Os mil dias de Trump
Em medos do passado mês de
Outubro, creio que no dia 17, Donald Trump perfez mil dias de presidência do
Estado mais poderoso do Planeta. Não sei se terá existido alguma dessas mil
jornadas em que eu não tivesse sido surpreendido por qualquer coisa que supunha
ser impossível acontecer sem que de aí adviessem imediatas consequências politicamente
fatais para o inquilino da Casa Branca, abrindo rápido caminho para o seu ocaso
político, ditado, desde logo, pela perda da base eleitoral de apoio e por
inevitável processo de impeachment protector
e dignificante da democracia. No entanto, sou forçado a admitir que estava
iludido. A realidade encarregou-se de demonstrar a falsidade da minha optimista
suposição. Nenhum desses passos presidenciais, fosse um discurso, uma decisão
política, um twitter, uma opinião ou qualquer outro acto comportamental do
Sr.Donald, provocou a sua morte política. Agora já prepara a sua reeleição, não
se vislumbrando enfraquecimento no amparo concedido pelo Partido Republicano..
No centro da vida política de um
Estado de direito democrático fundado por homens iluminados, como foram John
Adams, Thomas Jefferson, James Madison, Benjamin Franklin, Thomas Paine,
acreditava-se ser muito difícil acontecer o que na realidade aconteceu nestes
últimos anos, desde o anúncio da candidatura de Donald J. Trump em 2015. Mesmo
conhecendo bem as intrínsecas fragilidades da democracia, na América como em
qualquer outro ponto do globo em que tenha sido instaurada; mesmo sabendo que
nenhuma conquista é definitiva e que a liberdade, a justiça, a igualdade, a
fraternidade estão em permanente fase de construção; e não desconhecendo os
graves defeitos e as grandes limitações do sistema democrático norte-americano,
estava convencido, mesmo assim, que os EUA, por efeito da qualidade intelectual
dos seus Founding Fathers (pais
fundadores) e do system of checks and
balances por eles tão lucidamente pensado e esculpido, era um dos países
mais escudados contra as cíclicas vagas de totalitarismo que a história vai
sempre proporcionando. Vejo-me de novo forçado a reconhecer que nem a minha
velha atitude crítica me fez escapar à queda num certo excesso de optimismo,
talvez ditado por alguma dose de ingenuidade política. Não terei sido o único.
A principal causa do fenómeno trumpistico, a que temos assistido com
crescente pasmo, reside na acumulação de actos políticos que explicam por que
razão existe tanta pobreza no país mais rico do mundo. E tanta desigualdade, e
tanta injustiça social, e tanta insegurança. A riqueza e o poder
concentraram-se numa magríssima fatia do corpo societal (correspondente a 1% da
população) e essa concentração não parou de aumentar de acordo com uma lógica
capitalista que se foi desbragando também por directo efeito da queda do muro
de Berlim, tomado como símbolo do desaparecimento do “socialismo real” e
marcando o fim de um século breve, o da “era dos extremos” como lhe chamou Eric
Hobsbaum.
Se Donald Trump fosse um
autêntico político, se tivesse um programa consistente, um plano estratégico sólido,
articulado com uma táctica perspicaz, e se fosse um tribuno carismático, teriam
bastado estes mil e tantos dias para vermos a democracia norte-americana em
estado de perfeita ruína. A sua ininteligência, a sua inépcia, o seu
comportamento errático, a sua imprevisibilidade, o seu infantilismo, a sua
grosseria generalizada têm ameaçado a democracia, a liberdade, a paz, mas,
paradoxalmente, e se não erro, são ao mesmo tempo, involuntariamente, elementos
protectores da democracia, por serem defeitos tão vincados, fragilidades tão
cavadas que acabam por estorvar a pretendida solidificação de um trumpismo (corpo ideológico), emergindo como
renovada forma de totalitarismo. Sendo um deficiente moral, Trump é o exuberante
protagonista do moderno populismo demagógico, o da época digital, da política
twiter ou twitada, da informatização sistemática da mentira manipuladora, assim
tornada global. Trata-se de um tipo de nacional-populismo. Ele, Donald, é o clawn de serviço que se vai exibindo em impudicos
espectáculos de variegado formato. O mais grave é que o Partido Republicano se converteu
a essa figura obscena e, em vez de procurar conter os seus indignos excessos
presidenciais, dá-lhe oxigénio, oferece-lhe amparo, fecha os olhos perante o
que bem sabe serem desprezíveis dislates, que chegam a denegar em absoluto a própria
letra da histórica Constituição dos EUA.
