Surgiu recentemente no Facebook um movimento de opinião propondo o nome de José Mourinho para o lugar de Primeiro-Ministro. Depois da grande vitória na Liga dos Campeões (a que aqui se fez imediata referência) houve quem considerasse ser este bem-sucedido treinador de futebol o cidadão português mais competente para assumir a liderança política da Nação, de modo a libertar-nos de incompetências várias e correlacionados insucessos nacionais.
Embora sendo uma brincadeira bem-humorada, a proposta não deixa de conter uma ideia política séria e profunda, que por isso mesmo talvez mereça ser objecto de reflexão.
Quem ler o bom livro de Luís Lourenço a que já aqui fiz referência (v. “José Mourinho”), um estudo dedicado à análise do modelo de liderança do afamado treinador, perceberá de imediato que um traço essencial desse modelo é o anti-dirigismo, ou a não imposição. Isto é, o modelo de Mourinho é, de alguma maneira, de natureza filosófica. É critico-dubitativo e não impositivo. Como diz o sábio “mister” «Para mim liderar não é mandar, para mim liderar é guiar.» E acrescenta: «Quando tu mandas, tu castras. […] eu quero desenvolver capacidades quer ao nível individual quer ao nível colectivo.» Parece um filósofo a falar; uma espécie de António Sérgio treinador. Eu, enquanto profissional da filosofia que me prezo de ser, e imbuído do meu velho antidogmatismo sergiano, sempre assim concebi a liderança, em geral, seja ela desportiva ou outra. Em qualquer caso, toda a liderança é, em si mesma, fenómeno político. Este modelo é, por isso mesmo, a antítese do modelo de liderança do actual primeiro-ministro de Portugal. E logo este é que se chama Sócrates. Que desconcerto! Bem tinha razão o nosso Poeta ao fazer notar o desconcerto do mundo.
Com os olhos postos na acção política, e não no futebol, António Sérgio dizia sabiamente: «a boa política […] é uma arte de emancipar os homens; e estou na crença de que o grande político – como o grande pedagogo – é aquele que com a máxima simplicidade e humildade trabalha constantemente por se tornar dispensável; que é o que treina o povo para se governar a si mesmo, com o mínimo de intervenção de quaisquer políticos.» (Cartas do Terceiro homem, XIV).
Repare-se bem na expressiva imagem do político que é treinador de povos; não há só treinadores de futebol ou de outros jogos, há também treinadores de povos, sendo que alguns princípios de actuação parecem ter validade universal.
Mourinho treinador de futebol, inconscientemente (ou talvez não, porque foi discípulo de outro Sérgio, o Manuel), reproduz essa sagesse sergiana ao declarar enfaticamente e de modo muitíssimo acertado que o que faz falta, como dizia o cantor da nossa resistência, é «criar condições, em vez de dar ordens, e usar o poder de autoridade para conferir poder aos outros». Também esta, uma bonita forma de dizer. Lourenço, no livro de onde retiro as citações de Mourinho, mostra como esta visão da liderança sintoniza com a do cientista e pensador Fritjof Capra para quem a «liderança é facilitar o processo de emergência e, ao fazê-lo, promover a criatividade». Pessoalmente, como sabem os que têm tido a generosidade de me ler, sempre insisti neste ponto. Veja-se o que escrevi em Pensar a democracia (Editorial Inquérito, 1994, p.121):
O novo paradigma de uma política complexa deverá colocar o acento tónico na livre criatividade do sujeito singular, bem como na sua intervenção autónoma nos destinos individuais e colectivos. De onde releva a importância da educação/formação do sujeito cidadão em cuja base a autonomia deverá (e poderá) tender a sobrevalorizar-se em detrimento da dependência. Se não erro, só por esta via de enriquecimento das condições de possibilidade do exercício da criatividade livre se pode alcançar o nível da autêntica participação. Espaço para a génese de sistema político participado e não preponderantemente representativo, como acontece com as actuais democracias.
Partimos de uma brincadeira relacionada com o sucesso de um treinador de futebol, considerámos o perfil do modelo de liderança desportiva desse mesmo treinador, e isso conduziu-nos a uma questão profunda no espaço da filosofia social e política, ajudando-nos a pensar um aspecto capital na nossa realidade hodierna.
Como nos diz Luís Lourenço, em forma de conclusão sobre o modelo de liderança que se propôs analisar, tudo vai desembocar na mesma ideia central: «a de que a liderança eficaz facilita e fomenta a consciência individual – a sede da criatividade» (em Mourinho – a descoberta guiada, Prime Books, p.63).
Há aqui profunda matéria de reflexão filosófico-política. Pense o leitor nisto, porque é coisa útil e actualíssima. Mas pense bem.
sexta-feira, 4 de junho de 2010
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