Que os afectados de iliteracia artística, como os actuais
habitantes dos salões e corredores do poder, desconheçam, em absoluto, a
importância da proximidade de uma tela de Miró no enriquecer da interioridade
do ser humano, bem como no engrandecimento da sua humana existência é coisa que
em nada surpreende. É naturalíssimo que tais iletrados patetas reduzam Joan Miró
a quantidades de vil metal. Espanto haveria se víssemos nesses sujeitos atitude
inversa, mais despida de prioridades financeiras e mais vestida de prioridades
culturais. Assim, é uma simples normalidade, consentânea com a indigência
cultural de quem protagoniza a atitude, não me despertando incómoda estranheza.
Revoltante, inquietante e até insuportável é ver a vara do mando na mão de tal
gente.
Mas não é isso que hoje aqui me traz a propósito do recente
caso Miró.
Quero sim manifestar o meu desgosto não face ao espectável,
senão que face ao por mim não esperado. Ou seja, as inesperadas e nada naturais
atitudes/opiniões assumidas por comentadores cultivados, por sérios jornalistas
intelectuais. Ver esses enveredar também pelo mero raciocínio mercantilista,
deixando ignorada a imensa relevância imaterial dos objectos artísticos em
debate é coisa, confesso, que me molesta. Então também vocês só se preocupam
com a tradução dos Mirós em milhões, em quantidade de vil metal? Como pode ser?
Onde está então a resistência culta, intelectualmente elevada, capaz de fazer
frente à bestial iliteracia que comecei por evocar? Onde está, entre os
comentadores de serviço, a voz opositora da baixeza intelectual e da indigência
cultural que, em adiposas lufadas, brota do discurso dos actuais governantes indecentes
e de seus indescritíveis acólitos? Não oiço comentadores a pôr o acento no essencial,
a evidenciar o que me parece ser o mais importante: o valor imaterial da
badalada colecção Miró caída no regaço do Estado português.
É provável que os comentadores no activo gozem ainda do
privilégio de poderem viajar, de poderem ir ver os originais dos grandes
criadores de pintura a Paris, Londres, Nova Iorque ou à Barcelona de Miró.
Óptimo! Mas, e os outros? Que acontece à maioria esmagadora que não pode dar-se
a esse luxo? Será indiferente para a construção da interioridade do sujeito
humano ter ou não ter estado na presença de quadros com assinaturas autorais do
calibre da de Miró? É que os quadros têm uma sumptuosa cotação imaterial no
impreciso mercado dos bens interiores, das etéreas riquezas da complexa
profundidade do eu, onde se decide o ser ou não ser pessoa e a grandeza desta.
Não, não é nada indiferente. Nem é questão menor no plano
sócio-cultural e político. Para mais se pensarmos nos jovens que frequentam as
nossas escolas, estudando a história da pintura, ou da arte, em geral, sem pôr
olho em original, limitando-se a ver as reproduções que o manual escolar
oferece. Ter a possibilidade de fruir os originais não é questão educativa
merecedora de atitude despiciente.
Se há coisa verdadeiramente importante é termos em funcionamento
uma sociedade provida de meios – escolas, desde logo – que concorram para fazer
emergir, em boa quantidade, aquilo a que o lúcido Montaigne chamava «une tête bien faite».
Para que a vara do mando possa ser colocada nas mãos de
pessoas decentes, superando o actual despautério governativo (questão política
decisiva), é prévia condição existirem cabeças “bien faites”, bem esculpidas, na acepção do notabilizado ensaísta-filósofo
francês.
A presença activa da grande arte e, no geral, da Alta
Cultura, sob a forma de pintura, escultura, música, literatura, arquitectura,
etc., é coisa inalienável, porque favorece o esforço ciclópico da semeadura de
«une tête bien faite».
João Maria de Freitas-Branco
Artigo de opinião - jorna PÚBLICO
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