Não se trata de conversão súbita. A profunda metamorfose do
Partido Republicano iniciou-se muito antes do aparecimento de Trump na ribalta
política; passa, por exemplo, pelo gangsterismo político-militar protagonizado
por indivíduos como Donald Rumsfeld, Dick Cheney, Paul Wolfowitz no tempo da
presidência de George W. Bush.
A assustadora e gravosa aceitação
do inaceitável por parte dos republicanos talvez se deva em alguma medida ao
facto de acreditarem na indestrutibilidade do sistema democrático. Por
conveniência táctica, conjuntural, de imediatismo eleitoralista, permitem as
incorrecções, supondo que essa permissividade nunca chega a colocar em risco o
regime. Se assim for, enganam-se profundamente. O totalitarismo é uma expressão
política do Mal. Por isso, nunca está definitivamente sepultado. Pode, quando
muito, estar latente, numa espécie de estado de hibernação mais ou menos
prolongado, mas sempre à espreita da oportunidade para o despertar, para o
ressurgimento. É o ovo da serpente cinematograficamente trazido até nós por
Ingmar Bergman sob inspiração shakespeariana -- «And therefore think him as
a serpent's egg» (Julius Ceaser, fala
de Brutus).
Neste contexto, sou tentado a
estabelecer analogia com realidade a que temos assistido cá por casa, bem dentro
do nosso torrão. Estou a pensar nas transformações observáveis na nossa comunicação
social nos últimos anos. Quando emergiu um certo modelo sensacionalista,
fazendo da notícia uma forma de espectáculo manipulador e implementando o
populismo jornalístico ou, se preferirmos, o “jornalismo populista”, em que os
critérios editoriais se submetem ao gosto da populaça, ao atraente jogo das
emoções, ao irracional, em detrimento da verdade do conteúdo informativo – a
regra do tudo vale desde que contribua para aumentar os índices de audiência
--, quando por cá surgiu este modelo, houve no início saudáveis e louváveis
reacções de demarcação, com o objectivo de defender o Jornalismo; mas a pouco e
pouco fomos assistindo não ao recuo do sensacionalismo populista, senão que a
uma conversão semelhante à dos republicanos americanos: muitos órgãos de
comunicação, incluindo os de referência, foram adoptando o modelo
sensacionalista-populista. O jornalismo (o autêntico) passou a estar em risco
de total extinção. De forma semelhante, nos EUA, a surpreendente (ou talvez não)
conversão do Partido Republicano ao modelo trumpistico
faz com que a democracia na América passe a estar em risco de extinção. O
óbito do jornalismo português, se vier a ocorrer, é improvável que tenha efeito
de contágio imediato no panorama internacional, enquanto o óbito da democracia
nos EUA terá inevitáveis consequências a nível planetário, pondo de imediato em
risco a democracia em todos os cantos do mundo.
Depois de tudo aquilo a que temos
assistido no decorrer dos já mais de mil dias de presidência trumpista, creio
dever-se concluir que este sujeito, com as suas notórias deficiências, possui
uma rígida base social de apoio. Não sendo claramente maioritária, é, ou tem
sido, no entanto, muito estável.
Ameaçadoramente firme. Cada comício trumpista é disso exemplo claro. E como
sabemos, o exótico sistema eleitoral americano possibilita a vitória de quem
perdeu no voto popular (Trump detém o recorde negativo, pois chegou à Casa
Branca mesmo tendo recolhido menos 2,8 milhões de votos do que a sua adversária
Hillary Clinton, em 2016).
Como justificar essa solidez
perante tamanha dose de despautério político, de incoerência, de mentira, de
indecência, de indignidade?
As oposições a Trump, dentro e
fora dos EUA, não parecem estar a compreender a essência do fenómeno. Se muito
não me engano, tal acontece, em boa medida, por implicar o público reconhecimento
de gravosas acções praticadas por esses mesmos opositores durante longo período
de tempo. Acções que profundamente lesaram milhões de pessoas de diferentes
estratos sociais, fazendo com que algumas (muitas) dessas pessoas (cidadãos
eleitores) apareçam agora a avolumarem o eleitorado dos actuais líderes do
nacional-populismo em vastas zonas do globo.
