que, depois de o governo PSD/CDS ter posto em marcha uma política
descaradamente imoral -- de traição de promessas, de mentira, de pilhagem, de
agiotagem, de injustiça social, de desavergonhada submissão aos interesses do
capital financeiro e da especulação –, não é verdade que cerca de 28% dos votantes
apoiaram a Aliança Portugal? Não pretendo rotular os nossos governantes de nazis,
mas a política austoritária
transporta em si o mal, abrindo caminho à sua radicalização, podendo extremá-lo.
Mas há coisa ainda mais grave, e
isso me motiva a escrever. Porque os 28% talvez tenham explicação atenuadora no
défice de cultura política, nos efeitos da sempre presente demagogia ou até,
talvez, no puro masoquismo; havendo, além disso, o peso dos sofisticadíssimos
mecanismos de construção das ideias comuns (do pensamento dominante), complexo esforço
de arquitectura ideológica.
Qual é essa gravidade maior?
Colho exemplo dela nas páginas de um jornal de referência: o PÚBLICO.
Um respeitável colunista desse
jornal, João Miguel Tavares (JMT), pessoa da nova geração que regularmente
exibe inteligência, cultura e bom senso, veio declarar que a monumental
abstenção eleitoral registada nada tem de preocupante. E explica: «Não votar […]
significa invariavelmente que vivemos numa sociedade pacificada, em que nada de
realmente fundamental se joga em cada eleição. Não ir votar é um gesto típico
de uma democracia consolidada, em que nos podemos dar ao luxo de deixar nas mãos
dos outros a decisão do voto»(PÚBLICO, edição de 27/5/14).
Confesso que estas afirmações me
põem os cabelos em pé. Democracia consolidada?! Esta democracia esvaziada de
Povo? Onde está a solidez quando já nem sequer há democracia plena? Por mera
coincidência, na mesma edição do PÚBLICO saiu artigo de minha lavra em que
enuncio o problema do quórum das eleições. Deixo por isso de lado essa questão.
O que hoje aqui me traz é, porventura, um problema de ainda maior grandeza e
centralidade: o da dificuldade de assimilação/consciencialização do retorno do
mal, tratado por Hannah Arendt, mesmo quando nos situamos na esfera exclusiva
das elites – espaço que se supõe abonado de cultura, de conhecimento político,
informação, inteligência. A gravidade da questão é imensa, convocando a mais
cuidada atenção.
Diante do mesmo fenómeno (a
abstenção) vê JMT o que eu não vejo e não vê o que eu vejo. O que a ele
tranquiliza, a mim apoquenta.
Terá JMT lido o que o lúcido
Thomas Mann escreveu na antevéspera do culminar de um mal extremo nunca antes
(nem depois) visto na história da humanidade? Não existirá alguma alarmante
semelhança entre o que se passou nesses anos 30 do século dos extremos e o
insinuante processo de reestruturação da barbárie a que agora quotidianamente
vamos assistindo? A minha já imensa preocupação expande-se mais ainda perante o
facto de uma mente temperada de generosa inteligência e politicamente cultivada
poder não conseguir ver o essencial, inibindo assim a acção preventiva contra o
retorno da peste. Não ver, no caso vertente, que por traz da abstenção está o
triunfo da mentalidade kitsch, o
primado da superficialidade, a cultivação sistemática da superficialidade, da
alegria pateta, a tão em voga idiotice do “temos que ser positivos”, o
alheamento da seriedade do viver, o permanente resvalar para o hábito de não
pensar (a lacuna de Eichmann), de não se deter nas coisas essenciais,
profundas, o apego ao soft e ao
efémero, o vício da embriaguez, no
grave sentido atribuído por Thomas Mann ao termo, espécie de adição
psiquiátrica individual e colectiva que concorre para «libertar o Eu do
pensamento, da verdade da moral e da razão». É este o despautério em que
estamos e que dia a dia se agrava, semeando horror.
A abstenção não é um mero facto
político conjuntural. O seu significado fundamental vai muito para além da
imediatez política. Ela é um dos sintomas
deste decaimento que gera uma sociedade
deficiente. E o que é uma sociedade deficiente? É uma sociedade apoucada de
civilização! A compreensão profunda desta minha noção radica nas páginas mais
esquecidas da obra do grande Charles Darwin, como aqui e em outros lados tenho
insistido em revelar. Portanto, a abstenção não é coisa simples; não pode ser
tratada como mero fait-divers. A meu
ver, e se muito não erro, o primeiro defeito do comentário que aqui critico
reside em não avistar esta complexidade mais profunda que acabo de sucintamente
referir, constrangido pelos limites de espaço.
Estarei a ser demasiado
alarmista? Estarei enleado em medos ilusórios? Padecerei de alucinações políticas,
maleita aliás historicamente nada infrequente? Preferia poder admitir ser meu o
defeito e estar a verdade do lado da “tranquilidade” advogada no escrito que
critico; mas, despido de vaidade ou de qualquer orgulho presunçoso, receio bem
que a verdade esteja mais do lado de cá: o dos meus medos alegadamente
ilusórios. Uma coisa tenho como certa, e nisso espero que JMT esteja
concordante: é que, como escreveu Edmund Burke nos recuados mas iluminados anos
Setecentos, «tudo o que é necessário para o triunfo do mal é que os homens de
bem nada façam».
João Maria de Freitas-Branco
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