Em primeiro lugar é preciso
compreender que as eleições americanas de 2016 têm um valor simbólico
universal. A derrota de Hillary Clinton representa a condenação de políticas
promotoras da desigualdade, da injustiça social, da pobreza (material e
imaterial). Políticas levadas a cabo durante décadas pela classe política tradicional
e pelos partidos dominantes, constitutivos do “centrão”, do establishment. A campanha eleitoral de
Trump centrou-se no ataque à classe política (“a classe política já não
trabalha para servir o interesse do povo”), no ataque às administrações anteriores,
na crítica ao “modelo económico-social dos EUA” e no lema Make America Great Again. O que atrai a base de apoio e lhe confere
solidez é, simultaneamente, uma enorme descrença nos políticos e nas
instituições preponderantes, a dimensão de espectáculo (show) e a percepção de que a acção trumpista, assim como o próprio
indivíduo Donald J. Trump funcionam como farpas cravadas nos políticos
tradicionais caídos em descrédito. Há
no partidário de Trump o íntimo sentimento compensatório de ter conseguido
ferir o establishment. Isso alegra o
povo vitimado pela injustiça. Nos comícios, o estrito conteúdo político pouco
ou nada interessa. Importante é assistir ao show
do clawn em voga esgrimido contra as
elites tradicionais. A reunião política passa a ser acima de tudo um evento
mundano, uma forma de entretenimento com o picante de ser algo que incomoda,
que irrita o poder político tradicional. Nada disto funcionaria sem a
fundamental presença de um outro factor: a
ignorância. O baixíssimo nível
cultural determina que muitos milhões de cidadãos fiquem votados à incapacidade
de compreenderem que, no essencial, estes Donalds em quem depositam esperança estão
ao serviço dos mesmos inconfessáveis interesses de uma magra minoria
possidente. (No caso vertente, trata-se mesmo de um empresário milionário que enriqueceu
no espaço sede do capitalismo e por efeito do funcionamento do sistema
capitalista, americano e internacional, sendo alguém que por alguma razão
necessita de esconder a sua contabilidade.)
A incultura latente na base
social de apoio de Trump é indissociável de uma outra coisa: essa que Albert
Einstein considerava ser a única que ele tinha a certeza de ser infinita. É ela
a estupidez humana – característica universal, se bem que cada sujeito tenda a
considera-la pertença exclusiva do outro, do tu, e nunca um traço típico do eu
(do seu eu). A combinação dessas duas coisas (ignorância e estupidez) é
potencialmente explosiva. Sabemo-lo. A infinitude parece conferir insuperabilidade
a uma delas; mas a outra, a agnosia, mesmo que agigantada, pode ser combatida
com alguma eficácia, sendo para tal necessário, antes de mais, convocar com urgência
uma séria reflexão sobre o funcionamento real da Escola e sua acção formativa,
de modo a facultar um agir consequente.
Mas atenção: a veracidade do que
afirmo sobre o grau de ignorância de muitos apoiantes do actual presidente dos
EUA, assim como dos partidários de outros dirigentes do nacional-populismo, contém
o grave risco de poder conduzir a uma visão simplificadora ou, pior ainda, simplista. E por isso mesmo errada. A agnosia é um factor real. No
entanto, supor que a vitória eleitoral de Trump é apenas fruto da ignorância/estupidez
de uma grande fatia do eleitorado, como tem sido afirmado por Hillary Clinton e
bastantes outros, é um erro crasso. No processo eleitoral democrático não há
partido/candidato que não receba votos ditados pela ignorância, incluindo a
mais basilar e grosseira (o voto decidido em função da cor das bandeiras ou das
gravatas em uso, da beleza da candidata ou do candidato, da escolha aleatória, do
absoluto desconhecimento do conteúdo político, seja o ideário, o programa de
acção ou as opiniões do candidato). Mas combater o populismo recorrendo a esse
tipo de ataque vexatório, que busca a rotulação simplificadora e simplista é também
erro estribado na falsa ideia de que a base social de apoio de Donald Trump é homogénea,
uniforme, não-complexa. É exactamente o contrário. Para o compreender talvez
baste saber que Trump foi eleito com mais de 62 milhões de votos. Um eleitorado
que logo pela sua dimensão quantitativa indicia a heterogeneidade. Há nessa
base de apoio cidadãos muito contrastantes, do ponto de vista cultural, social,
económico, étnico, religioso, sexual e até político. Trata-se de uma base
vincadamente complexa e transversal. Imaginar que foram os eleitores brancos
abastados, ou os protestantes, ou os católicos, ou os fascistas, ou os racistas,
ou os machistas, ou um qualquer outro grupo social com identidade bem definida
(um estrato homogéneo) a determinar a vitória eleitoral do candidato
republicano nas eleições de 2016 é perseverar num equívoco inibidor da
compreensão profunda do populismo, como fenómeno contemporâneo marcante.
A ignorância não é nem a única
nem a principal causa do triunfo eleitoral de Trump e da persistente estabilidade
da sua base de apoio. Desde logo, porque nunca
há uma causa única para um fenómeno de natureza complexa. Não nos libertaremos do estado de ilusão ou auto-ilusão
enquanto não assumirmos consciência do elevado grau de complexidade de um
fenómeno como o nacional-populismo. Nem sequer há uma causa principal, entendida como factor singular, único. A “principal
causa” é múltipla ou multifactorial; é complexa: reside ela no longo e também complexo
desempenho político dos mentores da democracia real, essa elite democrática que
ao longo de décadas foi semeando descrença/desconfiança em milhões de cidadãos
que por fim se convenceram, com forte razão, de que a sua voz deixou de ser
ouvida. Foi-se sedimentando um profundo sentimento de injustiça, ao mesmo tempo
que ia sendo cada vez mais notório o divórcio existente entre políticos e
cidadãos comuns, entre representantes e representados. Muitos destes optaram
por deixar de participar, engrossando a abstenção. Outros resolveram começar a
votar em novos candidatos que consideram estarem em condições de fazer frente
ao establishment. Há mais de quarenta
anos que insisto na crítica da democracia real, nomeadamente chamando a atenção
para os limites da mais citada, sempre citada afirmação de Winston Churchill
sobre o regime democrático. Os efeitos das deficiências da democracia real
estão agora a adensar-se, ganhando particular intensidade.
No nosso país, na legislatura que
agora se inicia vamos assistindo a coisas muito semelhantes às que antes
referi, passadas no distante continente americano, do outro lado do oceano. Em
Portugal, houve comentadores políticos e opinion
makers que após as últimas legislativas logo vieram a terreiro para atacarem
os votantes no principal partido populista (o Chega), acusando-os de menoridade,
amesquinhando-os e utilizando argumentos em tudo semelhantes aos de muitos dos opositores
americanos de Trump. Lá como cá, por estranho que possa parecer, esta atitude
de passar atestados de menoridade a eleitores de partidos ou decandidatos que
não estimamos é uma manifestação de ignorância simplificadora, assim como também
uma das melhores formas de levar água ao moinho do nacional-populismo. Além
disso, de acordo com os índices de audiência tornados públicos no nosso país, o
que mais tem atraído a atenção dos cidadãos eleitores é o espectáculo dado por
quem se apresenta como dissidente da política tradicional conduzida pelos
partidos dominantes. À semelhança do que se observa nos EUA, também por cá o
cidadão desalentado, violentado, injustiçado pela desonestidade de muitos dos
seus supostos representantes, anima-se com a irritação causada pelos populistas
lusos junto dos agentes político-partidários que têm dominado a vida política
(“os do costume”, a elite social, económica e política). Tal como os americanos
trupistas, também muitos portugueses se divertem com isso. Esse entretenimento
funciona como elemento compensatório de muitas das suas frustrações e desgostos
políticos validamente fundamentados. Por essa via, e com o permanente concurso
da ignorância, o show torna-se ideologicamente
muito lucrativo.
O único antídoto verdadeiramente
eficaz é ainda e sempre o mesmo: a acção política edificadora do bem-estar
assente na criação de igualdade, de justiça, de um generalizado enriquecimento imaterial
e imaterial. Nenhum Trump vence eleições se existir um razoável nível de
bem-estar geral associado a um sentimento de justiça. As pessoas desejam poder
acreditar na classe política. Anseiam por políticos prestigiados e dignos que
verdadeiramente os representem. O combate actual contra as novas vagas de
totalitarismo implica o saber retirar carburante ao show populista ou nacional-populista. É um urgente combate
político-cultural. No caso americano, a infantilidade demencial do presidente é
um paradoxal factor de protecção da liberdade e da democracia.
João Maria de Freitas Branco
Caxias, 19 de Novembro de 2019
Outro interessante (de que vou roubar o final ;-). Do meu ponto de vista só peca por analisar uma sociedade sem classes quando a realidade é de uma agudissima luta de classes, no âmbito da qual "O Capital" se vê forçado a oferecer ao "Trabalho" um inócuo sucedâneo de oposição: o nacional-populismo mais ou menos trumpista, já que a real oposição significaria o fim do neo-liberalismo em que descambou o capitalismo sem freios, e isso "O Capital" não deixa ;-)
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